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ENTREVISTA DA 2ª - GILMAR MENDES
"O aparato policial do Estado hoje está fora do controle"
Presidente do STF diz que grampo em diálogo serviu para criar uma "reação" e mostrar que país atingiu limite em que "é preciso dizer basta"
PRESIDENTE DO STF (Supremo Tribunal
Federal), o ministro Gilmar Ferreira
Mendes, 52, afirmou que o aparato policial do Estado está fora de controle e que
o grampo ilegal do qual ele foi vítima no último mês
de julho serviu para alertar os Poderes constituídos
da situação que o país atravessa. Em entrevista concedida à Folha na manhã da sexta-feira, Mendes
disse ser contrário a qualquer miniassembléia
constituinte, que chamou de "aventura", e afirmou considerar urgente reformas constitucionais ou infraconstitucionais.
ANDRÉA MICHAEL
FELIPE SELIGMAN
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O presidente do Supremo,
ministro Gilmar Mendes, diz
que é preciso modificar o sistema de eleições e também a elaboração e aplicação do Orçamento, que, segundo ele, deve
ser impositivo pelo menos parcialmente e não apenas meramente indicativo, como é hoje.
FOLHA - Depois de 20 anos, o que
está ultrapassado na Constituição?
GILMAR MENDES - Temos de situar esse texto na história.
Saíamos de um processo ditatorial, de insegurança total.
Imaginava-se que o porto seguro era a Constituição constitucional, o que levou a um texto
mais analítico. Tínhamos um
quadro inflacionário muito evidente no governo [José] Sarney, que ao final chegou aos
84,32% ao mês.
Não por acaso a Constituição
incorpora direito à revisão de
vencimentos, à correção no
âmbito da Previdência. Mas a
grande vitória do Brasil no
campo político foi conseguir
maioria constitucional para fazer as reformas, independentemente da alternância de poder.
Não sou favorável a uma miniconstituinte. O texto constitucional não comporta esse tipo de aventura.
FOLHA - O que precisa mudar?
MENDES - É urgente uma reforma política. Os senhores [da
imprensa] têm registrado a absorção de funções do Legislativo pelo excesso de medidas
provisórias, a presença excessiva de suplentes no Senado. Isso
passa pela revisão do modelo
eleitoral.
FOLHA - Recentemente houve críticas de que o STF, com seus poderes,
estaria legislando.
MENDES - É uma crítica inevitável. Não se trata de uma opção
do STF em face da moda. Decorre do texto constitucional.
Há um problema de funcionalidade decorrente do próprio
mecanismo do sistema eleitoral, que adotamos desde 1932, o
modelo proporcional, que dificulta a formação de maioria para um modelo decisório e está
produzindo distorções.
De um lado, a intervenção excessiva do Executivo, distorções na realidade orçamentária, que acredito ser um ponto
sério de reforma, para ter um
Orçamento digno deste nome,
real, efetivo, minimamente impositivo. Você pode ter necessidade de adaptação, mas hoje temos grandes problemas, inclusive da manipulação do sistema
político, pelas tais emendas
parlamentares.
A feitura do Orçamento à
medida que a fila anda, com a
abertura de créditos extraordinários a cada momento para situações que são corriqueiras. É
preciso rediscutir.
FOLHA - Isso vai e volta.
MENDES - É como se fosse reformar um avião em pleno vôo
com seus próprios passageiros.
Essas pessoas se perguntam:
"O que vai acontecer comigo?".
Dizem: "Mas esse modelo é
bom porque ele propiciou a minha eleição". Por isso que é difícil, mas o país reclama. Não temos no Supremo Tribunal Federal qualquer pretensão de substituição do Legislativo.
Mas, muitas vezes, temos atividades complementares.
FOLHA - Por que a súmula do nepotismo não foi cumprida?
MENDES - Trata-se de um fenômeno que é jurídico, constitucional, mas que é político e cultural. Isso existe no Brasil desde sempre. Está sendo cumprida. É uma questão de tempo.
FOLHA - O sr. tem uma formação
técnica, mas também ocupou cargos por indicação política. Como o
sr. vê essa relação?
MENDES - Acho importante,
porque me dá visão mais complexa das coisas. Primo por coerência. As posições que sustentei, por exemplo, no governo
Fernando Henrique, eu as sustento hoje com a mesma transparência. E em temas absolutamente antipáticos, que defendo
por convicção, como prerrogativa de foro e todos os temas ligados ao Estado de Direito.
FOLHA - Daí as críticas de ter concedido tão rapidamente um habeas
corpus a Daniel Dantas?
MENDES - Concedi nesse caso, como em todos os que chegam
ao tribunal relacionados a inúmeros anônimos.
