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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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JANIO DE FREITAS

Os modificados

A inda que ilegal -e quem assim a definiu foi o próprio signatário, o presidente em exercício José Alencar- a medida provisória que autoriza o proibido plantio de soja geneticamente modificada veio na ocasião certa. Não foi sensata a expectativa de que a soja pura, e comprovadamente saudável, pudesse ser defendida nestes tempos de políticos e autoridades geneticamente modificados.
A liberação da soja adulterada, que atende a interesses imensos de empresas multinacionais e do governo americano, em termos de respeitabilidade administrativa corresponde, no governo Lula, à privatização no governo Fernando Henrique. Ou, o que dá no mesmo, à entrega do Sistema de Vigilância da Amazônia-Sivam à multinacional Raytheon.
A prepotência da liberação, à margem de legislação interna e de acordos internacionais subscritos pelo Brasil, não encontraria melhor representação do que esta frase de Luiz Inácio Lula da Silva em Nova York: "Zé Alencar sabe o que fazer e vai fazer do que jeito que tem que fazer". Interessante é que Lula, podendo emitir a MP, a tenha protelado até deixá-la para o presidente em exercício. Já houve um caso assim.
Era o governo Lacerda no então Estado da Guanabara. Construtores, incorporadores e vendedores de imóveis no Rio articularam, com políticos estaduais encabeçados por Amaral Netto e com o governo, uma alteração dos gabaritos urbanos, até ali limitados a oito andares, e assim mesmo só em determinadas áreas, para preservar a visão panorâmica. A opinião carioca via com escândalo a proposta de mudança. Logo, Lacerda não a sancionaria. Ele, não. Deixou, enquanto viajava, para o vice Raphael de Almeida Magalhães sancionar. Não tardou a desfiguração do panorama: as belas e originais montanhas que circundam e penetram a cidade, caso de floresta urbana única no mundo, sumiram atrás de barreiras de concreto.
Se José Alencar fez "do jeito que tem [ou tinha] que fazer", é de menor importância. Foram introduzidas algumas ressalvas, que deram à ministra Marina Silva o pretexto para esquecer o que disse e escreveu, mas continuar ministra -porém agora integrada aos transgênicos. Ficou proibido, sim, o plantio da soja adulterada em áreas indígenas e de preservação ambiental. E quem pensaria em fazer plantio de soja, que é necessariamente em planos e muito extensivo, nas matas de índios ou em ambientes especiais?
Não é menos ilusória a liberação restringida à safra 2003/ 2004. A liberação anterior, feita por Lula contra a lei, acordos e sentenças, também seria a única, e só porque a soja marota já fora plantada, era fato consumado. Um fato consumado contra a lei que não foi punido, foi premiado. Agora, a nova liberação já autoriza o plantio a ser feito. Fica claro que a atual MP é só outro degrau, para chegar à liberação permanente quando as reações arrefeçam.
Além da proibição legal, o plantio da soja transgênica está vedado, no Brasil, por duas decisões judiciais. E uma das premissas essenciais do regime democrático, com sua típica independência dos três Poderes, é que o Executivo (governo, pois) não aja, a não ser por meio judicial, para contrariar ou invalidar decisão do Judiciário. Há mais de meio século esse preceito ficou protegido até em lei, contra qualquer subterfúgio.
Por falar nisso, o argumento de que os agricultores gaúchos plantaram a soja proibida em atitude de desobediência civil é, mais do subterfúgio, cinismo. Por que o plantio de maconha, igualmente posto sob proibição legal e pelos mesmos critérios de proteção da sociedade, não seria desobediência civil, em vez de resultar em prisão?
São conhecidos efeitos nocivos da soja transgênica em parte da fauna e ainda não avaliados os efeitos no organismo humano. Como nem todos viviam de bravatas até alcançar o poder e nem só de transgênicos se fazem as autoridades, estão previstas reações de desembargadores, juízes e procuradores da República aos efeitos, já tão conhecidos e experimentados, de ações governamentais que confrontam leis e decisões judiciais.
Até lá, vamos rir com a história de que foi por "erro de e-mail", no Planalto, a publicação no Diário Oficial da MP recusada por José Alencar, e não a que ele enfim assinou. É tudo muito transgênico neste governo.


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