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ENTREVISTA
Mangabeira Unger volta e prega "2ª Via"
Proposta de filósofo seria alternativa ao atual modelo brasileiro e à 3ª Via sugerida por Tony Blair
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CLÓVIS ROSSI
do Conselho Editorial
O filósofo Roberto Mangabeira
Unger (Universidade de Harvard), 52, está de volta ao Brasil,
com o seu sotaque ainda norte-americano e com a determinação
de vender o projeto do que batiza
como uma "2ª Via".
Significa uma resposta tanto à
"1ª Via", o atual modelo econômico brasileiro, que o filósofo chama
de "idéia insensata que não pode
dar certo", como à "3ª Via", a proposta de reforma da social-democracia defendida pelo premiê britânico Tony Blair.
A "2ª Via" tem duas etapas, a
primeira defensiva, para o que
resta do mandato de Fernando
Henrique Cardoso. E a segunda
começa por uma reestruturação
da dívida interna, sem parecer calote, para que o Estado volte a ter
condições de investir.
Segue-se o que Mangabeira Unger chama de "três grandes tarefas" (a mobilização dos recursos
nacionais, a democratização da
economia de mercado e o aprofundamento da democracia), discutidas em detalhes nesta entrevista, feita na manhã de terça-feira, no Golden Paulistânia, o
apart-hotel dos Jardins em que o
filósofo se hospeda enquanto ainda está na ponte aérea Brasil/Boston.
Folha - Fracassou o atual modelo político e econômico?
Mangabeira Unger - O fato
mais importante para compreender a situação atual é que o Brasil,
nas primeiras oito décadas deste
século, era um país muito desigual que crescia. Nas últimas duas
décadas, o Brasil virou um país
muito desigual que não cresce. O
Brasil é um país cujo governo está
apostando numa idéia insensata
que não pode dar certo. O resumo
dessa idéia é que a situação exige
um grande esforço de austeridade
do governo em cortar os gastos e
que a única coisa que impede isso
é o egoísmo e as irresponsabilidades políticas. Esta idéia é falsa ou,
no máximo, uma meia verdade
por várias razões. Primeiro, porque representa o sacrifício da aritmética ao dogma. A quase totalidade da receita líquida da União
em 1999 ficará comprometida
com o pagamento de juros da dívida pública interna. Não há nenhuma maneira de levantar o jugo financeiro que pesa sobre o Estado sem cortar esse nó górdio.
Em segundo lugar, porque essa
visão subestima radicalmente a
gravidade do constrangimento
externo que a economia brasileira
enfrenta. Estamos agora caminhando num espaço intermediário em que os juros baixaram o
suficiente para começar a deixar
de interessar ao capital financeiro,
mas estão muito longe de baixar o
suficiente para ajudar o produtor
ou para aumentar o consumo.
Nesse espaço intermediário, a
economia brasileira fica muito
vulnerável a qualquer choque que
venha de fora.
A terceira razão é que a austeridade só começaria a resolver o
problema dos números se fosse
radical e, sendo radical, não seria
nem socialmente aceita e, mesmo
que fosse aceita, não seria compatível com a retomada do crescimento econômico.
Então o projeto é todo ele baseado numa ilusão.
Folha - Mesmo que não houvesse nenhum choque forte externo, a vulnerabilidade persistiria ou nesse caso...
Mangabeira Unger - A vulnerabilidade vem do veneno que é a
mistura da desigualdade extrema
com a estagnação econômica. É
um veneno que vai matando o
país aos poucos, materialmente e
também espiritualmente. Um
país em que o que resta do empresariado produtivo se vê como
uma sobra que está acabando.
Folha - E o que se faz?
Mangabeira Unger - Eu acho
que nós temos que distinguir claramente duas tarefas: a tarefa de
construir alternativa programática e política para o futuro, e a tarefa imediata do que fazer agora.
Agora, temos de evitar o pior em
três pontos essenciais: o primeiro
ponto é a continuidade democrática, conquistada à duras penas.
Temos de evitar de um lado a interrupção constitucional que seria um encurtamento forçado do
mandato do presidente. E, de outro lado, evitar a formalização da
tutela sob a qual cairia o presidente na forma de um parlamentarismo de araque, usado como recurso para evitar a perda de poder na
sucessão presidencial.
Em segundo lugar, a independência nacional, a independência
territorial, porque o Brasil hoje é
um país inerme, incapaz de defender-se da ameaça de cerceamento, até de penetração territorial. Incapaz de defender o que
resta da empresa nacional.
