São Paulo, Sábado, 28 de Agosto de 1999
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ENTREVISTA
Mangabeira Unger volta e prega "2ª Via"


Proposta de filósofo seria alternativa ao atual modelo brasileiro e à 3ª Via sugerida por Tony Blair


CLÓVIS ROSSI
do Conselho Editorial

O filósofo Roberto Mangabeira Unger (Universidade de Harvard), 52, está de volta ao Brasil, com o seu sotaque ainda norte-americano e com a determinação de vender o projeto do que batiza como uma "2ª Via".
Significa uma resposta tanto à "1ª Via", o atual modelo econômico brasileiro, que o filósofo chama de "idéia insensata que não pode dar certo", como à "3ª Via", a proposta de reforma da social-democracia defendida pelo premiê britânico Tony Blair.
A "2ª Via" tem duas etapas, a primeira defensiva, para o que resta do mandato de Fernando Henrique Cardoso. E a segunda começa por uma reestruturação da dívida interna, sem parecer calote, para que o Estado volte a ter condições de investir.
Segue-se o que Mangabeira Unger chama de "três grandes tarefas" (a mobilização dos recursos nacionais, a democratização da economia de mercado e o aprofundamento da democracia), discutidas em detalhes nesta entrevista, feita na manhã de terça-feira, no Golden Paulistânia, o apart-hotel dos Jardins em que o filósofo se hospeda enquanto ainda está na ponte aérea Brasil/Boston.

Folha - Fracassou o atual modelo político e econômico?
Mangabeira Unger -
O fato mais importante para compreender a situação atual é que o Brasil, nas primeiras oito décadas deste século, era um país muito desigual que crescia. Nas últimas duas décadas, o Brasil virou um país muito desigual que não cresce. O Brasil é um país cujo governo está apostando numa idéia insensata que não pode dar certo. O resumo dessa idéia é que a situação exige um grande esforço de austeridade do governo em cortar os gastos e que a única coisa que impede isso é o egoísmo e as irresponsabilidades políticas. Esta idéia é falsa ou, no máximo, uma meia verdade por várias razões. Primeiro, porque representa o sacrifício da aritmética ao dogma. A quase totalidade da receita líquida da União em 1999 ficará comprometida com o pagamento de juros da dívida pública interna. Não há nenhuma maneira de levantar o jugo financeiro que pesa sobre o Estado sem cortar esse nó górdio.
Em segundo lugar, porque essa visão subestima radicalmente a gravidade do constrangimento externo que a economia brasileira enfrenta. Estamos agora caminhando num espaço intermediário em que os juros baixaram o suficiente para começar a deixar de interessar ao capital financeiro, mas estão muito longe de baixar o suficiente para ajudar o produtor ou para aumentar o consumo.
Nesse espaço intermediário, a economia brasileira fica muito vulnerável a qualquer choque que venha de fora.
A terceira razão é que a austeridade só começaria a resolver o problema dos números se fosse radical e, sendo radical, não seria nem socialmente aceita e, mesmo que fosse aceita, não seria compatível com a retomada do crescimento econômico.
Então o projeto é todo ele baseado numa ilusão.

Folha - Mesmo que não houvesse nenhum choque forte externo, a vulnerabilidade persistiria ou nesse caso...
Mangabeira Unger -
A vulnerabilidade vem do veneno que é a mistura da desigualdade extrema com a estagnação econômica. É um veneno que vai matando o país aos poucos, materialmente e também espiritualmente. Um país em que o que resta do empresariado produtivo se vê como uma sobra que está acabando.

