São Paulo, domingo, 29 de abril de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELIO GASPARI

Um tucano criado por Covas

Faz tempo que não aparece na política governista um personagem como João Câmara, o presidente do diretório municipal do PSDB de São Paulo.
Apareceu de raspão, mal foi notado. Foi o primeiro tucano a propor com todas as letras o defenestramento do senador José Roberto Arruda do partido. Fez isso discretamente no sábado, dia 21, quando um pedaço da caciquia do partido estava em São Paulo para homenagear a memória de Mário Covas. Voltou a fazê-lo, em campo fértil, na segunda-feira, antes do discurso de contrição do senador. Mais: anunciou que no dia seguinte o diretório que preside proporia o seu imediato desligamento do PSDB.
Em poucas horas os acontecimentos precipitaram-se. Os sábios do tucanato de Brasília deram-se conta de que Arruda estava perdido, e a bancada na Câmara propôs sua expulsão. No início da tarde o senador antecipou-se a uma decisão de sua própria bancada e pulou fora. Câmara mal foi lembrado.
Ele tem 47 anos e preside um dos mais relevantes diretórios de um partido que está no poder desde 1995. Salvo em um período de oito meses em que assessorou um deputado, nem ele nem qualquer de seus familiares jamais transacionou com o erário. Nem empregos, muito menos contratos.
Ele chegou a São Paulo em 1972, vindo do interior do Maranhão, onde sua mãe quebrava coco-babaçu. Tinha apenas o endereço de um parente e deu-se mal, pois estava errado. Dormiu duas noites embaixo de um viaduto, até que um comerciante (Confecções Pelicano) pediu ao garoto da rua que lhe comprasse um lanche. Enquanto o jovem anotava, percebeu que tinha boa caligrafia e contratou-o para emitir notas fiscais. Com isso, dormiu as três noites seguintes na loja, até que um cliente piauiense lhe ensinou o caminho de uma pensão.
Câmara vive do trabalho e dos lucros do seu restaurante, o Raízes do Maranhão, no bairro de Santana, na zona norte da cidade.
Criação política de Mário Covas ("a pessoa que mais amei na vida"), dirige o único PSDB que vai para a rua. Fez manifestações contra os frangos de Paulo Maluf e contra o lixo de Marta Suplicy. É um ilustre desconhecido fora de São Paulo, mas esteve na pequena lista de pessoas a quem Lila Covas presenteou com objetos da estima de seu marido. Ganhou um quadro.

Lista rica

Uma nova lista na praça, a de Fernandinho Beira-Mar.
Deixando os nomes de lado, ela assusta pelo tamanho das cifras.
Uma pessoa que teve acesso à narrativa do encontro do traficante com o secretário Josias Quintal garante ele se referiu a duas quantias. Numa mencionou um propinoduto de R$ 500 mil mensais. Na outra, uma doação de US$ 500 mil.
Um dos pedaços mais ricos da narrativa deu-se no momento em que Beira-Mar lembrou a Quintal que não guardava em casa o dinheiro da cocaína que vendia. Se ninguém atrapalhar, ele poderá revelar o rol das lavanderias onde o depositava.
Como a Polícia Federal diz que Beira-Mar nega ter feito denúncias a Quintal, talvez seja o caso de levar a controvérsia ao Senado.

Volksbobagem

A Volkswagen está anunciando suas promoções de vendas na televisão com um anúncio no qual se diverte à custa do instituto da Comissão Parlamentar de Inquérito. Com o slogan "Carros a Preços Incríveis", ela oferece o modelo Saveiro 1.8 por R$ 18.523. Até aí, tudo bem. Trata-se apenas de um caso de humor primitivo. Congresso é coisa que se fecha (no Brasil) ou se queima (na Alemanha). A coisa complica quando o locutor da brincadeira anuncia a gracinha com um leve sotaque nordestino.
Não deve fazer isso. O primeiro modelo da fábrica de automóveis Carros do Povo foi esboçado por Adolf Hitler, e sua produção (noves fora o uso de 34 mil escravos na sua linha de produção) foi considerada um dos sucessos do 3º Reich. Com esse folclore, não deve brincar com as instituições políticas alheias. Muito menos com os preconceitos regionalistas dos outros.
Em vez de dar sotaque nordestino, a Volkswagen deveria dar-lhe sotaque alemão. Até porque, se até agora houve um governante metido em ladroagens apuradas por uma comissão parlamentar de inquérito, ele se chama Helmut Kohl. Foi apanhado catando pelo menos US$ 1 milhão em capilés para armar o caixa dois de seu partido.

