São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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JANIO DE FREITAS

Peles grossas

Em apenas três anos e meio, o valor do dólar, em relação ao real, subiu 200%. E, no entanto, essa original estabilidade da moeda proclamada no Brasil é uma das mentiras que menos cresceram no índice da hipocrisia oficial.
São claros e taxativos os documentos oficiais do governo dos Estados Unidos, coletados por Marcio Aith para a Folha, em que um brigadeiro do Brasil é citado, nominalmente, por atitudes para beneficiar a empresa Raytheon na "concorrência" bilionária do Sivam, Sistema de Vigilância da Amazônia. Não é o mais grave, porém. Outra citação refere-se à oferta ao próprio embaixador dos Estados Unidos, pelo mesmo brigadeiro, de um acordo de fornecimento de dados do Sivam aos americanos. Nem é o pior, ainda. É igualmente clara, taxativa e nominal a referência à entrega de um documento confidencial brasileiro a um diplomata americano, pelo mesmo brigadeiro Marcos Antônio de Oliveira, então coordenador da "concorrência" e hoje nada menos do que chefe do Estado-Maior da Aeronáutica.
Assim como o embaixador Melvin Levitsky e os autores dos demais memorandos ao Departamento de Estado não têm motivo, ao que se imagine, para inventar citações, o brigadeiro Oliveira tem motivos, sejam lá quais forem, para negar os fatos mencionados. É o que faz, simples e limitadamente.
Não é o caso do presidente da República, do ministro da Defesa e do ministro do Gabinete Civil. Depois de se referir a "intriga e infâmia" sem ousar dizer se do governo dos Estados Unidos ou de quem seriam, Fernando Henrique Cardoso pretendeu desqualificar a revelação dos documentos desta maneira: "Com o tempo, a pele vira couro. Mesmo sendo couro, dói. Mas depois a história reconhece".
A questão não é dermatológica. E a metáfora foi invertida. A pele grossa não é consequência, é causa. É preciso ter uma couraça muito especial para acobertar, a priori, as indicações oficiais estrangeiras de um grave desrespeito ao país e a suas instituições. A pele já grossa é que explica a proteção a todos os envolvidos em práticas definíveis como corrupção, impedindo investigações e CPIs. E a própria participação em transações para manipular a privatização das telefônicas.
A metáfora às avessas não impediu que então surgisse, embora com retardo de quase anos, o preceito ético do governo. Sua apresentação não foi feita por Fernando Henrique, como deveria, mas por Pedro Parente: "O progresso é feito pelos homens que agem, não por aqueles que discutem como as coisas devem ser feitas".
É isso. Os atos do atual governo são feitos por aqueles cuja pele grossa os dispensa de discutir como as coisas devem ser feitas. E tome de imoralidade. O que dá razão, pelo menos, ao complemento de Fernando Henrique: "depois a história reconhece".


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