Folha - E o que se faz?
Mangabeira Unger -
Eu acho que nós temos que distinguir claramente duas tarefas: a tarefa de construir alternativa programática e política para o futuro, e a tarefa imediata do que fazer agora. Agora, temos de evitar o pior em três pontos essenciais: o primeiro ponto é a continuidade democrática, conquistada à duras penas. Temos de evitar de um lado a interrupção constitucional que seria um encurtamento forçado do mandato do presidente. E, de outro lado, evitar a formalização da tutela sob a qual cairia o presidente na forma de um parlamentarismo de araque, usado como recurso para evitar a perda de poder na sucessão presidencial.
Em segundo lugar, a independência nacional, a independência territorial, porque o Brasil hoje é um país inerme, incapaz de defender-se da ameaça de cerceamento, até de penetração territorial. Incapaz de defender o que resta da empresa nacional.
E o terceiro elemento desse mínimo defensivo para o país é substituir a rendição pontual à clientela e aos lobbies pela identificação e o salvamento das populações que estão nos extremos de miséria. Não é a mesma coisa que o projeto genérico de assistência aos pobres. É simplesmente o de ajudar aqueles que estão no extremo do desespero. E, para isso, julgo que as oposições precisam se juntar e formar uma espécie de cordão em volta do governo para exigir esse mínimo e apoiar o governo na medida em que ele se prontifique a assegurar esse mínimo. A mim me parece que o lema que conduz o atual presidente em seu comportamento político é o mesmo que adotava um primeiro-ministro inglês, Peter Young, do século 19: "Nenhuma concessão, exceto para as ameaças".

Folha - O que o leva a crer que um governo que adotou um caminho inteiramente oposto a esse poderia agora...
Mangabeira Unger -
O governo responde às ameaças. Se o país se levantar para se defender e claramente não se deixar confundir com um aglomerado de lobbies, com a busca de auto-salvação, tem como evitar o pior. Esse tem de ser o objetivo, porque vamos ser claros: o que está sendo preparado agora é a combinação de dois seguros. Um, no plano econômico, é a dolarização, se tudo descambar. E, no plano político, o parlamentarismo. Para evitar isso, os brasileiros de todas as classes sociais precisam resistir à tentação de se entregar à lógica do salve-se quem puder e se reunirem para exigir esse mínimo.

Folha - Como convencer a oposição a estender esse cordão de proteção em torno de......
Mangabeira Unger -
Aí é que está o problema, porque o Brasil hoje é um país que já deixou de ter um governo e ainda não tem uma oposição. Do meu ponto de vista, o nosso problema político mais grave é esse. Não é que não tenhamos governo ou que tenhamos um governo como é o nosso. O problema maior é que não temos uma oposição que se credencia ao país como alternativa. A minha impressão é que o presidente imagina que, se ele malograr definitivamente, será substituído pelo Lula e pelo PT, que é uma solução proveitosa para ele. Em primeiro lugar, pela empatia que há entre os dois, pela semelhança psicológica. Em segundo lugar, pela idéia de que a eleição do Lula seria a melhor vingança do atual presidente contra a elite ingrata. E, em terceiro lugar, pela confiança de que o malogro do Lula fará com que retrospectivamente se reabilite a imagem desse presidente agora tão desprezado. O problema é que os dois esqueceram de combinar isso com o eleitorado brasileiro, que certamente procurará uma alternativa mais séria do que a faca no peito da burguesia.

Folha - Ou seja, essa alternativa mais séria seria esse projeto político que o sr. mencionou antes?
Mangabeira Unger -
A alternativa é a segunda via que vamos discutir, não aquela terceira via que é a primeira via açucarada.

Folha - A terceira via a que o sr. se refere como primeira via açucarada é aquela defendida por Tony Blair, Gerhard Schroeder e outros líderes social-democratas?
Mangabeira Unger -
É. Aqui, naturalmente, tiveram que aumentar a quantidade de açúcar, porque a situação é mais grave.
A idéia básica é a de que, hoje, na política brasileira, há como que um discurso que é o discurso da lamentação social. Ah! Que coisa terrível um pobre, os miseráveis, a desigualdade. Desde a direita até a esquerda, estão todos diante do espelho e cada um se diz o mais social de todos. O social verdadeiro só vai existir com o refinanciamento do Estado e a reorganização das instituições. Isso que é o difícil, porque o refinanciamento do Estado e a reorganização das instituições não só são tarefas enormes, mas são distantes daquilo que é palpável para a população e para a classe média. Então, a nossa grande tarefa é dar conteúdo programático, forma política concreta e linguagem inteligível a este imperativo de reorganização do país. A segunda via que eu preconizo é isso. É a reconciliação da democracia com o desenvolvimento pelo refinanciamento do Estado e pela reorganização das instituições.

