São Paulo, domingo, 29 de março de 1998

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JANIO DE FREITAS
O país doente

Um dos mais graves e, apesar disso, menos referidos problemas brasileiros é a dubiedade da chamada Justiça, ou Poder Judiciário, em relação ao governo federal.
Tudo se passa como se os juízes de primeira instância e os tribunais em nível regional fossem os aplicadores da lei, ainda que com as falhas de praxe, mas às altas instâncias situadas em Brasília, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, coubesse proteger o presidente da República e o governo, e não a Constituição, dos recursos em defesa de direitos ou da legitimidade institucional.
A semana deixou mais dois casos nos anais da comunhão entre o STF e o governo. Um, consumado, foi o exame do conflito entre a alteração constitucional que introduziu a reeleição e, logo em seguida, um trecho que permaneceu intocado. Tal como ficaram as coisas, o presidente, os governadores e os prefeitos que busquem a reeleição não precisariam deixar os cargos, na desincompatibilização tradicional, mas teriam que renunciar, seis meses antes da eleição, se concorressem a cargo diferente do seu. Mesmo que de vereador.
O absurdo decorre de que o projeto da reeleição mudou o parágrafo da Constituição que proibia reeleições, sem, no entanto, mexer no parágrafo que obriga a desincompatibilizar-se. A Constituição ficou, assim, cretinizada por um contra-senso grosseiro. E, mesmo entre governantes que ambicionem reeleger-se e os que disputem outros cargos, o princípio da igualdade de direitos, básico para qualquer democrata, foi gravemente negado.
Não na opinião de oito ministros do STF, os quais, contra o voto solitário de Marco Aurélio Mello, consideraram que a permanência dos candidatos na posse das máquinas de governo pode conviver muito bem com o texto constitucional que o proíbe.
A persistência com que muitos recorrem ao STF contra atos de governo, a despeito da finalidade atribuída a sentenças nos últimos anos, criou agora um caso que levaria, em qualquer país com alguma compostura, a escândalo nacional e consequências drásticas. À maneira do que torna as leis, a Justiça e a cidadania respeitáveis na França, na Itália, no Japão, em tantos outros. Aqui, vai dar no de sempre: em nada.
Em nada para os acusados, porque para as vítimas já deu sofrimento, aos milhares, até morte, e continuará dando. São as vítimas das ações governamentais que, no lado administrativo da Saúde, abandonaram o plano nacional de erradicação da dengue, e, ainda naquele e também no lado financeiro do governo, retiveram durante 97 as verbas destinadas pelo Orçamento à emergência da dengue.
O uso político de parte dessa verba, agora esmiuçado pelo deputado Sérgio Miranda, já seria bastante para deixar o governo em situação crítica -não fosse o Brasil de hoje o que é. Foi, porém, a retenção injustificada de quase metade da verba, quando tantas cidades e Estados se viam atacados pela epidemia cruel e pedindo em vão o seu direito à verba federal, foi esse desprezo pela necessidade e pelo sofrimento que levou à apresentação de queixa-crime contra os ministros Pedro Malan, Antonio Kandir e o tostado Carlos Albuquerque.
Esses ministros e o governo mesmo só têm um argumento de defesa: não houve recursos para cumprir o Orçamento. Ao que se pode responder que houve e houve muito.
Dos R$ 442.032.855 orçamentários para o combate à dengue, R$ 248.371.140 foram distribuídos politicamente (a carlista Salvador recebeu R$ 7 milhões, enquanto o Estado do Rio inteiro foi agraciado com R$ 92,5 mil). Os R$ 193.661.715 são o vasto restante atingido pela tal falta de recursos.
Mas o próprio governo proporcionou, a meio da semana, a notícia de que o novo ministro da Saúde contará, de imediato, com R$ 350 milhões ainda disponíveis de orçamento do seu ministério no ano passado. Mesmo com o pleno repasse para a dengue, portanto, ainda sobrariam para este ano uns R$ 160 milhões. A queixa por crime de responsabilidade foi apresentada ao STF e, ainda por cima, depende de parecer da Procuradoria-Geral da República para ter andamento. Não é preciso imaginar o seu destino, nestes tempos tão doentios.
O novo
Agora, que também diz uma coisa e faz outra, Mário Covas afinal se tornou um político moderno e peessedebista autêntico.



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