Curso Madame Natasha de piano e português

Madame Natasha tem horror a música. Nutre uma velha paixão pela atividade parlamentar e decidiu oferecer uma de suas bolsas de estudo à Assembléia Legislativa de Minas Gerais. Ela acaba de entrar na internet, informando que sua página tem a seguinte utilidade:
"Garantir a competência da Alemg para empreender sua missão institucional no que depender da eficaz e eficiente gestão estratégico-organizacional do suporte de comunicação institucional voltado para a divulgação das atividades do Poder Legislativo e para o estabelecimento de canais permanentes de interlocução com a sociedade em geral e com o público interno em particular".
Natasha está certa de que não se pretendeu dizer nada.

Como sempre, os de baixo ficam de fora

As pessoas beneficiadas pelas indenizações (e aposentadorias) pagas pelo Estado brasileiro às vítimas dos governos da ditadura militar poderiam fazer alguma coisa pelos sofridos do andar de baixo. É triste repetir que até hoje os marinheiros expulsos em 1964 estão a ver navios, enquanto oficiais, professores, jornalistas e líderes sindicais conseguiram indenizações ou aposentadorias.
Essa modalidade de acesso à bolsa da Viúva une FFHH (R$ 7 mil pagos pela USP) e Luiz Inácio Lula da Silva (cerca de R$ 2.500 pagos pelo INSS). Ambos recebem seus cheques ao amparo da lei. Ambos poderiam fazer alguma coisa pelas famílias de quatro soldados assassinados em 1972, no 1º Batalhão de Infantaria Motorizada, em Barra Mansa.
Os quatro jovens, todos de 19 anos, eram acusados de traficar maconha. O quartel era comandado por um tenente-coronel que se dedicava a azucrinar a vida do bispo de Volta Redonda, d. Waldyr Calheiros. Submetidos a sessões de tortura, um foi assassinado num torno mecânico, e outro morreu implorando por assistência médica. Um corpo foi degolado, e outro, incinerado.
Numa primeira fase, abafou-se o crime. Graças a d. Waldyr, o caso chegou ao conhecimento do general Walter Pires de Albuquerque, comandante da 5ª Brigada de Cavalaria. O que ele fez vai contado por um de seus grandes amigos, o general Sérgio de Ary Pires:
"Avocou a si o respectivo Inquérito Policial Militar, destituiu o comandante e o subcomandante da unidade e submeteu os culpados -um capitão, um tenente e alguns graduados- ao crivo da Justiça, que os condenou às mais pesadas penas previstas no Código Penal Militar, livrando o Exército de elementos que se deixaram deformar moralmente na guerra suja desencadeada pelos agentes da subversão".
Pires não comia mel, comia abelha. Levou os dez responsáveis à Justiça. Um ano depois estavam condenados a 473 anos de prisão. O tenente-coronel Gladstone Pernasetti Teixeira tomou sete anos (reduzidos para seis meses). O capitão Dalgio Miranda Niebus, que conduziu a operação, ganhou 84 anos (cumpriu onze e meio).
Os quatro jovens eram filhos de famílias humildes. Uma delas foi à Justiça e em 1983 ganhou direito a uma indenização que até hoje não lhe foi paga. Por conta do atraso, deveriam receber cerca de R$ 500 mil.
O caso de Barra Mansa foi um sinal de alerta para o Exército. Os oficiais que azucrinavam padres de esquerda estavam matando seus próprios soldados.
O jornal "Diário do Vale", de Volta Redonda, acaba de descobrir um sobrevivente da chacina. O eletricista aposentado Célio Ferreira levou 29 anos para contar o que sofreu:
"Meu joelho foi estourado num torno de bancada, diante de outros 14 soldados que também eram torturados. Os militares riam enquanto apertavam a minha perna. Antes, passei dois dias nu, com os pés descalços, em pé sobre duas latinhas de massa de tomate. (...) Por mais de um mês fui torturado com choque elétrico e espancado com um cano de ferro e um porrete de madeira".
Se cada vítima já indenizada ou aposentada der meia hora de trabalho semanal em benefício de pessoas como o eletricista e as famílias dos mortos do quartel, todo mundo ganhará. Fica feio para a democracia não indenizar as vítimas (pobres) de um crime que a própria ditadura condenou.