Folha - Quando o sr. fala em refinanciamento, está falando em aumento da carga fiscal?
Mangabeira Unger -
Nós temos três grandes tarefas: a mobilização dos recursos nacionais, a democratização da economia de mercado e o aprofundamento da democracia.
A mobilização dos recursos nacionais significa o Brasil reunir os meios práticos para poder andar com as próprias pernas, dentro da idéia de que o capital estrangeiro é tanto mais útil quanto menos se precise dele. E a preliminar de tudo é cortar esse nó górdio da dívida pública interna a que eu me referia. Uma renegociação dos termos dessa dívida para alongar prazos e diminuir os juros. E essa renegociação tem de minimizar o trauma aos vínculos contratuais. Não pode se deixar confundir com calote. Ela tem de ser criteriosa e distinguir entre o capital estrangeiro que volta para casa e o capital brasileiro, muitas vezes travestido de estrangeiro e refugiado nos paraísos fiscais.
A renegociação da dívida só é viável sob o escudo protetor do controle do movimento do dinheiro para dentro e para fora do país. Se não, o governo fica vulnerável à chantagem dos rentistas que vivem desses juros do Estado.
Se não aceitarem os termos, vão embora para o Caribe. Então isso é que tem de ser cortado. A idéia que existe na elite do poder no Brasil é: ou nós aceitamos todo o pacote de Stanley Fischer (vice-diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional) e das casas de Wall Street ou então nós estamos com o Mahatir (primeiro-ministro da Malásia que impôs controle de capitais). Somos uns bandidos expulsos do sistema internacional. Quando, na verdade, nós podemos e precisamos construir uma alternativa dentro desse espaço intermediário. A preliminar, portanto, é esse corte do estrangulamento representado pela dívida pública interna. Aí sim podemos adotar o regime tributário que, incidindo sobre o consumo, desonere a produção e o trabalho. E organizar um sistema de poupança previdenciária compulsória proporcional à renda dos contribuintes que se junte ao esforço de reorganização das finanças públicas. Tudo isso vem a ser a mobilização dos recursos nacionais. A segunda tarefa é a democratização. O que é a ideologia do mercado hoje no Brasil? O que significa na prática? Significa a ditadura de uma minoria que tem a chave do mercado sobre a maioria que não tem. O que nós precisamos fazer é reinventar a forma institucional de mercado, porque debaixo dessa classe endinheirada há um mundo de emergentes, um mundo que está adotando a cultura da auto-ajuda, condenado ao regime do improviso e do quebra-galho e já desesperançado não só do Estado, mas da política e da construção de soluções coletivas. A reconciliação do desenvolvimento com democracia só é possível com a construção de uma parceria do Estado com esse mundo emergindo de baixo.
Essa democratização do mercado exige três tipos de iniciativas: em primeiro lugar, precisamos rejeitar o dogma do livre comércio absoluto. Saber dosar proteção e abertura, segundo regras e critérios e dentro do princípio de que a cada limitação da concorrência estrangeira há de corresponder um esforço de intensificar a concorrência interna, quebrando os grandes oligopólios, mas, sobretudo, instrumentalizando os pequenos.
Segunda tarefa: construir na prática os instrumentos institucionais dessa parceria entre o Estado e os emergentes. Por exemplo, fazendo para toda a economia aquilo que os Estados Unidos no século 19 fizeram para a agricultura, quando organizaram, na base de uma parceria entre o governo e o pequeno fazendeiro, a agricultura mais espetacularmente eficiente do mundo.
O terceiro princípio é assegurar o poder aquisitivo que sustente esse ímpeto produtivista e fazê-lo de uma forma que minimize o risco de volta da inflação. O mais importante é a baixa de juros que, por sua vez, só é possível por essa reorganização da dívida pública interna. O resto é com o salário. Do meio da hierarquia salarial para cima generalizar na prática o princípio de participação dos empregados nos lucros da empresa e, na base da hierarquia salarial, grandes projetos de obras públicas, que engajem as comunidades organizadas do país, multiplicando empregos e oportunidades econômicas. Então esse esforço de descentralizar radicalmente o acesso aos recursos e às oportunidades da produção é uma parte daquilo que eu chamo a democratização do mercado.
A outra parte é uma política social que seja muito mais capacitadora do que compensatória. Nós só vamos ter escola pública e hospital público que preste no Brasil quando a escola e o hospital forem suficientemente bons para incorporar a classe média. Só quando a classe média for beneficiária da ação social do Estado é que poderá ser fiel fiadora da sua qualidade.
A democratização do mercado só vai adiante no Brasil pelo aumento da pressão popular institucionalizada. Precisamos organizar instituições que elevem a temperatura da política brasileira, mas de uma forma organizada e compatível com a continuidade constitucional.
O presidencialismo é um sistema construído para perpetuar os impasses. Então, nós precisamos equipá-lo de mecanismo para a resolução pronta dos impasses, de um lado por eleições e plebiscitos, e de outro lado pela faculdade que teriam tanto o Congresso quanto o presidente de convocar eleições antecipadas. Seria uma espécie de parlamentarização do presidencialismo, mas uma parlamentarização com o sentido de acelerar a política. Isso tem que ser combinado por um grande esforço de diminuir a influência de dinheiro na política pelo financiamento público das campanhas eleitorais e por uma tentativa de aumentar os recursos que têm as pessoas comuns para conhecerem e reivindicarem os seus direitos. Criar no Brasil uma cultura de reivindicação do direito.

