São Paulo, sábado, 29 de junho de 2002

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DIPLOMACIA

Declarações feitas em caráter reservado foram levadas ao ar no México

FHC diz que Bush "não sabe nada de América Latina"

MARCIO AITH
ENVIADO ESPECIAL AO MÉXICO

O presidente Fernando Henrique Cardoso declarou que o governo do presidente norte-americano, George W. Bush, "não sabe nada de América Latina" e relegou a região à "irrelevância".
Feita em caráter reservado nos intervalos de uma entrevista concedida por FHC ao jornalista e escritor mexicano Hector Aguilar Camin, a declaração foi levada ao ar pela emissora mexicana "Televisa 2" para atrair público entre os blocos do programa. Camin comanda o programa semanal de entrevistas "Zona Aberta". A entrevista com FHC foi ao ar na noite de quinta-feira passada.
Ainda na parte "reservada" da entrevista, Cardoso disse que Bush "não tem a mesma rede de contatos na região que a administração anterior" e que já apelou "diversas vezes" a Bush para que os EUA ajudem a Argentina a se recuperar. Segundo ele, os apelos foram barrados pela indiferença do norte-americano. "Na primeira vez que conversei com o presidente Bush, ele demonstrou uma atitude completamente de "hands off" (não intervenção)", relatou FHC, fazendo gestos com as mãos para indicar indiferença de Bush: "Depois, veio a coisa do terrorismo e aí parou tudo mesmo".
Na parte "pública" da entrevista, FHC fez uma crítica ao que chamou de "modalidade de defesa permanente" adotada pela Casa Branca após os atentados de 11 de setembro. Ressalvando que os ataques terroristas do ano passado foram "bárbaros" e "horrorosos", o presidente disse que essa modalidade de defesa é uma nova forma de isolacionismo: "O que ocorreu não foi um isolacionismo à antiga, mas uma mentalidade de defesa permanente, com a definição do terrorismo, do eixo do mal, como inimigos principais".
Para FHC, isso levou a Casa Branca a relegar a América Latina à irrelevância porque a região não ameaça os Estados Unidos. "Nós não estamos do lado do eixo do mal. Ao contrário. Não há o mal em nossa região. O terrorismo na Colômbia é local, não tem vinculações internacionais". FHC insistiu que, na sua opinião, os EUA não são contra a América Latina, mas apenas ignoram a região.
"Voltamos todos a ser um tanto irrelevantes. Eles não são contra nós, mas passamos a ser irrelevantes sob esse ângulo. Seríamos muito relevantes sob outro ângulo. Para formar uma aliança em favor de certos valores. Porque somos todos democráticos, porque compartilhamos a visão de que o mercado é fundamental para ordenar as relações econômicas, porque respeitamos os direitos humanos. Nesse aspecto, somos muito semelhantes à visão norte-americana, mas, como não ameaçamos, voltamos à irrelevância", declarou o presidente.
FHC disse que os únicos países que interessam aos EUA na região são a Colômbia, a Venezuela e o México: "O debate está muito longe de nós". Ele disse que a Europa mostra-se incapaz de reagir à hegemonia norte-americana, contrariamente ao que imaginava ao final da Guerra Fria, e sugeriu que o único ator capaz de forçar a Casa Branca a mudar sua mentalidade é a opinião pública dos EUA.
"Eu confio que a mudança nessa questão depende basicamente da opinião pública americana. Os EUA, de toda a forma, são um país altamente democrático e a opinião pública reflete. No entanto, como ela está com muito medo, não há forças para contrapor a visão que os americanos têm. Os europeus tampouco têm vontade ou capacidade real de confrontá-la. Além disso, os europeus também têm medo. O mundo vive um momento ruim sob esse ponto de vista. Os europeus têm medo dos imigrantes, da proximidade do Oriente Médio."
Com relação à possibilidade de a China transformar-se em contrapeso dos EUA, FHC disse que o país asiático, embora "seja grande", precisa de 50 anos. "Além disso, seria um pouco patético voltar ao bipolarismo depois da Guerra Fria. Não vale a pena."
Questionado sobre o que a América Latina pode fazer para combater o desprezo dos EUA pela região, FHC disse não ter certeza de que vale a pena combatê-lo.
"Primeiro, é necessário perguntar se é preciso combater essa irrelevância. Porque essa irrelevância nos dá espaço para fazer o que queremos. Temos a possibilidade de fazer uma inserção na economia internacional que nos seja favorável. Nesse momento em que parece que somos mais irrelevantes, tratemos de cuidar de nós, mas também de fazer vínculos como o que fizemos com o México, como o que o México fez com a Europa, como o que o Chile fez com a Europa, como o que estamos tentando fazer com a Europa. Temos que ampliar essa rede de vinculações comerciais e econômicas para que, num segundo momento, quando for possível ganhar mais relevo na cena internacional, tenhamos mais força."
Ao comentar as turbulências financeiras no Brasil, FHC comparou a "instantaneidade" das reações dos mercados ao "Big Brother", personagem do romance "1984", de George Orwell, que simboliza o controle totalitário da sociedade: "O Big Brother existe hoje não na forma que o imaginávamos, a do ditador, mas sim na forma de mercados. O mercado financeiro é o Big Brother".
FHC disse que não existe razão para que os mercados fiquem inquietos com as eleições no Brasil. Primeiro, porque "estamos muito longe das eleições e Lula sempre ganhou em maio e perdeu em outubro". Segundo, porque mesmo uma vitória de Lula "não seria uma catástrofe": "As instituições no Brasil são muito sólidas".



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