|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PERFIL DO CANDIDATO
Petista afirma que boa administração na prefeitura poderia credenciá-la para sucessão de 2006; psicóloga bem-nascida virou candidata por desejo de Lula, apesar de origem oposta à do líder do partido
Marta pensa em disputar a Presidência
JOSIAS DE SOUZA
EM SÃO PAULO
Ela foi criada para viver num
mundo de donzelas burguesas,
matriarcas austeras e machos
opressivos. Traçaram-lhe um
destino de horizontes acanhados:
estudaria em colégio de freiras,
entregaria seus olhos azuis a um
marido de boa cepa, teria filhos e
administraria o lar.
Aproveitando-se das brechas
que sua época abriu, ela pulou de
uma armadilha que ainda hoje
aprisiona mulheres. Teve a ventura de estudar nos EUA na fase em
que jovens como ela se faziam notar queimando sutiãs em público.
Depois, quando as saias já se insinuavam no mercado de trabalho, ela ganhou fama na telinha da
Rede Globo, entre 1980 e 1986. Invadia os lares, no matinal "TV
Mulher", falando em masturbação, orgasmo e homossexualismo. Um espanto.
Rica e bem-nascida, estreou tarde na política. Só em 1994. Virou
deputada temporã, aos 50. Decorridos cinco anos, as pesquisas a
colocam com um pé na Prefeitura
de São Paulo, um enorme e cobiçado abacaxi administrativo.
Enquanto teve forças, Luiz Affonso Smith de Vasconcellos, 83,
seguiu com olhos de estupefação
os passos de sua menina. Hoje,
debilitado por duas internações
que o ataram irremediavelmente
à cama, o pai de Marta Teresa
Smith Suplicy já não reage à atmosfera que o envolve.
Se estivesse lúcido, talvez se espantasse com o que a sua garota
anda dizendo por aí. Marta, 55,
avisa que, chegando à prefeitura,
quer ir mais longe. Ela quer tornar-se presidente da República. É
mais do que o velho Luiz Affonso
poderia supor.
COMUNISMO
Ele não contemplava em seus
planos a hipótese de a filha vir a
exercer atividades fora de casa.
Quando muito, dizia, aprenderia
inglês e datilografia, por precaução. Para o caso de o comunismo
vingar. Confiscados os bens da família, Marta teria como ganhar o
pão. Seria secretária bilíngue.
O plano do patriarca dos Smith
de Vasconcellos começou a desandar em maio de 1960. No frescor de seus 15 anos, Marta tomou-se de amores por um rapaz de 19.
"O sobrenome é bom, mas as
idéias são muito esquerdistas",
diria Luiz Affonso, ao saber que o
príncipe de seu projeto de Cinderela atendia pelo nome de Eduardo Matarazzo Suplicy.
De fato, visto pelo sobrenome,
Eduardo era um partidaço. Pendia de um tronco menos aquinhoado da árvore dos Matarazzo.
À altura de Marta, cujo avô materno era Júlio Fracalanza, da fábrica
de talheres Fracalanza.
O diabo era a cabeça do rapaz.
Matriculado na Fundação Getúlio
Vargas, Eduardo frequentava o
universo dos grêmios estudantis.
Para Luiz Affonso, um ninho de
comunistas. Marta fez ouvidos
moucos ao pai..
Ela conhecera Eduardo na casa
de um primo, no litoral de São Vicente (SP), em uma festa. Ambiente apinhado. Súbito, gritos.
Alguém se afogava num canal
rente à casa. Eduardo lançou-se
ao mar. Voltou com a vítima nos
ombros. Salvou-a por pouco. A
imagem daquele herói ensopado
fez Marta exceder-se em suspiros.
Difícil era atrair-lhe a atenção.
Os 15 anos de Marta cabiam num
corpo de 12. Por mais que se insinuasse, não lograva fisgar Eduardo, 1,83 m, cabelos fartos.
Encontrou-o de novo dali a algumas semanas, na casa de uma
amiga comum, na rua Itália, Jardim Europa. Assistiam a uma sessão privada de cinema. Fazia um
frio de gelar os ossos. Ainda assim, Eduardo foi para o quintal.
Deixou-se ficar à beira da piscina.
Lançando mão de recurso extremo, Marta empurrou-o n'água. Com roupa e tudo. Foi, finalmente, notada. Gripado, Eduardo
caiu de cama. E sua algoz foi visitá-lo. Iniciaram um namoro que,
nascido assim, de dois banhos indesejáveis, desaguou num casamento longevo. Uma união celebrada em 1964, nas pegadas dos
coturnos que pisotearam o mandato de João Goulart, há 36 anos.
Coube a Eduardo Suplicy disparar o telefonema que colocaria
Marta na trilha atual. Deu-se em
dezembro de 1997. "Alô, Marta. O
Lula quer que você seja candidata
ao governo de São Paulo."
Marta estranhou a ligação. O PT
vinha exibindo o seu candidato
na TV havia semanas. Era Antônio Palocci, que presidia o partido
em São Paulo. Após segundos de
estupor, ela perguntou: "Mas por
que eu?" E Suplicy: "Palocci vai
retirar a candidatura dele, e o Lula
acha que o melhor nome é o seu".
Palocci, de fato, acabara de reunir-se com Lula. Ele veio ao telefone: "Se você topar, eu abro mão",
disse. "E a disputa no partido?",
perscrutou Marta. "Se for para ficar brigando, estou fora." Seu receio não era gratuito. A militância
petista a olhava de esguelha.
Marta não é uma petista típica.
Não se parece em nada, por
exemplo, com a líder do partido
no Senado, Heloísa Helena (AL),
essa sim petista de mostruário.
