São Paulo, sexta-feira, 29 de setembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PERFIL DO CANDIDATO
Petista afirma que boa administração na prefeitura poderia credenciá-la para sucessão de 2006; psicóloga bem-nascida virou candidata por desejo de Lula, apesar de origem oposta à do líder do partido
Marta pensa em disputar a Presidência

JOSIAS DE SOUZA
EM SÃO PAULO

Ela foi criada para viver num mundo de donzelas burguesas, matriarcas austeras e machos opressivos. Traçaram-lhe um destino de horizontes acanhados: estudaria em colégio de freiras, entregaria seus olhos azuis a um marido de boa cepa, teria filhos e administraria o lar.
Aproveitando-se das brechas que sua época abriu, ela pulou de uma armadilha que ainda hoje aprisiona mulheres. Teve a ventura de estudar nos EUA na fase em que jovens como ela se faziam notar queimando sutiãs em público.
Depois, quando as saias já se insinuavam no mercado de trabalho, ela ganhou fama na telinha da Rede Globo, entre 1980 e 1986. Invadia os lares, no matinal "TV Mulher", falando em masturbação, orgasmo e homossexualismo. Um espanto.
Rica e bem-nascida, estreou tarde na política. Só em 1994. Virou deputada temporã, aos 50. Decorridos cinco anos, as pesquisas a colocam com um pé na Prefeitura de São Paulo, um enorme e cobiçado abacaxi administrativo.
Enquanto teve forças, Luiz Affonso Smith de Vasconcellos, 83, seguiu com olhos de estupefação os passos de sua menina. Hoje, debilitado por duas internações que o ataram irremediavelmente à cama, o pai de Marta Teresa Smith Suplicy já não reage à atmosfera que o envolve.
Se estivesse lúcido, talvez se espantasse com o que a sua garota anda dizendo por aí. Marta, 55, avisa que, chegando à prefeitura, quer ir mais longe. Ela quer tornar-se presidente da República. É mais do que o velho Luiz Affonso poderia supor.

COMUNISMO
Ele não contemplava em seus planos a hipótese de a filha vir a exercer atividades fora de casa. Quando muito, dizia, aprenderia inglês e datilografia, por precaução. Para o caso de o comunismo vingar. Confiscados os bens da família, Marta teria como ganhar o pão. Seria secretária bilíngue.
O plano do patriarca dos Smith de Vasconcellos começou a desandar em maio de 1960. No frescor de seus 15 anos, Marta tomou-se de amores por um rapaz de 19. "O sobrenome é bom, mas as idéias são muito esquerdistas", diria Luiz Affonso, ao saber que o príncipe de seu projeto de Cinderela atendia pelo nome de Eduardo Matarazzo Suplicy.
De fato, visto pelo sobrenome, Eduardo era um partidaço. Pendia de um tronco menos aquinhoado da árvore dos Matarazzo. À altura de Marta, cujo avô materno era Júlio Fracalanza, da fábrica de talheres Fracalanza.
O diabo era a cabeça do rapaz. Matriculado na Fundação Getúlio Vargas, Eduardo frequentava o universo dos grêmios estudantis. Para Luiz Affonso, um ninho de comunistas. Marta fez ouvidos moucos ao pai..
Ela conhecera Eduardo na casa de um primo, no litoral de São Vicente (SP), em uma festa. Ambiente apinhado. Súbito, gritos. Alguém se afogava num canal rente à casa. Eduardo lançou-se ao mar. Voltou com a vítima nos ombros. Salvou-a por pouco. A imagem daquele herói ensopado fez Marta exceder-se em suspiros.
Difícil era atrair-lhe a atenção. Os 15 anos de Marta cabiam num corpo de 12. Por mais que se insinuasse, não lograva fisgar Eduardo, 1,83 m, cabelos fartos.
Encontrou-o de novo dali a algumas semanas, na casa de uma amiga comum, na rua Itália, Jardim Europa. Assistiam a uma sessão privada de cinema. Fazia um frio de gelar os ossos. Ainda assim, Eduardo foi para o quintal. Deixou-se ficar à beira da piscina.
Lançando mão de recurso extremo, Marta empurrou-o n'água. Com roupa e tudo. Foi, finalmente, notada. Gripado, Eduardo caiu de cama. E sua algoz foi visitá-lo. Iniciaram um namoro que, nascido assim, de dois banhos indesejáveis, desaguou num casamento longevo. Uma união celebrada em 1964, nas pegadas dos coturnos que pisotearam o mandato de João Goulart, há 36 anos.
Coube a Eduardo Suplicy disparar o telefonema que colocaria Marta na trilha atual. Deu-se em dezembro de 1997. "Alô, Marta. O Lula quer que você seja candidata ao governo de São Paulo."
Marta estranhou a ligação. O PT vinha exibindo o seu candidato na TV havia semanas. Era Antônio Palocci, que presidia o partido em São Paulo. Após segundos de estupor, ela perguntou: "Mas por que eu?" E Suplicy: "Palocci vai retirar a candidatura dele, e o Lula acha que o melhor nome é o seu".
Palocci, de fato, acabara de reunir-se com Lula. Ele veio ao telefone: "Se você topar, eu abro mão", disse. "E a disputa no partido?", perscrutou Marta. "Se for para ficar brigando, estou fora." Seu receio não era gratuito. A militância petista a olhava de esguelha.
Marta não é uma petista típica. Não se parece em nada, por exemplo, com a líder do partido no Senado, Heloísa Helena (AL), essa sim petista de mostruário.
Heloísa traz o rosto sempre lavado. Marta não é mulher de vir para o meio-fio sem levar uma camada de cosméticos à bela face que Deus lhe deu e que Ivo Pitanguy retocou. Heloísa enverga calça jeans e camiseta. Marta encobre o corpo com etiquetas de Valentino e Ives St. Laurent, quando muito, faz uma concessão à calça "fuseau", de lycra.
De resto, Marta custava a alcançar a lógica que levara Lula a fixar-se em seu nome. Logo ela, cujo nome era precedido de uma legenda. Logo ela, tida e havida como paladina dos homossexuais e baluarte do aborto legal.
Uma coisa era a eleição para deputado, algo que tirara de letra. Outra bem diferente era o pleito para governador. Numa cidade como São Paulo, de viés conservador, seu histórico poderia converter-se em fardo.
Palocci tranquilizou-a quanto a eventuais resistências internas. "Temos 80% do partido", disse, referindo-se ao naco do PT dominado pela "Articulação", grupo que segue a liderança de Lula. "A campanha é sua." Como Lula batesse o pé, Marta assentiu. Aceitou gostosamente o desafio.
Perdeu o governo para Mário Covas (PSDB), em 1998, numa eleição apertada. Ficou em terceiro. Passou raspando na trave, como se costuma dizer em futebolês. Restou a impressão de que, no pleito municipal de 2000, seria forte candidata à sucessão do desastre Celso Pitta.
Não deixa de ser curioso que o nome de Marta, mais novo sonho presidencial do PT, tenha saltado da cabeça de Luiz Inácio Lula da Silva. É como se Lula garimpasse uma alternativa a Lula.

