São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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ELIO GASPARI
A estratégia do silêncio cobrou caro ao general Fayad

É possível que haja um ângulo novo para se discutir a presença do general Ricardo Fayad na subdiretoria de Saúde do Exército, quase 30 anos depois de ter sido um dos tenentes-médicos lotados na central de torturas do DOI-Codi do Rio de Janeiro.
Ele chegou a general porque o então presidente Itamar Franco o promoveu. Está na subdiretoria de Saúde do Exército porque assim prefere o professor Fernando Henrique Cardoso. Pelos mecanismos burocráticos de renovação do quadro de generais, restam-lhe algo como seis meses no serviço ativo do Exército. Irá para a reserva antes do fim do ano.
Fayad presenciou a prática de crimes. É quase certo que saiba, por exemplo, quem matou o deputado Rubens Paiva, amigo pessoal de FFHH. Ele não deve ser olhado como um torturador que violava os sentimentos humanitários que a ditadura fingia respeitar. Num Alto Comando, onde o ministro se chamava Orlando Geisel e o chefe do Centro de Informações do Exército era o general Milton Tavares de Souza, havia ordem e disciplina. Eles não comiam mel, comiam abelha.
A anistia que beneficiou também os torturadores nada tem a ver com amnésia histórica. Falta saber direito o que acontecia no porão. Como se moviam as rodas do DOI? Que mecanismos levavam um jovem tenente-médico a conviver com as torturas, como se elas fossem rotina do expediente no quartel?
Infelizmente, os comandantes militares acreditam que o silêncio é o melhor remédio. Disso resulta que 90 entre 100 oficiais do Exército convivem com uma história com a qual nada tiveram a ver, simplesmente porque não viveram a época. É um silêncio que privilegia uma memória de cumplicidade, encobre histórias de coragem e esmaga o exemplo de condutas corretas. Como este:
Às 21h do dia 21 de novembro de 1969, uma sexta-feira, policiais do Dops atacaram uma casa na rua Aquidabã, na Zona Norte do Rio. Deu-se um tiroteio e foram presos dois rapazes e uma moça. Eles tinham bombas, uma metralhadora e três mil cartuchos. Eram militantes da Vanguarda Armada Revolucionária - Palmares e planejavam o sequestro do ministro da Fazenda, Antonio Delfim Netto. No meio da madrugada estavam num quartel da Polícia do Exército, na Vila Militar. No sábado divulgou-se, com a notícia da prisão, que um dos jovens teria sido ferido no tiroteio. Na terça-feira, a família do estudante de medicina Chael Jorge Schreier, de 23 anos, recebeu seu cadáver. Uma nota oficial anunciou que sua morte resultou de resistência à prisão.
Desde a edição do AI-5, um ano antes, era o segundo caso de reconhecimento oficial da existência de um cadáver numa dependência do Exército. O primeiro pode ter sido suicídio.
Está documentado que se deve a três médicos, dois dos quais oficiais do Exército, a denúncia da mentira. Chamam-se Oswaldo Caymmi Ferreira, Guilherme Achilles de Faria Melo e Pedro Macuco Janini. O primeiro era major e chefe de Serviço de Medicina Legal do Hospital Central do Exército. O segundo, capitão. Só Janini era civil. Pela narrativa de um oficial do CIE envolvido no episódio, soma-se aos três o general Galeno Penha Franco, então diretor do hospital.
Eles não sabiam o que tinha acontecido. Apenas assinaram um laudo da necropsia de Chael.
Primeiro o que eles não sabiam: os três jovens foram massacrados na PE, com procedimentos típicos dos desajustados sexuais. (Em 1976, aos 31 anos, a moça se matou debaixo das rodas do metrô de Berlim. Ela se referia ao episódio como "os intermináveis dias de Sodoma'.) Chael morrera no início da manhã de sábado. (Quando se anunciou a prisão, ele já estava morto.) O Centro de Informações do Exército resolveu enviar ao HCE o que restava do preso. Simples: registrava-se que tinha entrado vivo e depois informava-se que não resistira aos ferimentos do tiroteio.
O oficial que mandou internar o cadáver revelou, anos depois, que o general Galeno Penha Franco rebarbou a farsa. Nem o recebeu como vivo, nem o dispensou da autópsia. Não se pode assegurar qual dos três médicos examinou o cadáver, mas os três assinaram uma minuciosa denúncia de tortura.
Admitindo-se que todas as vezes em que usaram o plural para contar os ferimentos vistos nas diversas partes do corpo de Chael, eles fossem só dois, arrolaram 53 marcas de suplício. Tinha uma hemorragia na cabeça, o intestino rompido, dez costelas quebradas e o tórax deprimido. (É provável que o tenham matado com os pés.) O laudo foi além. Sem que fosse essencial, informou que "as polpas digitais têm substância tintorial preta". Traduzindo: ele morreu de surra, depois de preso e de terem-lhe tirado as impressões digitais.
Se os comandantes da ocasião não fossem síndicos da tortura, teriam aberto um inquérito. Como a tortura era prática oficial e a conversa de "grupos autônomos" e da "perda de controle" sobre bolsões radicais é lorota, o laudo foi sepultado por mais de dez anos.
Os três médicos fizeram o possível. O laudo é um grito. Foi abafado, e em casos posteriores produziram-se autópsias ao gosto do freguês. Janini responde a processo no Conselho Regional de Medicina, acusado de ter assinado um laudo mentiroso.
Por que essas coisas vieram a acontecer? Como prevaleceram as necropsias mentirosas? Isso falta saber. O general Fayad sabe. Janini também. Se não querem contar, o problema é deles. Se o fizerem, evitam que, no futuro, um jovem tenente acabe pagando sozinho parte da conta espetada por seus superiores. Ou que um médico que teve a coragem de assinar o laudo de Chael acabe parecendo um sicário.
Os torturadores da PE da Vila naquela madrugada de novembro de 1969 eram pelo menos seis (três oficiais, dois sargentos e um cabo). Dois deles, ambos condecorados com a Medalha do Pacificador, se tornaram comparsas numa quadrilha de assaltantes e contrabandistas.
Durante muito tempo, a estratégia do silêncio pareceu proteção adequada. Hoje percebe-se que ela esconde tanto crimes quanto condutas corajosas. Varrendo as duas para baixo do mesmo tapete, não se apaga o que aconteceu. Consegue-se apenas proteger a tortura e a engrenagem que a estruturou. Impede-se que os três médicos do laudo de Chael se orgulhem do que fizeram.

