São Paulo, domingo, 29 de fevereiro de 2004

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ELIO GASPARI

A ruína histórica, com Lula

Na sexta-feira, quando o IBGE mostrou o tamanho do desastre ocorrido na economia nacional em 2003, Lula fechou o primeiro ano do seu programa PIB Zero. A ekipekonômica conseguiu um prodigioso resultado.
Tomando-se o primeiro ano de governo qualquer presidente, desde Deodoro da Fonseca, como ponto de partida de uma série de nove anos, os doutores Antonio Palocci e Henrique Meirelles chegaram ao fim do nono ano com um crescimento médio do PIB de 2%. Nenhum outro período produziu resultado tão ruinoso. (Entre 1985 e 1994, conseguiram-se 2,3% anuais.) A série de nove anos justifica-se porque foi em 1995, com a posse de FFHH, que a ekipekonômica formada quase sempre por ex-professores e futuros banqueiros passou a prevalecer nas decisões do governo brasileiro. Essa ruinosa anomalia foi preservada por Lula.
Os doutores Palocci e Meirelles caminham para a finalização da década desgraçada. Mesmo que neste ano o PIB venha a crescer 3%, a média dos últimos dez anos ficará em apenas 2,1%. Ao estilo de Lula: "É a maior ruína já vista na face do Brasil".
Faltam poucos meses para que se chegue à marca dos 2 milhões de desempregados na Grande São Paulo. O governo de Lula produziu desemprego e declínio na renda para o andar de baixo. Ao andar de cima, deu juros altos. Aos dois, impôs uma contração da produção nacional. A ekipekonômica faz tudo isso propagando a lorota segundo a qual os juros altos são necessários para conter a inflação. Falso. Num país onde a população gasta menos em alimentação (porque está comendo menos), a elevação dos juros nada tem a ver com demanda de produtos e serviços. Serve apenas para engordar gatos gordos.
Uma das mistificações prediletas dos governos é fechar um ano com maus números, anunciando boas novas para o ano que vem. (Em janeiro de 2003 os sábios do Banco Central previam um crescimento de 2,8%.)
Outra, é dar aos maus resultados um ar ocasional, como se os números do PIB de 2003 fossem a má notícia da semana. Falso. São a má notícia do ano. São o verdadeiro Waldomiro.
Entre 1950 e 1980 o Brasil cresceu a 7,2% ao ano. Se esse ritmo tivesse sido mantido, a renda per capita dos brasileiros estaria hoje no patamar da Espanha. Vale lembrar que esse crescimento ocorreu num mundo de duas guerras (Coréia e Vietnã) e num Brasil onde um presidente matou-se, outro foi-se embora, um terceiro foi deposto.
A partir de 1980, nas palavras do economista Artur Candal, "o Brasil começou a migrar para a África, de volta às suas origens geológicas". Enquanto o México e o Chile progrediram, Pindorama juntou-se ao atoleiro argentino e venezuelano.
Lula fechou 2003 com uma contração de 0,2% do PIB, coisa que não acontecia desde 1992. No últimos 60 anos, só dois presidentes tiveram resultado pior: João Figueiredo e Fernando Collor.

Desempregados, danai-vos

Se uma coisa dessas acontecesse no governo dos tucanos, seria a prova da falta de sensibilidade social da ave.
Com uma linda canetada, Lula fechou 1.100 bingos. Desempregou 120 mil pessoas e afetou a renda de outras 200 mil.
Não se ouviu uma só palavra de conforto do ministro Ricardo Berzoini, no Trabalho. Custava zero oferecer-lhes algum programa de reciclagem ou, no mínimo, um cadastro para ajudar a reempregá-los caso os bingos sejam reabertos pelo Congresso.