FOLHA - No caso da Operação Satiagraha, o senhor declarou recentemente que não era legal a atuação
da Abin como polícia judiciária.
MENDES - Disse o seguinte: inicialmente, essa participação foi
negada. Depois se disse que
houve uma cooperação tópica
para assuntos estratégicos. A
terceira versão foi a de que participaram dois ou três servidores previamente designados.
Em outro momento se descobrem que eram 52 agentes da
Abin, e depois 56 agentes, e não
sei se paramos por aí.
Revela-se também uma
quantidade enorme de dinheiro despejado nisso. A Abin não
foi subsidiária. Pergunto: pode
haver uma cooperação nesse
nível? Quem autoriza?
FOLHA - Sua opinião.
MENDES - Entendo que não. Isso é indevido e não estou a discutir provas, estou a dizer: que
projeto político se escondia
atrás disso? Era criar o quê?
Uma super Abin e PF, uma fusão delas duas? Será que foi disso que nos livramos a partir da
revelação desses fatos? Que
projeto se escondia atrás disso?
Que a Constituição não contempla eu não tenho a menor
dúvida. Polícia judiciária é atividade da Polícia Federal.
Que possa haver alguma cooperação, pode haver. Pode-se
considerar como cooperação
quando a presença do órgão de
cooperação é maior do que a do
órgão que recebe o apoio?
FOLHA - Qual o reflexo disso sobre
a legalidade da operação?
MENDES - Sobre isso nem falo. A
questão concreta não tem relevância alguma, a não ser no momento em que ela ilumina o
projeto institucional que estava por trás disso. E acho que era
extremamente perigoso para a
democracia. Uma mente perversa pensou isso.
FOLHA - Qual é o impacto institucional do grampo telefônico do qual
o sr. foi alvo?
MENDES - No plano institucional, tenho a impressão de que
há algum tempo o Brasil denuncia o descontrole dessas
áreas e de alguma forma nós até
toleramos e legitimamos esse
processo, como o vazamento
sistemático, a não-punição dessas pessoas.
Isto nos demandava uma
reação. Mas quando a questão
se alçou a esse plano de ouvir
senadores, ministros do Supremo, e quando isso se comprovou, então isso chamou a atenção da sociedade e atingiu
aquele limite no qual é preciso
dizer basta. É preciso que haja
uma reação porque nós estamos na verdade no plano do excesso das anomalias.
Tenho impressão que foi
nesse sentido. O presidente se
sentiu atingido, os presidentes
das Casas se sentiram atingidos, todos se sentiram de alguma forma afetados por isso.
Nós todos no Judiciário de alguma forma éramos afetados
por isso e também co-responsáveis, porque deixamos isso
crescer sem limites.
FOLHA - Mas quem está fora de
controle?
MENDES - Acho que o aparato
policial. Claro que há outros
problemas, mas obviamente
que se tolerou esse tipo de coisa
e o aparato policial, com suas
negociações com a mídia, se autonomizou diante do próprio
Judiciário. A Operação Têmis
[Deusa da mitologia grega que
era convocada em julgamentos
de magistrados], por exemplo.
Se deu esse nome por quê? Sendo uma investigação que começou no âmbito do próprio Poder Judiciário, mas quando ela
vai para a polícia ela ganha esse
nome. Pensado para denegrir a
imagem do Poder Judiciário.
O relator [ministro do STJ
Felix Fisher] decide não prender os eventuais envolvidos e é
desqualificado por delegados
da Polícia Federal. As representações que ele fez para o Ministério Público resultaram arquivadas. Ontem, eu li os episódios envolvendo o ministro
Fisher e me senti um pouco envergonhado de não ter reagido.
FOLHA - Mas ficar preso ao debate
não tira o foco das investigações?
MENDES - Isso não tem nada a
ver com o combate à impunidade. Estou falando como quem
trabalhou na lei de interceptações telefônicas, na lei dos crimes organizados, na lei de lavagem de dinheiro, eu estava no
Ministério da Justiça nesse período. Não se trata de nenhuma
transação. Agora, combate ao
crime organizado dentro dos
ditames do Estado de Direito. É
possível combater o crime organizado dentro das regras do
Estado de Direito? É e é isso
que se quer.
FOLHA - E o projeto de lei para punir o vazador que aborda também a
punição de jornalista. Isso fere um
preceito fundamental?
MENDES - Não conheço o projeto do governo, mas tenho a impressão de que nós temos hoje
um tal descritério e um tal descontrole no vazamento que temos que fazer uma séria atuação nesta área. Que se abra inquérito imediatamente ao vazamento. Hoje temos um problema muito sério e isso é um
problema do governo.
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