A CPI é o remédio contra a chantagem

A esta altura, FFHH já se arrependeu de ter dito que o discurso de contrição do senador José Roberto Arruda foi "corajoso e digno". Primeiro, porque não foi uma coisa nem outra. Além disso, porque ficou a impressão de que o afago era uma resposta à críptica referência à "lealdade" que Arruda disse ter dado ao governo "em situações muito mais graves do que esta".
Ao contrário do que poderá acontecer com Fernandinho Beira-Mar, nenhum escândalo político brasileiro acabou com um marajá sentado no banco de testemunhas para contar tudo o que sabia. Se FFHH tivesse razão para temer esse tipo de risco, o banco Bamerindus ainda existiria, sob o controle de José Eduardo Andrade Vieira, seu ex-ministro da Agricultura.
Para a saúde do governo, é muito mais negócio jogar a roupa suja numa CPI. Falando ao Congresso, o denunciante responsabiliza-se pelo que diz e pelos benefícios que obteve à custa das malfeitorias que denuncia. Além disso, submete-se à contradita. Fora da sala de sessões de uma CPI, é muito mais fácil mentir e, sobretudo, insinuar.

O cego perdeu

É dura a vida em Brasília. Na tarde de quarta-feira, o deputado Miro Teixeira saiu do Anexo 2 da Câmara e caminhava em direção ao seu gabinete. Dobrou numa curva e deu-se com um cego que pedia dinheiro.
Tirou uma nota de R$ 5, levou-a à mão do cego e deixou-a cair.
O cego, sem tatear, abaixou-se e apanhou-a.
Quando voltou à posição de pedinte, descobriu que Miro estava ao seu lado:
"Isso é para você saber que dou dinheiro a quem pede, mas não sou idiota".
Miro foi criado na praça Mauá, reduto secundário, porém astuto, da vida carioca.
Se a turma que toma o dinheiro dos outros aprendesse a lição do cego, a República estaria muito melhor.

Aviso

O Ministério de Minas e Energia já admitiu a possibilidade de um racionamento com cortes de energia elétrica em boa parte do país. Isso significa que algumas cidades poderão entrar num regime de rodízio de apagões. É pouco provável, mas pode acontecer.
Até agora não se conhece providência destinada a planejar o reforço da segurança nas ruas que poderão ficar às escuras.
Por enquanto, há energia e tempo para trabalhar em paz. Quando faltar energia, faltará tempo.

Palanque faz bem

Na quarta-feira FFHH mandou que seu porta-voz informasse o seguinte à escumalha: "O Congresso não deve servir de delegacia de polícia ou palanque eleitoral". Está enganado. O Congresso deve servir de delegacia de polícia e também de palanque eleitoral.
Deve servir de delegacia de polícia porque foi a investigação do Congresso que desmascarou a violação do painel do Senado.
O Congresso deve servir de palanque porque ele é uma das instituições mais nobres da democracia. É nele que os políticos e os presidentes sobem para fazer promessas. Se elas são verdadeiras ou falsas, o defeito não está em quem as ouve, mas em quem as faz. Associar os palanques a mentiras ou promessas vãs é coisa de quem quer distância da patuléia.
Nos últimos cinco anos, valendo-se do palanque presidencial, FFHH disse o seguinte:
"Não estou cogitando mexer no câmbio. Não vou mexer nem neste nem no outro mandato". (janeiro de 1998, sustentando o populismo do dólar a R$ 1,20.)
"Chegou a hora de colher os frutos. Daqui por diante, é desenvolvimento, bem-estar e prosperidade". (março de 2000.)
"Vida de rico, em geral, é muito chata". (agosto de 1998.)
É devido o registro de que, havendo políticos mentirosos (e pessoas que neles acreditam), a sinceridade de FFHH está muito acima da média.



Texto Anterior: Treinamento: Programa de jornalismo diário recebe inscrições até terça-feira
Próximo Texto: Feira registra expansão da indústria bélica
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.