LULA E MARTA
A bateia de Lula não poderia ter trazido à tona alguém mais distinto de si do que a psicóloga Marta. Na biografia, o único ponto de união é o ano de nascimento: 1945. No mais, tudo é dessemelhança.
Marta é filha da aristocracia paulistana. Lula, de retirantes nordestinos. Marta estava sentada no banco da escola católica Des Oiseaux havia dois anos, quando Lula aportou em Santos, nos idos de 1952, sem nunca ter lido um livro. Ela estudava e passava as férias no castelo do avô barão, em Itaipava (RJ). Ele chorava o abandono do pai, flagrado em São Paulo com outra família, e vendia amendoim e tapioca nas ruas, para dar suporte à mãe.
Em 1964, ano em que Marta e Suplicy casaram-se na Nossa Senhora do Carmo, a igreja da moda de então, Lula perdeu o dedo mínimo. Um colega da Metalúrgica Independência deixou cair o torno sobre sua mão esquerda.
Em 1969, quando Marta iniciou o curso de psicologia na PUC, Lula conduziu Maria de Lourdes ao altar da Igreja Nossa Senhora das Mercês, no bairro do Ipiranga. Menos de um ano depois, ele levaria a mulher, grávida de oito meses, ao leito do hospital. Maria tinha hepatite. Diagnosticaram-lhe anemia. Morreu três dias depois da internação.
Entre 1972 e 1975, Marta fez pós-graduação na Stanford University, mestrado na Michigan State University e formou-se na PUC. No mesmo período, Lula iniciou sua militância sindical, casou-se pela segunda vez, e fez-se presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.
Lula fundou o PT em 1980, o mesmo ano em que Marta levou a temática sexual à tela da TV. Sob bombardeio do sogro Luiz Affonso, Suplicy tornou-se fundador da legenda. Sua mulher hesitou. "Precisava refletir. Não sabia se tinha a ver comigo," rememora. Marta só sentou praça no PT meses depois, quando percebeu que, além de operários, a legenda abrigava intelectuais.
Marta nunca foi de frequentar reuniões partidárias. Nas campanhas, não era do tipo que sujava os sapatos nos cafundós-do-judas. Panfletava nos arredores de casa. Há pelo menos dez anos o PT insistia em que Marta fosse às urnas. Sempre deu de ombros. "O político da família é o Eduardo", dizia. A experiência como deputada deixou-a animada. O bom desempenho no pleito de 98, mais ainda.

HORIZONTE
Hoje, o horizonte da filha de Luiz Affonso é uma janela aberta para o Palácio do Planalto.
"Tenho que ganhar e fazer um bom governo. Se conseguir, posso concorrer ao que eu quiser", diz Marta. "Qualquer político que ganhe em São Paulo pensa eventualmente em chegar à Presidência."
Ela não quer que a entendam mal. Eleita, não pensa em deixar o trabalho pelo meio. Daí que só estará no páreo em 2006, na sucessão do sucessor de FHC.
Isso, claro, se for capaz de remover as pedras que cruzarão o seu caminho. Há a eleição deste domingo; há o segundo turno, que ainda não está na bolsa; há a inexperiência de quem jamais ocupou função executiva; há o legado de dívidas de Pitta; e há o PT, maior adversário dos aliados. Que o digam Vitor Buaiz, Cristovam Buarque e Luiza Erundina.
Sobrevivendo à borrasca, Marta pode mesmo vir a ser o Lula que Lula tanto procura. Um Lula que vem de cima. Um Lula que talvez leve menos desassossego a gente como o velho Luiz Affonso.


Texto Anterior: Servidores da Justiça ganham reajuste salarial
Próximo Texto: São Paulo: Conheça os microcandidatos na disputa
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.