Heloísa traz o rosto sempre lavado. Marta não é mulher de vir
para o meio-fio sem levar uma camada de cosméticos à bela face
que Deus lhe deu e que Ivo Pitanguy retocou. Heloísa enverga calça jeans e camiseta. Marta encobre o corpo com etiquetas de Valentino e Ives St. Laurent, quando
muito, faz uma concessão à calça
"fuseau", de lycra.
De resto, Marta custava a alcançar a lógica que levara Lula a fixar-se em seu nome. Logo ela, cujo
nome era precedido de uma legenda. Logo ela, tida e havida como paladina dos homossexuais e
baluarte do aborto legal.
Uma coisa era a eleição para deputado, algo que tirara de letra.
Outra bem diferente era o pleito
para governador. Numa cidade
como São Paulo, de viés conservador, seu histórico poderia converter-se em fardo.
Palocci tranquilizou-a quanto a
eventuais resistências internas.
"Temos 80% do partido", disse,
referindo-se ao naco do PT dominado pela "Articulação", grupo
que segue a liderança de Lula. "A
campanha é sua." Como Lula batesse o pé, Marta assentiu. Aceitou gostosamente o desafio.
Perdeu o governo para Mário
Covas (PSDB), em 1998, numa
eleição apertada. Ficou em terceiro. Passou raspando na trave, como se costuma dizer em futebolês. Restou a impressão de que, no
pleito municipal de 2000, seria
forte candidata à sucessão do desastre Celso Pitta.
Não deixa de ser curioso que o
nome de Marta, mais novo sonho
presidencial do PT, tenha saltado
da cabeça de Luiz Inácio Lula da
Silva. É como se Lula garimpasse
uma alternativa a Lula.
LULA E MARTA
A bateia de Lula não poderia ter
trazido à tona alguém mais distinto de si do que a psicóloga Marta.
Na biografia, o único ponto de
união é o ano de nascimento:
1945. No mais, tudo é dessemelhança.
Marta é filha da aristocracia
paulistana. Lula, de retirantes
nordestinos. Marta estava sentada no banco da escola católica Des
Oiseaux havia dois anos, quando
Lula aportou em Santos, nos idos
de 1952, sem nunca ter lido um livro. Ela estudava e passava as férias no castelo do avô barão, em
Itaipava (RJ). Ele chorava o abandono do pai, flagrado em São
Paulo com outra família, e vendia
amendoim e tapioca nas ruas, para dar suporte à mãe.
Em 1964, ano em que Marta e
Suplicy casaram-se na Nossa Senhora do Carmo, a igreja da moda
de então, Lula perdeu o dedo mínimo. Um colega da Metalúrgica
Independência deixou cair o torno sobre sua mão esquerda.
Em 1969, quando Marta iniciou
o curso de psicologia na PUC, Lula conduziu Maria de Lourdes ao
altar da Igreja Nossa Senhora das
Mercês, no bairro do Ipiranga.
Menos de um ano depois, ele levaria a mulher, grávida de oito meses, ao leito do hospital. Maria tinha hepatite. Diagnosticaram-lhe
anemia. Morreu três dias depois
da internação.
Entre 1972 e 1975, Marta fez pós-graduação na Stanford University, mestrado na Michigan State
University e formou-se na PUC.
No mesmo período, Lula iniciou
sua militância sindical, casou-se
pela segunda vez, e fez-se presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema.
Lula fundou o PT em 1980, o
mesmo ano em que Marta levou a
temática sexual à tela da TV. Sob
bombardeio do sogro Luiz Affonso, Suplicy tornou-se fundador da
legenda. Sua mulher hesitou.
"Precisava refletir. Não sabia se tinha a ver comigo," rememora.
Marta só sentou praça no PT meses depois, quando percebeu que,
além de operários, a legenda abrigava intelectuais.
Marta nunca foi de frequentar
reuniões partidárias. Nas campanhas, não era do tipo que sujava
os sapatos nos cafundós-do-judas. Panfletava nos arredores de
casa. Há pelo menos dez anos o
PT insistia em que Marta fosse às
urnas. Sempre deu de ombros. "O
político da família é o Eduardo",
dizia. A experiência como deputada deixou-a animada. O bom
desempenho no pleito de 98, mais
ainda.
HORIZONTE
Hoje, o horizonte da filha de
Luiz Affonso é uma janela aberta
para o Palácio do Planalto.
"Tenho que ganhar e fazer um
bom governo. Se conseguir, posso
concorrer ao que eu quiser", diz
Marta. "Qualquer político que ganhe em São Paulo pensa eventualmente em chegar à Presidência."
Ela não quer que a entendam
mal. Eleita, não pensa em deixar o
trabalho pelo meio. Daí que só estará no páreo em 2006, na sucessão do sucessor de FHC.
Isso, claro, se for capaz de remover as pedras que cruzarão o seu
caminho. Há a eleição deste domingo; há o segundo turno, que
ainda não está na bolsa; há a inexperiência de quem jamais ocupou
função executiva; há o legado de
dívidas de Pitta; e há o PT, maior
adversário dos aliados. Que o digam Vitor Buaiz, Cristovam
Buarque e Luiza Erundina.
Sobrevivendo à borrasca, Marta
pode mesmo vir a ser o Lula que
Lula tanto procura. Um Lula que
vem de cima. Um Lula que talvez
leve menos desassossego a gente
como o velho Luiz Affonso.
Texto Anterior: Servidores da Justiça ganham reajuste salarial Próximo Texto: São Paulo: Conheça os microcandidatos na disputa Índice
|