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FÓRUM SOCIAL
Para intelectuais, ONGs estão se politizando e Porto Alegre reflete ideais "antiimperialistas" cada vez mais organizados
Encontro forma "dissenso de Washington"
FERNANDO DE BARROS E SILVA
ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE
Há uma espécie de "dissenso de
Washington" em gestação, e o Fórum Social Mundial, na sua anarquia de vozes, seria a expressão
disso. Formado principalmente
por ONGs que estão se politizando e se aproximando de maneira
nova da esquerda institucional,
esse movimento social difuso seria fundamentalmente "antiimperialista", no sentido de que se
contrapõe em várias frentes, e
com propostas, aos efeitos da hegemonia americana no planeta.
Mas, até que essa insatisfação
criativa vista em Porto Alegre
possa se traduzir em poder político efetivo, há um longo caminho a
ser percorrido. E ele se dá necessariamente no espaço dos Estados
nacionais. São conclusões do
cientista político José Luís Fiori,
professor da Universidade Federal do Rio, e de Paulo Arantes,
professor do Departamento de Filosofia da USP, dois dos maiores
intelectuais da esquerda brasileira. Fiori lança hoje, no Fórum Social, seu novo livro, "Brasil no Espaço", da coleção "Zero à Esquerda", dirigida por Arantes. É uma
espécie de continuidade de "Os
Moedeiros Falsos" (1997), primeira coletânea de artigos do autor
sobre os descaminhos do governo
FHC. A Folha reuniu Fiori e
Arantes para uma entrevista.
Folha - As pessoas, mesmo os participantes, estão com grande dificuldade de entender o que está
ocorrendo em Porto Alegre. O que
significa este fórum anti-Davos?
Paulo Arantes - É difícil saber
porque, em primeiro lugar, não é
possível acompanhar tudo. São
cerca de 400 oficinas, mais representativas que as mesas-redondas. A imprensa ignora as oficinas
e acaba indo aos grandes eventos,
onde aparecem os políticos e alguns intelectuais de velha guarda.
É a ponta do iceberg. Se você
olhar apenas o catálogo das oficinas, verá que 90% dos assuntos
cobertos são internacionais, de
tudo quanto é espécie. E tudo propositivo. Eis o paradoxo. "A esquerda não propõe nada" é o bordão que mais se ouve. Olhando as
oficinas, dá vontade de dizer: vamos parar de propor e começar a
pensar com categorias novas o
que está acontecendo na história
mundial. Só tem proposta, idéias
para fazer coisas. No fundo, o que
eles dizem, sem dizer, é: "Vamos
tomar o poder da OMC, do Banco
Mundial, e implementar essas políticas tão sensatas", o que, evidentemente, é um disparate.
Folha - O senhor está descrevendo o modo de operar das ONGs. Falta um canal político para esse movimento social, não?
Arantes - Falta a transformação
dessa força social em força política. No momento em que isso
ocorrer, há uma reviravolta institucional. Pouca gente notou, mas
as ONGs estão se politizando. E
estão se politizando porque diariamente elas vêem e enfrentam
barbaridades. Essa é a grande novidade do fórum. As ONGs estão
deixando de ser gracinhas ambientalistas inofensivas, que fazem desfiles carnavalescos sob os
aplausos de americanos e europeus. Os partidos de esquerda,
por sua vez, estão se aproximando de maneira nova desse pessoal,
sem nenhum tipo de nostalgia
vanguardista. Está havendo uma
junção, que é nova.
José Luís Fiori -Há outras coisas.
Há sete anos, ninguém nem sabia
o que era Davos. Muito do que escrevi no início dos anos 90 foi lendo os relatórios de Davos. Ninguém lia aquela porcaria. Davos
era tão discreto quanto todas as
coisas que as finanças fazem. Davos ficou famoso porque se desidentificou do interesse coletivo.
Hoje todo mundo percebe que
eles são um grupo de interesse,
que não estão lá discutindo destinos inelutáveis da humanidade.
Folha - E o fórum de Porto Alegre,
representa o quê?
Fiori -Ele é por um lado o retrato
de um novo surto internacionalista, que se dá no momento de auge
do império americano. Reúne governantes, movimentos sociais,
delegações nacionais, partidos,
sindicatos, ONGs, etnias etc. com
causas, projetos, políticas, programas e intenções muito heterogêneos. O denominador comum é o
sentimento geral de que as coisas
pioraram nos anos de apogeu da
globalização financeira e do poder americano. A fantasia de alguns marxistas agora vem dizer
"a causa do operariado era uma
só, essa agora é múltipla". Bobagem pura. As causas do proletariado sempre foram heterogêneas, dentro de cada país, entre os
países, em cada setor, entre os sindicatos. Há uma idealização do
passado: "Antigamente tínhamos
uma causa única de esquerda, representada pelo proletariado". Isso é nostalgia equivocada. O problema, ontem como hoje, é o mesmo: onde e quando é possível fazer a síntese da multiplicidade das
causas? Como sempre, o campo e
o plano para fazer isso é a política.