E o terceiro elemento desse mínimo defensivo para o país é
substituir a rendição pontual à
clientela e aos lobbies pela identificação e o salvamento das populações que estão nos extremos de
miséria. Não é a mesma coisa que
o projeto genérico de assistência
aos pobres. É simplesmente o de
ajudar aqueles que estão no extremo do desespero. E, para isso, julgo que as oposições precisam se
juntar e formar uma espécie de
cordão em volta do governo para
exigir esse mínimo e apoiar o governo na medida em que ele se
prontifique a assegurar esse mínimo. A mim me parece que o lema
que conduz o atual presidente em
seu comportamento político é o
mesmo que adotava um primeiro-ministro inglês, Peter Young,
do século 19: "Nenhuma concessão, exceto para as ameaças".
Folha - O que o leva a crer que
um governo que adotou um caminho inteiramente oposto a
esse poderia agora...
Mangabeira Unger - O governo
responde às ameaças. Se o país se
levantar para se defender e claramente não se deixar confundir
com um aglomerado de lobbies,
com a busca de auto-salvação,
tem como evitar o pior. Esse tem
de ser o objetivo, porque vamos
ser claros: o que está sendo preparado agora é a combinação de
dois seguros. Um, no plano econômico, é a dolarização, se tudo
descambar. E, no plano político, o
parlamentarismo. Para evitar isso, os brasileiros de todas as classes sociais precisam resistir à tentação de se entregar à lógica do
salve-se quem puder e se reunirem para exigir esse mínimo.
Folha - Como convencer a
oposição a estender esse cordão
de proteção em torno de......
Mangabeira Unger - Aí é que
está o problema, porque o Brasil
hoje é um país que já deixou de ter
um governo e ainda não tem uma
oposição. Do meu ponto de vista,
o nosso problema político mais
grave é esse. Não é que não tenhamos governo ou que tenhamos
um governo como é o nosso. O
problema maior é que não temos
uma oposição que se credencia ao
país como alternativa. A minha
impressão é que o presidente
imagina que, se ele malograr definitivamente, será substituído pelo
Lula e pelo PT, que é uma solução
proveitosa para ele. Em primeiro
lugar, pela empatia que há entre
os dois, pela semelhança psicológica. Em segundo lugar, pela idéia
de que a eleição do Lula seria a
melhor vingança do atual presidente contra a elite ingrata. E, em
terceiro lugar, pela confiança de
que o malogro do Lula fará com
que retrospectivamente se reabilite a imagem desse presidente agora tão desprezado. O problema é
que os dois esqueceram de combinar isso com o eleitorado brasileiro, que certamente procurará
uma alternativa mais séria do que
a faca no peito da burguesia.
Folha - Ou seja, essa alternativa mais séria seria esse projeto
político que o sr. mencionou antes?
Mangabeira Unger - A alternativa é a segunda via que vamos
discutir, não aquela terceira via
que é a primeira via açucarada.
Folha - A terceira via a que o
sr. se refere como primeira via
açucarada é aquela defendida
por Tony Blair, Gerhard Schroeder e outros líderes social-democratas?
Mangabeira Unger - É. Aqui,
naturalmente, tiveram que aumentar a quantidade de açúcar,
porque a situação é mais grave.
A idéia básica é a de que, hoje,
na política brasileira, há como
que um discurso que é o discurso
da lamentação social. Ah! Que
coisa terrível um pobre, os miseráveis, a desigualdade. Desde a direita até a esquerda, estão todos
diante do espelho e cada um se diz
o mais social de todos. O social
verdadeiro só vai existir com o refinanciamento do Estado e a reorganização das instituições. Isso
que é o difícil, porque o refinanciamento do Estado e a reorganização das instituições não só são
tarefas enormes, mas são distantes daquilo que é palpável para a
população e para a classe média.
Então, a nossa grande tarefa é dar
conteúdo programático, forma
política concreta e linguagem inteligível a este imperativo de reorganização do país. A segunda via
que eu preconizo é isso. É a reconciliação da democracia com o desenvolvimento pelo refinanciamento do Estado e pela reorganização das instituições.
Folha - Quando o sr. fala em
refinanciamento, está falando
em aumento da carga fiscal?
Mangabeira Unger - Nós temos
três grandes tarefas: a mobilização dos recursos nacionais, a democratização da economia de
mercado e o aprofundamento da
democracia.
