São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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NO PLANALTO

Seja quem for o eleito, vai rolar a festa

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

É insuportável a normalidade que permeia a cena política brasileira. Algo de anormal precisa suceder. Sob pena de passar por natural o que é absurdo.
Quem não quiser perder a compreensão do que está acontecendo deve levar em conta o seguinte: Lula, Ciro e Serra são prisioneiros de um paradoxo. Eles prometem o avanço sem chutar o atraso. Pregam o novo abraçados ao velho.
O PT se aproximou do arcaico por razões de "mercado". Queria derreter o gelo de suas relações com a alta finança. Imaginou que um Lula domesticado seduziria o voto não-petista.
Ciro foi empurrado em direção ao obsoleto pela legislação eleitoral. Seu partido, o PPS, é um nanico eleitoral. Sem musculatura congressual, o candidato entoaria na propaganda eleitoral muito pouco além de um "meu nome é Ciro".
A falta de vocação para Enéas justificaria companhias inusitadas, como a de Luiz Antonio "Carandiru" Fleury. Mas não explica acertos de Ciro com morubixabas da tribo pefelê. Esses não lhe rendem um mísero minuto adicional na TV.
Serra renovou a aliança do PSDB com o antiquado porque o grão-tucanato avaliou que, sem a ajuda do cangaço, a USP não se manteria no Palácio do Planalto. Oito anos de poder não ajudaram a dissipar a impressão de que, fora do Sudeste, o "tucanosapiens" é uma criatura ruim de voto.
De um líder se espera que fixe padrões morais para os seus liderados. Diante das extravagantes alianças formadas ao seu redor, Lula, Ciro e Serra comprometem a própria capacidade de se firmarem como lideranças éticas. A despeito das qualidades e da honestidade de cada um.
A atual campanha representa, antes de tudo, um marco estético. Os candidatos decretaram o fim da utopia de uma política altruísta, baseada nos bons sentimentos. A prática, finalmente, derrota o ideal.
Extinguem-se os últimos antagonismos. Eliminam-se os derradeiros entrechoques. Já não há nem o protocolar Lula versus Quércia. O pragmatismo não se dá mais ao luxo de moralismos e ideologias.
O pipoqueiro e o ladrão de pipoca se confraternizam à luz do dia. O pau de galinheiro se harmoniza com o galinheiro. Sacrifica-se o idealismo "imobilista" em nome de um cinismo "transformador".
O Brasil, que nunca teve políticos de direita, perde também os que se diziam de esquerda. Resta o centrão. Amorfo, isotrópico, inefável. É a redenção triunfal do "realismo" a FHC. Em meio ao surto de amnésia, já ninguém se lembra do que escreveu, disse ou fez.
Brasília vai se firmando como templo de um sistema administrativo que gira em torno de privilégios, verbas e empregos. Logo seremos pentacampeões também em fisiologia.
Tancredo teve a ventura de morrer antes de pôr em prática a armadilha que engendrou. Herdeiro dos acordos, Sarney hon- rou-os gostosamente. Collor renovou-os. Itamar preservou-os. FHC vestiu-os com traje intelectual, situando-os em algum lugar entre as duas éticas de Max Weber, a da convicção e a da responsabilidade.
Diz-se que, eleito, o novo presidente, menos inepto que Sarney, mais honesto que Collor, menos transitório que Itamar, mais firme que FHC, teria autoridade para deter a sanha fisiológica dos aliados. Doce ilusão.
O calor de urnas recém-abertas normalmente confere ao eleito uma aparência de super-homem. Porém, ao descer das nuvens da consagração para o chão escorregadio do dia-a-dia administrativo, o novo presidente descobre que seu poder tende a se dissipar nos desvãos da imensa máquina do Estado. Em poucos meses, ele se vê como que governado pelas circunstâncias.
Sarney disse, certa vez, que "o presidente é como um dom José 1º, acampado no Palácio de Belém, em meio ao terremoto de Lisboa". Um terremoto que por certo será amplificado em 2003 pelo legado de desequilíbrio econômico de FHC.
Manietado por um cenário internacional de crise que projeta uma recessão planetária de dimensões históricas, o novo presidente será compelido a desfiar um rosário de desculpas para as promessas que não conseguirá honrar. Será então apresentado aos dissabores da impopularidade. E sentirá a faca da fisiologia a roçar-lhe a jugular.
Devagarinho, o fisiologismo vai deixando de ser percebido como parte do sistema. Passa a ser entendido como o próprio sistema. Tão integrado ao cenário brasiliense quanto as curvas da arquitetura de Niemeyer.
Impossível antecipar o nome do novo gerente do velho condomínio de interesses. Mas, passado o ritual da eleição, vença Lula, Ciro ou Serra, convém chamar de volta à capital a cantora Ivete Sangalo. Vai rolar a festa. Ah, vai rolar.


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