Para transformar um troço como
esse de Porto Alegre num programa é preciso de poder e um centro
de poder a ser conquistado. E só
existe poder unificado nos Estados nacionais. É aí que se dá a luta
política programática. Apesar da
globalização, tem três ou quatro
coisas que não se globalizam nunca: uma é o balanço de pagamentos, outra é a gestão monetária e a
terceira, que interessa ao pessoal
que está no fórum, é a pobreza.
Acabou a época da brincadeira
dos europeus, que mandaram 100
milhões de pobres para cá. Hoje
cada um tem de cuidar dos seus
pobres. Portanto, não existe um
poder internacional que você tome e democratize. O poder internacional hoje chama-se império.
E os americanos não parecem
muito interessados em democratizar aquela joça. Eles nem votam.
Folha - Há duas maneiras de tomar o poder. Na marra, com golpe
ou revolução, ou com eleições. Vocês acreditam que o movimento social representado pelo fórum sinaliza uma mudança de orientação
no quadro político institucional?
Arantes -E o PT ganhou em várias cidades por quê? O quadro já
está mudando. Voltando ao fórum. Esse negócio emergiu em
Seattle. O ativismo social ético
tem mais ou menos duas décadas
de existência. Há milhares de análises sociológicas sobre esse prolongamento da sociedade narcisista e moralmente empenhada, já
que não há saídas coletivas. Isso
vinha há muito tempo. Tornou-se
glamouroso algum empenho social da classe média para cima.
Faz inclusive parte do marketing
das grandes corporações transnacionais. Esse charme do compromisso social das elites movido a
consciência pesada foi mudando
com o aprofundamento do fosso
social e com o colapso da fraseologia neoliberal. Ainda há muita
ONG de tipo empresarial, mas a
maioria já não é mais assim. Nessas duas décadas de hegemonia
global, as pessoas talvez não tenham percebido que haviam engendrado, por esse ativismo puramente moral, uma enorme massa
de disponibilidade social para fazer coisas. É como se tivesse uma
grande vaga dos fim dos movimentos sociais dos anos 60 que se
transformaram em ONGs e essas
ONGs agora vão se transformando novamente em movimentos
sociais, mas com expressão política. É isso que está acontecendo.
Mas com uma composição de
classe diferente. Há uma proletarização dispersa contra um poder
imperial difuso e concentrado ao
mesmo tempo. Dou um exemplo:
quando se fala em racismo hoje,
não se trata mais do anti-racismo
libertário de 68. Ele foi incorporado. A Benetton faz até propaganda em cima do racismo. Trata-se
da consciência de que esse novo
império está dividindo a população mundial numa raça superior,
que está inclusive geneticamente
programando essa raça superior e
deixando à mingua o resto, que
foi descartado.
Folha - Falando mais especificamente sobre o Brasil, que cenário é
possível imaginar para 2002?
Fiori -O projeto do governo acabou. É isso que está aí. A questão
que se coloca para as forças que se
coligaram em torno de FHC é: o
que fazemos? O problema não é
escolher entre Jereissati ou Serra.
Mas saber o que fazer com o país
daqui em diante. Você tem hoje
30 milhões de pessoas mais ou
menos integradas, formando um
mercado que não deixa de ser gigantesco e vive muito bem, uns 5
milhões de eleitos ganhando pilhas de dinheiro e uma patuléia de
130 milhões fora da brincadeira.
Não há razão, do ponto de vista
materialista, para supor que esses
30 ou 5 milhões que estão no
shopping se solidarizem com
qualquer questão nacional.
Arantes - A questão, do ponto de
vista da oposição, é: até que ponto
a elite e a classe média brasileira se
dessolidarizaram do conjunto da
população, até que ponto este é
um caso perdido de dessolidarização social, enfim, se ultrapassamos um ponto de não-retorno ou,
pelo contrário, se ainda há condições estruturais de uma reviravolta, de a classe média abandonar
essa baboseira cosmopolita e consumista e se sentir nacionalmente
solidária. Ninguém está falando
em revolução, não, mas em chance histórica de emergência de
uma sociedade civilizada nos
marcos do capitalismo. Em outros termos: se houver uma junção de classes, no sentido antigo, é
possível que o establishment ache
uma alternativa. Se houver a compreensão de que o PT, ou seja lá o
que for, representa uma alternativa civilizada de organização da
sociedade, de promoção de um
pouco de renda, que organize um
pouco esse fundo do poço de 130
milhões, algo pode mudar.
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