É dura a vida presa do software livre

No ano passado o governo criou a Câmara Técnica de Implementação do Software Livre, ligada à Casa Civil da Presidência da República, comissariado onde trabalhava também Waldomiro Diniz. A idéia é boa, simples e barata. Trata-se de libertar a administração pública brasileira do alicate da Microsoft e do sistema Windows. O governo gasta cerca de R$ 3 bilhões anuais com produtos da empresa. Não se trata de exclui-la, nem de atrapalhar a vida de quem usa Windows. O negócio é permitir que o contribuinte use outras plataformas. Ele pode querer rodar um sistema Linux, no qual baixam-se quase de graça programas capazes de substituir o Office, o príncipe da Microsoft.
A iniciativa da câmara técnica caiu bem em alguns pedaços da administração, sobretudo no Serpro e, aos poucos quebraram-se algumas donatárias da Microsoft. Infelizmente, na semana passada o programa do governo federal sofreu um golpe.
Na vida do contribuinte, o principal momento de comunicação entre ele e o governo se dá entre março e abril, quando 17,5 milhões de pessoas devem fazer sua declaração de Imposto de Renda. Numa das mais monstruosas decisões tomadas durante o tucanato, as declarações só podem ser preenchidas por máquinas que rodem o sistema Windows. Ou seja: o governo brasileiro perfilhou um monopólio que movimenta 16,3 milhões de usuários de computadores.
Em 2001 a Receita começou a estudar um jeito de sair do alicate. Nada. Em 2002 chegou-se a fazer um esboço de programa. A partir do final do ano passado trabalhou-se na montagem da nova plataforma opcional.
Como sempre, a Receita batalhou com pouco dinheiro e pouca gente (seis pessoas para programar mudanças no ReceitaNet e para criar a nova plataforma).
Nesta semana a patuléia pode começar a baixar os programas para preencher suas declarações. Infelizmente, só Windows. Se tudo andar direito, a segunda plataforma entra no ar até 15 de abril. Corre-se o risco de detonar 25% do prazo dado aos contribuintes. Não se pode dizer que o atraso ocorreu por falta de recursos.
Ele poderia ter acontecido mesmo com mais dinheiro, gente e apoio da Casa Civil. O fato, porém, é que nenhuma das três ajudas apareceu.
Tudo isso poderia ser um daqueles atrasos que, como a chuva, acabam acontecendo. Um fato recente, contudo, oferece uma lição ao comissariado da Casa Civil. O repórter Rubens Valente revelou que aquele sujeito alto, contratado pelo comissário José Dirceu para cuidar das plataformas de deputados e senadores, era sócio de uma faculdade de informática em São Paulo, a Interfutura. Ele e mais uns parentes associaram-se à empresária Maria Estela Boner Léo, sócia da TBA, a maior revendedora de programas Microsoft para o governo federal. A TBA é dirigida por Maria Cristina, irmã de Estela.
Nas palavras da sócia de Waldomiro, "propostas de criação de projetos nos chegam por "n" caminhos. A gente sempre foi muito assediada".

Aviso ou ordem

O senador Aloizio Mercadante foi informado de que deve parar de atrapalhar a vida do comissário José Dirceu.
Se vai adiantar alguma coisa, não se sabe.

Os três cantores

Se Lula pedir ao deputado João Paulo Cunha, ao senador Mercadante e a José Genoino que passem uma semana calados ou sem anunciar idéias ou opiniões novas, o governo secará uma das nascentes da crise.
Outra solução seria informá-los de que 10% de suas falas às televisões serão retransmitidas, sem cortes, no programa "Casseta & Planeta".

Saber ler

Em janeiro de 2003, quando a ekipekonômica prometia um crescimento de 3%, o doutor Sérgio Werlang (ex-diretor do Banco Central, atual diretor do Banco Itaú) previu um resultado bem mais modesto, entre 1,5% e 2%. Errou. Deu -0,2%.
Não foi a única previsão que o doutor Werlang errou.
Ele não era capaz de supor que num ano de PIB tão xumbrega o banco que dirige tivesse o maior lucro da história do sistema financeiro nacional (R$ 3,152 bilhões), 33% superior ao do ano anterior.
Como diz o companheiro Roberto Setubal, principal executivo e legislativo do Itaú: "Se olharmos o programa do PT, tudo o que está sendo feito agora, até a austeridade fiscal, estava lá".
O doutor Setubal lê programas melhor do que o PT lê balanços.