A ekipe epidêmika
Para a crônica da epidemia de dengue de 1998:
Em setembro passado o governo federal assinou um convênio com o Estado de Minas Gerais, pelo qual haveria de lhe entregar R$ 8,2 milhões para o combate ao dengue. A essa altura os mineiros atacados pelo mosquito eram 30 por mês.
A primeira parcela do ervanário chegou em fevereiro. O Ministério da Fazenda liberou R$ 1,3 milhão. Os casos de dengue já eram 300 por dia.
A segunda, de R$ 1,9 milhão, chegou na semana passada. Os doentes eram 800 por dia.
Até agora Minas Gerais recebeu menos de 40% do que a União se comprometeu a pagar ao Estado e aos municípios mineiros.
Se os recursos tivessem sido usados no final do ano passado, antes da época das chuvas, os casos de dengue em Minas dificilmente chegariam a 5 mil. Já são 30 mil.


Brincando de futuro
Um assessor de FFHH, daqueles que não falam, perguntou a um amigo:
Você acha possível o Fernando Henrique trocar a base de apoio do governo no segundo mandato, indo para uma aliança com o PT e o PDT?
Possível, é. Ele irá a uma reunião da nova coligação e conhecerá os novos presidentes dos partidos que apóiam o governo: Inocêncio Oliveira, do PT, e Paulo Maluf, do PDT.
Depois que o professor Cardoso se aliou ao doutor Maluf, uma coisa dessas é até fácil.

