São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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ELIO GASPARI

Os programas de Lula e Ciro têm muita gordura

Lula e Ciro Gomes divulgaram seus programas de governo. Ora, direis, ouvir estrelas, é a primeira reação de muita gente quando se fala nesses documentos, repletos de boas (e más) intenções. Olhando para os dois programas apresentados por FFHH, em 1994 e 1998, vê-se que ele anunciou boa parte do que faria. A privataria e a tunga da Previdência Social, por exemplo, foram sinceramente anunciadas. É verdade que em 1994 ele não anunciou que arruinaria a economia com um dólar de R$ 1,20. Não revelou que batalharia para ficar mais quatro anos no Planalto. Mesmo assim, quem os leu teve bons elementos para julgar o candidato.
Quem tiver paciência para ler os textos de Lula e de Ciro só terá a ganhar. O programa de Lula é duas vezes maior que o de Ciro e equivale a 12 vezes o texto existente nesta página. Vai aqui um guia de leitura para ambos.
Queimando a gordura declaratória, a paixão pela palavra "parceria" (usada 14 vezes por Ciro, 11 por Lula) e as promessas genéricas, sobra em cada um dos programas algo como 15% do texto bruto. Na musculatura, descontada uma diferença abissal, são até parecidas.
A diferença abissal entre os dois programas está na visão que cada candidato tem a respeito da sua missão na Presidência. Lula amarrou-se à Constituição. Ciro antecipa que proporá ao Congresso uma mudança de regime. Ciro pretende ativar o dispositivo constitucional que permite a realização, com licença do Legislativo, de plebiscitos e referendos. Quer "parlamentarizar" a Presidência, mesmo sabendo-se que, em seus 44 anos de vida, essa modalidade de regime foi repudiada por dois plebiscitos e uma Constituinte. Na sua proposta mais radical, pretende obter do Parlamento uma emenda constitucional que permita tanto ao presidente como ao Congresso convocar unilateralmente eleições antecipadas para os dois Poderes. Barra pesada. Na América Latina, recentemente, só o coronel Hugo Chávez foi por aí. Se Jânio Quadros tivesse um dispositivo como esse à mão, talvez estivesse no poder até hoje, aos 85 anos. Ciro disputa a Presidência oferecendo-se para ser procônsul.
Lula e Ciro asseguram que os conjuntos de suas propostas trarão desenvolvimento, juros baixos, emprego e eficiência administrativa. Deixando esses aspectos de lado, pois ainda não apareceu maluco propondo estagnação, juros de 18%, desemprego de 20%, dólar a R$ 3 e apagão, vale listar algumas de sua propostas.
-Ambos propõem a regularização das propriedades imobiliárias dos moradores da periferia das grandes cidades. Estimando que existam 7 milhões de casas construídas em terrenos sem boa titulação e que cada uma delas valha R$ 5.000, um pedaço do andar de baixo está sentado sobre um patrimônio de R$ 35 bilhões que não serve como garantia de financiamento. Ciro apresenta algumas novidades de custo irrelevante. A saber:
-Reduzir a informalidade do mercado de trabalho. Diz como: unificando a carteira de trabalho e todos os cartões de benefícios sociais existentes por aí num só plástico. Ele permitirá ao governo estimular a formalização do emprego do portador. É uma idéia nova, pode estar errada, mas Lula denuncia a informalidade sem dizer o que se pode fazer pontualmente para reduzi-la.
-Acabar com o vestibular, substituindo-o por uma seleção baseada na pontuação obtida pelos alunos do ensino médio em exames federais regulares.
-Quer instituir o serviço social obrigatório, com duração de seis meses para os estudantes universitários.
-Universalizar o ensino médio num prazo de oito anos. (Lula sugere fazer isso em quatro.)
-Só as empresas que dão aos seus empregados (como determina a Constituição) alguma forma de participação nos lucros terão direito de fazer negócios com o governo federal.
-As universidades serão hierarquizadas. Algumas, melhores, atrairão os melhores alunos, que receberão bolsas para viver fora de suas cidades, dedicando-se integralmente aos estudo.
O programa de Lula é mais reflexivo. (Quem não gosta dele pode dizer que é vago.) Suas propostas específicas são ralas. Algumas delas:
-O governo federal complementará o orçamento de famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo.
-Um programa de estímulo às empresas para que contratem jovens.
-Extensão dos benefícios da Previdência Social praticamente para todos os 170 milhões de brasileiros.
-Bolsas de estudo para que jovens pobres completem o ensino médio ou superior. Eles dariam uma contrapartida ao Estado realizando serviços comunitários.
-Fim da CPMF, baixando-a para um valor simbólico até que caduque sua vigência.
-Restabelecimento da fidelidade partidária.
Num tema muito caro ao eleitorado -a segurança pública-, a essência reflexiva do programa do PT mostra-se superior ao estilo propositivo de Ciro Gomes.
O PT assenta-se num trabalho de 112 páginas, produzido pelo Instituto Cidadania. Reconhece a dificuldade para aprovar no Congresso uma lei que proíba a venda de armas, propõe aumentar as restrições a esse comércio. (Ciro propõe a proibição do porte de arma, a estatização das indústrias que as fabricam e a federalização do crime de seu contrabando.) O PT propõe uma reforma do sistema penitenciário, e Ciro, num dos piores momentos de seu programa, oferece a construção de penitenciárias "em regiões inóspitas". Resta saber qual diferença faz trancar um preso em Bangu ou na Amazônia, salvo se a intenção é azucrinar suas famílias.
O programa de Ciro está declaradamente aberto a sugestões e revisões. Isso não justifica que em seu sítio na internet haja duas versões diferentes. Numa não há uma só palavra sobre a pesca. No outro, há um tópico de 663 palavras. Levando em conta que o espaço dado à segurança foi de 403 palavras e à política industrial couberam 610, fica a falsa impressão de que pretende refundar uma república de pescadores. Nada grave, mas, no seu programa, o candidato diz que pretende acabar com o "reino do improviso".
Finalmente, espera-se que José Serra apresente o seu programa de governo antes de 6 de outubro.
Os programas estão nos seguintes endereços:
Lula: http://www.lula.org.br (O volume sobre segurança está no sítio do Instituto Cidadania, que anda meio neurastênico: http://www.icidadania.org.br)
Ciro com pesca: http://www.ciro23.com.br/23/
noticias/vernoticia.asp?id=282