Idéia grátis

A sociedade brasileira dispõe de um recurso rápido e barato para inibir a libido dos clientes da prostituição infantil. Basta abrir um sítio na internet, com o nome e o retrato de todos os cidadãos que venham a ser detidos na prática desse delito. Brasileiros e estrangeiros.
Pode-se também remeter às suas mulheres e filhos os depoimentos dados pelos galantes clientes à polícia.
Qualquer grupo de cidadãos pode tomar essa iniciativa. Não é necessário esperar pelo governo.

Cuidado

Quando der confusão, ninguém deve reclamar: a nobiliarquia financeira do PT aproximou-se socialmente do pedaço do andar de cima, onde funcionou a parte mais agre$$iva dos financiamentos da banca.

ENTREVISTA

Fábio Konder Comparato

(67 anos, professor de Filosofia do Direito da Universidade de São Paulo.)

O senhor publicou um artigo na Folha de S. Paulo onde diz que, diante da "ruína moral" da administração federal petista, é necessária a criação de um "contrapoder popular" para aperfeiçoar a organização política do Brasil. O que seria isso?
Nós temos excelentes exemplos de organização da sociedade. No campo dos direitos do consumidor, com o IDEC. Na defesa e na vigilância da moralidade pública, com o Transparência Brasil. Acima de todos, pela amplitude, o Movimento dos Sem-Terra. Temos ainda magníficos exemplos de organização de comunidades. Proponho que essas entidades se agrupem numa federação, unidas em torno de princípios básicos, com lideranças afastadas da competição eleitoral. Para funcionar, precisa ser simples, leve. Trata-se de organizar um contrapoder popular sem semelhanças com os partidos políticos. É preciso aproximar as pessoas em torno de propostas, sem projeto de exercício do poder formal. A federação de ONGs seria um instrumento de controle democrático do poder. Minha experiência nas dez Escolas de Governo que funcionam no país ensinou-me que há milhares de jovens desencantados com os partidos, querendo fazer alguma coisa pelo país.
Somos uma nação fundada pelo Estado. Quando Tomé de Souza desceu em Salvador, em 1549, ele trazia um regimento geral de governo onde previa-se tudo. Tinha consigo um ouvidor-geral, um provedor-geral. Tinha tudo, menos o povo, fisicamente ausente, porque o índios não eram vistos como gente e os brancos mal tinham chegado. O que falta para a politica brasileira funcionar normalmente é a organização do povo.
Ao falar em "ruína moral" o senhor não pegou pesado?
Hesitei muito para usar essa expressão, sobretudo a palavra ruína. Pensei que pudesse dizer "abalo moral", mas me convenci de que não podia fazê-lo. Não podia porque um abalo moral é algo remediável e, infelizmente, estou convencido de que houve uma quebra definitiva da confiança dos militantes em relação ao governo. Esse é um elemento irremediável. Há o argumento de que nada se fez que os outros já não tivessem feito. Ele agrava a questão, pois se confiava num governo exatamente porque não se confiara nos outros.
Confúcio ensinou que o governante precisa dar três coisas aos súditos: comida, segurança e confiança. Uma só coisa ele não podia retirar: a confiança. Quando usei a expressão "ruína", senti muita dor. Eu mantinha a esperança, mas ela se acabou.
O que vem a ser esse "contrapoder popular"?
O contrapoder popular é a ação para conter o poder formal. Não de combatê-lo com o objetivo de eliminá-lo, mas de tentar torná-lo mais eficaz. Para os gregos, quando os deuses queriam enlouquecer alguém, davam-lhe orgulho e insolência. Sem controles, os poderosos perdem a medida de suas limitações e a percepção das opiniões alheias. Eu acredito que há no Brasil uma teia de organizações de defesa dos direitos das pessoas e da boa prática administrativa. Elas podem se juntar, formar uma coisa nova em relação ao velho esquema da separação de poderes. A novidade está no fato de que o controle é exercido verticalmente, do povo em relação aos governantes. Na formula tradicional são os órgãos do Estado que se controlam mutuamente.


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