A mobilização dos recursos nacionais significa o Brasil reunir os
meios práticos para poder andar
com as próprias pernas, dentro da
idéia de que o capital estrangeiro é
tanto mais útil quanto menos se
precise dele. E a preliminar de tudo é cortar esse nó górdio da dívida pública interna a que eu me referia. Uma renegociação dos termos dessa dívida para alongar
prazos e diminuir os juros. E essa
renegociação tem de minimizar o
trauma aos vínculos contratuais.
Não pode se deixar confundir
com calote. Ela tem de ser criteriosa e distinguir entre o capital
estrangeiro que volta para casa e o
capital brasileiro, muitas vezes
travestido de estrangeiro e refugiado nos paraísos fiscais.
A renegociação da dívida só é
viável sob o escudo protetor do
controle do movimento do dinheiro para dentro e para fora do
país. Se não, o governo fica vulnerável à chantagem dos rentistas
que vivem desses juros do Estado.
Se não aceitarem os termos, vão
embora para o Caribe. Então isso
é que tem de ser cortado. A idéia
que existe na elite do poder no
Brasil é: ou nós aceitamos todo o
pacote de Stanley Fischer (vice-diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional) e das casas de
Wall Street ou então nós estamos
com o Mahatir (primeiro-ministro da Malásia que impôs controle
de capitais). Somos uns bandidos
expulsos do sistema internacional. Quando, na verdade, nós podemos e precisamos construir
uma alternativa dentro desse espaço intermediário. A preliminar,
portanto, é esse corte do estrangulamento representado pela dívida pública interna. Aí sim podemos adotar o regime tributário
que, incidindo sobre o consumo,
desonere a produção e o trabalho.
E organizar um sistema de poupança previdenciária compulsória proporcional à renda dos contribuintes que se junte ao esforço
de reorganização das finanças públicas. Tudo isso vem a ser a mobilização dos recursos nacionais.
A segunda tarefa é a democratização. O que é a ideologia do mercado hoje no Brasil? O que significa
na prática? Significa a ditadura de
uma minoria que tem a chave do
mercado sobre a maioria que não
tem. O que nós precisamos fazer é
reinventar a forma institucional
de mercado, porque debaixo dessa classe endinheirada há um
mundo de emergentes, um mundo que está adotando a cultura da
auto-ajuda, condenado ao regime
do improviso e do quebra-galho e
já desesperançado não só do Estado, mas da política e da construção de soluções coletivas. A reconciliação do desenvolvimento
com democracia só é possível
com a construção de uma parceria do Estado com esse mundo
emergindo de baixo.
Essa democratização do mercado exige três tipos de iniciativas:
em primeiro lugar, precisamos
rejeitar o dogma do livre comércio absoluto. Saber dosar proteção e abertura, segundo regras e
critérios e dentro do princípio de
que a cada limitação da concorrência estrangeira há de corresponder um esforço de intensificar
a concorrência interna, quebrando os grandes oligopólios, mas,
sobretudo, instrumentalizando
os pequenos.
Segunda tarefa: construir na
prática os instrumentos institucionais dessa parceria entre o Estado e os emergentes. Por exemplo, fazendo para toda a economia aquilo que os Estados Unidos
no século 19 fizeram para a agricultura, quando organizaram, na
base de uma parceria entre o governo e o pequeno fazendeiro, a
agricultura mais espetacularmente eficiente do mundo.
O terceiro princípio é assegurar
o poder aquisitivo que sustente
esse ímpeto produtivista e fazê-lo
de uma forma que minimize o risco de volta da inflação. O mais importante é a baixa de juros que,
por sua vez, só é possível por essa
reorganização da dívida pública
interna. O resto é com o salário.
Do meio da hierarquia salarial para cima generalizar na prática o
princípio de participação dos empregados nos lucros da empresa e,
na base da hierarquia salarial,
grandes projetos de obras públicas, que engajem as comunidades
organizadas do país, multiplicando empregos e oportunidades
econômicas. Então esse esforço
de descentralizar radicalmente o
acesso aos recursos e às oportunidades da produção é uma parte
daquilo que eu chamo a democratização do mercado.
A outra parte é uma política social que seja muito mais capacitadora do que compensatória. Nós
só vamos ter escola pública e hospital público que preste no Brasil
quando a escola e o hospital forem suficientemente bons para
incorporar a classe média. Só
quando a classe média for beneficiária da ação social do Estado é
que poderá ser fiel fiadora da sua
qualidade.