Para baixar o texto de Ciro sem pesca: http://www.ciro23.com.br/23/noticias/
vernoticia.asp?id=282#Baixa


Moratória branca

Está em curso uma moratória branca no mercado brasileiro. Empresas que tomaram empréstimos em dólar e não conseguem rolar suas dívidas no mercado internacional bateram à porta da banca de Pindorama e viram-na fechada. Muitas tentaram lançar papéis novos no mercado e poucas encontraram tomadores. Desse jeito, só há um caminho: suspender o pagamento de dívidas vencidas e até mesmo de fornecedores.
Nessa fase inicial, quem deve não fala e quem não consegue receber evita tratar do assunto.

Há empresários que mostram o rosto

O PT divulga amanhã um manifesto assinado por cerca de cem empresários apoiando a candidatura de Lula. Espera-se que até o final da semana os signatários sejam 500. Coisa direta:
"Mais do que um manifesto, este anúncio é o desabafo de um grupo de empresários cansados de ouvir declarações que visam apenas tumultuar o processo".
Como ainda não apareceu um manifesto de empresários apoiando qualquer outro dos dois candidatos, Lula produziu uma saudável divisão no andar de cima. Surgiu o grupo dos que assinam manifesto, contrapondo-se a outro, que só assina cheques. Um tipo esquisito de cheques, porque apoiam os seus candidatos como pessoas físicas, mas sacam na conta dos acionistas. Em 94 e 98 os maiores benfeitores de FFHH foram os bancos Bradesco e Itaú, com pouco mais de R$ 2 milhões cada um. A maior doação de pessoa física ficou em R$ 70 mil, de um banqueiro.
O manifesto de apoio a Lula tem três assinaturas de empresários conhecidos: José Pessoa de Queirós Bisneto (o terceiro maior produtor de açúcar e álcool do país), o auditor Antoninho Trevisan e Michel Haradon, da indústria de defensivos agrícolas Fersol. Haradon foi soldado no exército de Israel, tornou-se pacifista e criou uma ONG em que juntou judeus e palestinos. Só se veste de branco e é o único dono de BMW que usa uma mulher como motorista. A Fersol tem 50% de mão-de-obra feminina. Em 95 esteve a um passo da falência. Devia US$ 10 milhões e anunciou que pagaria primeiro aos trabalhadores, depois aos fornecedores. Num segundo lote, aos bancos e, finalmente, ao governo. Hoje deve em torno de US$ 1 milhão, e os empregados têm 30% das cotas de participação no desempenho da empresa.

