|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LANTERNA NA POPA
Esquerda e direita
ROBERTO CAMPOS
Neste último fim de semana, fiquei comovido com o incisivo
texto que Heitor Cony escreveu a
meu respeito em sua coluna na
Folha. Não sendo mais criança
(maneira eufemística de ocultar
minha condição de octogenário), tenho o couro duro de tanto
apanhar. Não me queixo, porque, afinal, esse é o preço da vida
pública e nela eu me meti por
vocação e não por obrigação.
Confortou-me sempre o dichote
de Adenauer que "ter couro de
elefante é o maior dom que Deus
pode dar a um estadista".
A coluna de Cony, um dos
meus hábitos de leitura, mexeu
com idéias que há muito eu
mantinha guardadas nos escaninhos do espírito. Esquerda e
direita são conceitos demasiado
desgastados, simplificações como todas as categorias que
aqueles, como Cony e eu, que
passaram pela disciplina filosófica do seminário, chamam de
"universais", sempre prenhes de
contradições e antinomias.
Originariamente, como se sabe, esquerda e direita eram apenas lugares de cadeiras na Assembléia Nacional Francesa. Os
mais radicais contra o estado de
coisas acabaram ficando como
"esquerda", e o oposto valia
também para a "direita". A topografia ideológica foi transposta para as correntes socialistas e
conservadoras, ao longo do século 19, e herdada pelo "curto século 20", conforme a expressão de
Hobsbawm.
A questão diante da qual estamos hoje não se vincula mais a
esse jogo de cadeiras. E não nos
resta mais alternativa senão
avaliar a complexa herança dos
movimentos socialistas, à luz
das espantosas mudanças pelas
quais vem passando nosso planeta na era da globalização e da
digitalização. Sei que é difícil escolher nos guardados do passado o que ainda tem utilidade e o
que tem apenas valor da saudade da infância, das idéias por
que lutamos e que ficaram para
trás.
Nosso modo de pensar tende a
ser reducionista. É o custo da sua
lógica interna, e por isso é que a
arte e o sonho tanto divergem da
racionalidade "operacional" que
a realidade concreta nos impõe.
Todos nós, em maior ou menor
grau, temos nossas divisões íntimas entre utopia e realismo. A
idéia de "esquerda" e "direita"
desgastou-se a tal ponto que hoje
só serve para fins objurgatórios,
isto é, para acusar de "politicamente incorretos", aqueles que,
de algum modo, não são a favor
da maneira de ver por nós tida
como "correta". A real querela
remanescente é entre os "liberais", que acreditam na primazia do mercado competitivo, e os
"dirigistas", que acreditam na
primazia do Estado interventor.
Creio que não haverá ninguém
verdadeiramente humano que
não fique indignado, por vezes,
com certos casos do mundo real,
e não queira mudá-los. Mas é
próprio apenas da imaturidade
juvenil achar que sabe o suficiente sobre tudo o que pode
acontecer e que pode prever todas as consequências de seus feitos. Ideal e realidade são os dois
pólos extremos entre os quais se
tensiona a condição humana. E
a falta de algum deles é mutilante.
A Revolução Francesa -filha
do racionalismo e do humanismo que confluíram na formação
do pensamento liberal- contestava a noção de privilégios hereditários, dados pela posição social de uma pessoa em função do
acidente do nascimento. E a
América era "o seu canteiro e escola", diria Schlegel em 1928.
Pouco mais de um século depois,
a democracia americana passaria a ser, para Sartre, "a mais
odiosa forma de capitalismo". A
burguesia ascendente, que representava o modo de produção
que iria derrubar a velha ordem
econômica agrária, ostentava
uma ótica igualitária meritocrática (típica do primeiro socialista utópico, Saint Simon). Não
tardaria porém que se percebesse
que estavam surgindo novas formas de desigualdades que, no
extremo, significavam acumulações opostas de pobreza, degenerando para a miséria, e de riqueza, crescendo para a opulência.
Foi quando Marx indagou por
que, se a capacidade de produção estava se multiplicando tanto pela tecnologia e pela organização capitalista, alguns haveriam de ter demais, e outros, de
menos. No seu momento, pergunta válida. Mas a experiência
mostraria que as coisas eram
bastante complicadas. Por
exemplo, haverá algum modo
eficiente e razoável de se tirar o
suficiente dos que têm demais
para dar aos que têm de menos?
A proposta marxista era os "expropriados" expropriarem os
"expropriadores", e assumirem o
controle dos meios de produção.
A segunda parte não funcionou,
e a experiência soviética afundou com ela. A proposta, muito
mais antiga, do Cristianismo
produziu alguns santos, mas
ninguém descobriu como transformar as virtudes da caridade e
do amor ao próximo em comportamento cotidiano. O problema das tentativas de ver o mundo na perspectiva de valores
transcendentes é que esses precisam de mecanismos intermediários o que, em última análise,
significa alguém mandando e os
demais obedecendo. Isto é, do
poder de violência de alguém
que seja o detentor da verdade
absoluta. Sabemos como têm sido os donos da verdade. Uns 120
milhões de vítimas dos regimes
de esquerda, uma guerra mundial, e muitos milhões da contraparte de direita, fora o resto.
A idéia das velhas esquerdas
dos anos 50 a 80, de luta armada, totalmente fora da realidade, só serviu para estimular a
reação antidemocrática.
A meia gestão da economia
pelo Estado deu no que deu -"o
estado a que chegamos", como
disse o velho comuna Aporelli.
Falo com a consciência de quem
talvez tenha sido, de Vargas a
Castello, um defensor influente
da ação sistemática do Estado
na economia. Infelizmente, o Estado, numa sociedade menos desenvolvida, espelha as contradições e deficiências nela existentes. Por isso é que a opção pelo
mercado, como grande educador
para a eficiência, acabou por se
tornar, na prática, a única viável
-um plebiscito permanente que
regula esse duro fato da vida que
é a escassez.
Não me entusiasma a sociedade de consumo desenfreado,
nem penso que o mercado seja o
árbitro de todos os valores. Esses
têm de vir da cultura, da sociedade, das pessoas. Sem radicalismos de "direita" e "esquerda".
"Todas as revoluções passam",
dizia Kafka, "e só resta o lodo de
uma nova burocracia"...
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado
federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor
de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks,
1994).
Texto Anterior: Painel Próximo Texto: PM prepara desarmamento em SP Índice
|