A democratização do mercado
só vai adiante no Brasil pelo aumento da pressão popular institucionalizada. Precisamos organizar instituições que elevem a temperatura da política brasileira,
mas de uma forma organizada e
compatível com a continuidade
constitucional.
O presidencialismo é um sistema construído para perpetuar os
impasses. Então, nós precisamos
equipá-lo de mecanismo para a
resolução pronta dos impasses,
de um lado por eleições e plebiscitos, e de outro lado pela faculdade
que teriam tanto o Congresso
quanto o presidente de convocar
eleições antecipadas. Seria uma
espécie de parlamentarização do
presidencialismo, mas uma parlamentarização com o sentido de
acelerar a política. Isso tem que
ser combinado por um grande esforço de diminuir a influência de
dinheiro na política pelo financiamento público das campanhas
eleitorais e por uma tentativa de
aumentar os recursos que têm as
pessoas comuns para conhecerem e reivindicarem os seus direitos. Criar no Brasil uma cultura de
reivindicação do direito.
Folha - Isso é fácil de falar, mas
é muito difícil de fazer. Como é
que se consegue criar esse clima
numa sociedade que está caminhando para o cinismo?
Mangabeira Unger - Eu tenho
viajado pelo país, falado com gente de todas as classes sociais e sinto que há agora no coração do
brasileiro, nas mesmas pessoas,
uma dualidade entre duas espiritualidades. De um lado há a ética
picaresca que descamba para o
salve-se quem puder. A nossa
classe média assimilou, junto com
a retórica da fatalidade da globalização, a desilusão da política. Não
podemos sentir e pensar como
suíços ou suecos se não moramos
na Suíça ou na Suécia, mas num
país em que tudo ainda depende
do encaminhamento coletivo de
problemas coletivos e soluções
coletivas aos problemas coletivos.
Mas, por outro lado também, há
no país, em todas as classes, uma
cultura de auto-ajuda. Há um
imenso esforço do brasileiro de
emergir, de dignificar-se, de qualificar-se, e não encontra ainda
voz política e projeto.
Folha - Essa voz política normalmente passa por instâncias
políticas, partidos, sindicatos,
enfim, as organizações convencionais do mundo democrático.
No Brasil, quem é que poderia
assumir o comando dessa voz
política ou o sr. imagina também um outro tipo de voz política que não seja a convencional,
partidária?
Mangabeira Unger - Eu diria,
em primeiro lugar, que um dos
agouros de mudança no Brasil
hoje é o que está acontecendo
com a classe média. Porque as
grandes mudanças na história do
Brasil sempre ocorreram naqueles momentos em que a classe
média se separou da plutocracia
de viés colonial. Deixou de ser
massa de manobra e passou a liderar um projeto de reinvenção
do país.
Assim foi com a própria Independência, com a abolição da escravatura, com o movimento republicano, a Aliança Liberal, o desenvolvimentismo dos anos 50, a
campanha das diretas. Tudo no
Brasil aconteceu assim. E agora a
classe média está num desses momentos em que ela se sente barrada da festa e, ao mesmo tempo,
não vê caminho, porque o que
aparece mais é uma oposição (o
PT) não aceita pela maioria desses
descontentes como caminho.
Precisamos construir pouco a
pouco uma força de centro-esquerda, um veículo dessa segunda via e que supere esse discurso
mentiroso da lamentação social.
Encontre o caminho prático do
refinanciamento do Estado e da
reorganização das instituições, o
que tende a ter desfecho, evidentemente, numa candidatura presidencial e na luta pelo poder.
O terceiro elemento nessa equação é formar no país uma corrente de opinião em torno de uma
idéia. Isso significa que é preciso
chegar ao povão por meio da classe média. É preciso consolidar
uma idéia e vê-la compartilhada
por muitas cabeças. E daí esse esforço de discussão e propagação a
que eu estou me entregando.
Folha - Numa sociedade de
massas, você necessita, primeiro, sintetizar essa idéia-força
numa espécie de slogan; dois,
de um líder...
Mangabeira Unger - As lideranças se criam. A liderança é vital, é importante, mas só é fecunda se é um instrumento desse
projeto coletivo. Sabe que eu
apoiei a candidatura de Ciro Gomes e estou convicto de que, mais
do que nunca, ele é a melhor alternativa como candidato presidencial, mas acho muito importante
que não se confunda essa discussão de qual é a melhor opção de
candidato presidencial com a discussão maior do projeto para o
país.
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