Dançando colados

Tudo indica que José Serra decidiu colar sua candidatura ao desempenho do governo de FFHH. Para quem ficou seis anos calado a respeito de sua ruinosa política econômica, é uma decisão audaciosa. (Na sessão do Senado em que se sabatinou o doutor Gustavo Franco antes que assumisse a presidência do Banco Central, disse ao senador Pedro Simon: "Ouça o meu silêncio".)
Pelo andar da carruagem, em janeiro do ano que vem, colado a FFHH, José Serra tomará o avião que levará o tucanato de volta a São Paulo.

FFHH vai deixar saudades, e não serão poucas

Aqui vão, por ordem cronológica, quatro episódios ocorridos neste mês, envolvendo Ciro Gomes, Lula e jornalistas.
1) Ciro Gomes deu uma entrevista aos repórteres Expedito Filho, Gerson Camarotti e Ronald Freitas, da revista "Época". Nela fizeram-lhe a seguinte pergunta:
"Por que o senhor colocou seu irmão Lúcio como tesoureiro de campanha?"
Ciro respondeu:
"Não é da sua conta".
Pouco depois foi mais claro:
"Vocês estão a serviço do Serra. Isso é lamentável. Eu li a entrevista do Serra. Foi laudatória".
2) Um repórter da Folha de S. Paulo perguntou a opinião de Ciro Gomes a respeito da relação do deputado José Carlos Martinez com o espólio de Paulo César Farias, de quem ele tomou um empréstimo de US$ 1,6 milhão. Martinez é o coordenador da campanha de Ciro. O $audo$o PC foi o coordenador da campanha presidencial de Fernando Collor de Mello. Ciro respondeu:
"Vocês estão a serviço do candidato do governo, que está desesperado. (...) Não há relação de dívida com morto. Isso é forçar a barra, vamos devagar com o andor. (...) Se uma pessoa privada tem uma dívida com outra pessoa privada, o que eu tenho com isso, amigo?".
3) Durante um almoço na Folha de S. Paulo, seu diretor de Redação, Otavio Frias Filho fez duas perguntas a Lula. Numa, indagou a que tipo de aprendizado dedicou-se nos últimos anos. O candidato considerou a pergunta preconceituosa e informou que não a responderia. Passaram os pratos, veio o café, e o jornalista interpelou-o sobre a aliança do PT com o PL, "linha auxiliar do malufismo". Lula respondeu que tentara alianças à esquerda, sem sucesso. Otavio Frias Filho interrompeu-o, classificando sua resposta como evasiva. "Assim não dá para continuar", respondeu Lula, abandonando a mesa, a sala e o prédio.
Na quarta-feira, numa palestra, Ciro Gomes informou: "Tenho um punhado de idéias para serem melhoradas no debate, mas aí vem um jornalista da Folha perguntar para deixar embutidas suspeições". (Referia-se a uma eventual curiosidade a respeito de sua relação com o deputado Martinez.)
Para que nenhum dos dois candidatos fique com a impressão de que esta nota é coisa daquele tipo de gente que o doutor Getúlio Vargas chamava de "jornalista dissolvente", vai aqui uma pergunta a ambos:
A que o senhor atribui a percepção, pelo povo, da sua qualificação como administrador, das virtudes cívicas de suas alianças e da clarividência de suas propostas?



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