Folha - Isso é fácil de falar, mas é muito difícil de fazer. Como é que se consegue criar esse clima numa sociedade que está caminhando para o cinismo?
Mangabeira Unger -
Eu tenho viajado pelo país, falado com gente de todas as classes sociais e sinto que há agora no coração do brasileiro, nas mesmas pessoas, uma dualidade entre duas espiritualidades. De um lado há a ética picaresca que descamba para o salve-se quem puder. A nossa classe média assimilou, junto com a retórica da fatalidade da globalização, a desilusão da política. Não podemos sentir e pensar como suíços ou suecos se não moramos na Suíça ou na Suécia, mas num país em que tudo ainda depende do encaminhamento coletivo de problemas coletivos e soluções coletivas aos problemas coletivos.
Mas, por outro lado também, há no país, em todas as classes, uma cultura de auto-ajuda. Há um imenso esforço do brasileiro de emergir, de dignificar-se, de qualificar-se, e não encontra ainda voz política e projeto.

Folha - Essa voz política normalmente passa por instâncias políticas, partidos, sindicatos, enfim, as organizações convencionais do mundo democrático. No Brasil, quem é que poderia assumir o comando dessa voz política ou o sr. imagina também um outro tipo de voz política que não seja a convencional, partidária?
Mangabeira Unger -
Eu diria, em primeiro lugar, que um dos agouros de mudança no Brasil hoje é o que está acontecendo com a classe média. Porque as grandes mudanças na história do Brasil sempre ocorreram naqueles momentos em que a classe média se separou da plutocracia de viés colonial. Deixou de ser massa de manobra e passou a liderar um projeto de reinvenção do país.
Assim foi com a própria Independência, com a abolição da escravatura, com o movimento republicano, a Aliança Liberal, o desenvolvimentismo dos anos 50, a campanha das diretas. Tudo no Brasil aconteceu assim. E agora a classe média está num desses momentos em que ela se sente barrada da festa e, ao mesmo tempo, não vê caminho, porque o que aparece mais é uma oposição (o PT) não aceita pela maioria desses descontentes como caminho.
Precisamos construir pouco a pouco uma força de centro-esquerda, um veículo dessa segunda via e que supere esse discurso mentiroso da lamentação social. Encontre o caminho prático do refinanciamento do Estado e da reorganização das instituições, o que tende a ter desfecho, evidentemente, numa candidatura presidencial e na luta pelo poder.
O terceiro elemento nessa equação é formar no país uma corrente de opinião em torno de uma idéia. Isso significa que é preciso chegar ao povão por meio da classe média. É preciso consolidar uma idéia e vê-la compartilhada por muitas cabeças. E daí esse esforço de discussão e propagação a que eu estou me entregando.

Folha - Numa sociedade de massas, você necessita, primeiro, sintetizar essa idéia-força numa espécie de slogan; dois, de um líder...
Mangabeira Unger -
As lideranças se criam. A liderança é vital, é importante, mas só é fecunda se é um instrumento desse projeto coletivo. Sabe que eu apoiei a candidatura de Ciro Gomes e estou convicto de que, mais do que nunca, ele é a melhor alternativa como candidato presidencial, mas acho muito importante que não se confunda essa discussão de qual é a melhor opção de candidato presidencial com a discussão maior do projeto para o país.


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