Eu inauguro, tu destróis, eles pagam

Na semana passada, o governador Mário Covas percorreu o labirinto das maluquices oficiais na área da cultura.
Na terça-feira, com pompa, reinaugurou o Teatro São Pedro, uma dos mais velhos do Brasil, construído em 1917. Tratando-se de uma grande obra, nada mais justo que a festejasse. Gastaram-se R$ 7,5 milhões, boa parte deles arrecadados por meio da lei de incentivos fiscais às empresas que financiam projetos culturais. Como a festa era das autoridades, os contribuintes ficaram de fora. Tudo bem, porque não há no mundo alguém capaz de se queixar de não ter sido convidado para ouvir discursos.
No dia seguinte estreou a ópera La Cenerentola (Cinderela). Os cartazes distribuídos pela Secretaria de Cultura informavam que essa apresentação seria aberta, e os ingressos poderiam ser comprados na bilheteria.
O professor Roberto Mangabeira Unger acreditou. Foi ao Teatro e lá informaram-no que aquela noite não era para a patuléia. Só para os convidados do príncipe. Estrilou. Viu dois cambistas (que revendiam convites mandados a maganos) e acabou entrando, de favor. Cada convidado ganhava uma bonita brochura, com o texto da ópera em português e italiano.
O presidente dos Estados Unidos, que tem poder para acabar com o mundo, não tem o peito de fechar um teatro por dois dias para receber amigos e burocratas.
Como disse uma funcionária do teatro ao professor Mangabeira: "Isso é Brasil". Não é não. Isso é apenas a miséria de uma pequena parte de sua população, incapaz de perceber quando usa o dinheiro público para fazer festas proibidas ao público.
Há dois anos, Covas inaugurou, com justificada pompa, a nova sede do Arquivo do Estado, um dos melhores do país, com 30 quilômetros de papéis e oito milhões de documentos do período colonial. Ele funcionava num pardieiro onde faltava luz e abundavam goteiras. Gastaram-se R$ 18 milhões.
E como está hoje o Arquivo do Estado? Sem dinheiro para pagar as empresas que lhe davam vigilância e limpeza. A faxina sobrou para funcionários que tinham outras atribuições. Durante três meses cumpriram, voluntariamente, uma escala pela qual cada um sabia qual era o seu dia de limpar banheiro. Isso porque seguraram uma verba anual de R$ 250 mil. É possível que se tenha gasto nas festas do São Pedro uma quantia próxima disso.
Sem dinheiro, o Arquivo, com 11 funcionários fixos, corre o risco de paralisar algumas de suas atividades. Precisa de pouco menos de R$ 1 milhão para funcionar no osso. Deram-lhe R$ 600 mil.
Há um círculo vicioso oculto nessas duas histórias. Os governadores, como os príncipes da Cinderela, inauguram prédios, fazem festas, convidam seus amigos. Depois cortam-lhe as verbas. Sem verbas, os teatros e as sedes dos arquivos viram abóboras. Aí aparece outro príncipe, reconstrói o prédio, convida os amigos, faz uma festa e começa tudo de novo.

CURSO MADAME NATASHA DE PIANO E PORTUGUÊS

Madame Natasha tem horror à música e passa seu tempo traduzindo os discursos de FFHH para o francês. Ela vai a Brasília entregar ao presidente mais uma de suas bolsas de estudo, pela seguinte pérola, achada em seu discurso na 3ª Reunião do Círculo de Montevidéu:
- Hoje tudo é mediatizado, tudo passa pela mídia. (...) Porque de alguma maneira ela avança sobre nós próprios e porque ela tem um sistema de capilaridade muito grande que às vezes irrita porque diz: não é verdade, mas é, é uma não-verdade que é verdade, porque no fundo há uma tendência naquela direção que, embora não tenha sido efetivada, existiu no ar e, de repente, vira, de virtual, a real.
Madame acredita que ele quis dizer o seguinte:
- Os meios de comunicação divulgam notícias incompletas ou confusas, que acabam parecendo verdadeiras.

Boa notícia
Falta pouco para que a Receita Federal deixe de tratar como contrabandistas os brasileiros que voltam do exterior e se dispõem a pagar impostos sobre as mercadorias que compraram.
Atualmente o cidadão entra na fila daqueles que têm bens a declarar, preenche um formulário e, ainda assim, quase sempre é submetido à revista de suas malas. Ou seja, é colocado sob suspeita por ter se prontificado a cumprir com suas obrigações.
No novo sistema, que será testado num só aeroporto, os passageiros receberão um formulário ainda a bordo. Arrolarão as compras tributáveis e o valor que exceda o limite de US$ 500, sobre o qual haverá tributo.
Feito isso, irão à Alfândega, onde pagarão o que devem. Acertada a conta, apertarão o famoso botão. Se der vermelho, serão submetidos à revista, como acontece a todos os passageiros. Se der verde, vão para casa.

A volta do craque
O jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, a quem a imprensa deve a fundação dos semanários Opinião e Movimento, além de algumas das melhores coberturas da história da revista "Veja", está voltando às bancas. Organiza uma rede de cotistas (mil cotas, a R$ 300 cada uma) e em agosto rodará o primeiro número de uma nova revista mensal chamada Manifesto. Se tudo der certo, em dois anos ela muda de periodicidade e se torna semanal.
Além disso, abrirá um ponto na Internet, para divulgar informações econômicas.
Ao tempo em que dirigiu Opinião, Raimundo teve como colaboradores eventuais o sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o economista Pedro Malan. Na "Veja", coordenou a cobertura que denunciou a morte de Chael Jorge Schreier, mencionada acima.



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