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ENTREVISTA
Um dos principais intelectuais do PT, Francisco de Oliveira acredita que partido não fará governo de esquerda
Lula é refundação do Brasil, diz sociólogo
SYLVIA COLOMBO
RAFAEL CARIELLO
ENVIADOS ESPECIAIS A CAXAMBU
A vitória de Lula significa uma
refundação do Brasil, só comparável a outros três momentos históricos -a Abolição, a proclamação da República e a Revolução de
30-, diz o sociólogo Francisco de
Oliveira, 68, professor titular aposentado da FFLCH-USP e um dos
principais e mais influentes intelectuais do PT.
A ressalva, porém, é imediata.
Para ele, Lula não fará um governo de esquerda e é "pouco provável" que consiga criar os 10 milhões de empregos mencionados
em seu programa.
Leia a seguir trechos da entrevista, concedida durante o encontro anual da Anpocs (Associação
Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais),
que aconteceu em Caxambu, na
semana passada.
Folha - A vitória de Lula é um
acontecimento histórico de que
magnitude?
Francisco de Oliveira - Vou falar
na perspectiva de hoje, porque
haverá um tempo posterior que a
confirmará ou não. Eu diria que a
vitória do Lula é uma espécie de
refundação do Brasil. Nós tivemos, nos últimos 150 anos, alguns
grandes marcos que foram verdadeiras refundações do Brasil. Começando pela Abolição, pela República e a Revolução de 30.
Lula é o quarto marco. Não estou tomado pelo otimismo ingênuo de achar que as coisas vão
mudar muito. O que nos autoriza
a pensar em refundação é o fato
de que, pela primeira vez, os dominados estão fazendo a história.
Folha - O sr. crê que esse marco
vai completar o que a Revolução de
30 deixou inacabada?
Oliveira - A Revolução de 30 introduziu o Brasil de uma vez no
tempo moderno, marcado pela
industrialização, pela urbanização, pela modificação na sociedade. A Revolução de 30 abriu um
ciclo que tem sido chamado de
"longa via passiva brasileira", um
processo de modificações, às vezes radicais, conduzidas pela classe dominante ou por frações dela.
A vitória do Lula pode significar
o fechamento do ciclo da Revolução de 30. Nós podemos sair de
uma história passiva, conduzida
pelos blocos dominantes, para
uma história ativa, em que os dominados dão uma marca muito
forte na política do Estado.
Folha - O líder do MST, João Pedro
Stédile, disse recentemente que ou
Lula atende às demandas sociais
ou pode virar um De la Rúa. Pode?
Oliveira - A verdadeira dimensão da vitória do Lula só será reconhecida depois de muito tempo.
Do ponto de vista do seu mandato, de atendimento das enormes
demandas sociais que estão aí, ele
pode até frustrar bastante. Eu não
o julgaria por este lado. Tudo indica que será um mandato muito
difícil. Não diria que será um De la
Rúa, pois a mais longo prazo saberemos se Lula realmente fechou
esse ciclo ou não.
Folha - Se Lula não conseguir responder às promessas de mudança,
o que acontecerá?
Oliveira - Ele será cobrado e as
demandas são fortes. Muitas foram reprimidas no período FHC e
muitas são novas. Se pensarmos
num mandato que possa satisfazer todas as demandas sociais,
certamente ele não vai conseguir,
isso exigiria milagres, e o pior que
uma sociedade pode pedir são
milagres. O governo será muito
complicado e lento nas modificações. Exigirá muito acordo para a
formação de um consenso.
O Lula não é o líder de uma revolução do tipo das grandes revoluções sociais desde o século 18
até o século 20. É o líder da formação de um consenso que requererá muito engenho e arte.
Não é de um golpe súbito que a
situação se transformará. Mais
importante será prestar atenção
nas medidas de integração social,
de recriação do Estado, de sua capacidade de devolver à sociedade
normas de convivência. É por aí
que devemos medir este governo.
Folha - O sr. espera um início de
governo comportado, ortodoxo, em
termos econômicos?
Oliveira - Isso pode ser um elemento de frustração de certa parte da opinião pública, pois ele tende a ser um governo no princípio
conservador. Falando de uma forma mais jocosa, de não fazer muita marola. Se fizer muita marola,
os riscos são enormes.
Folha - De que natureza são esses
riscos?
Oliveira - Há o risco internacional, pois o governo dos EUA é
muito hostil a mudanças, embora
esteja emitindo sinais que, para
um governo Bush, são surpreendentes. Mas não há que se enganar. Se mexer em alguns interesses internacionais, a hostilidade
virá rápido. Por exemplo, se tentar renegociar já a dívida externa.
Folha - E quais são os principais
obstáculos internos?
Oliveira - Não convém fazer tábula rasa da herança desintegradora desses últimos dez anos. A
taxa de desemprego e a dívida interna recordes e as tensões inflacionárias. Este conjunto colocará
o governo em posição de cautela.
Folha - O sr. vê a possibilidade
concreta de uma reação interna?
Oliveira - Não. Seria muita afobação. Mas não se faz omelete
sem quebrar os ovos. Para renegociar a dívida interna, para ganhar maior margem de manobra,
vai ser preciso estabelecer uma
agenda de novos compromissos
em que o empresariado conceda
um prazo bastante largo para que
as coisas possam se rearrumar.
Folha - O pacto nacional é viável?
Oliveira - Esse pacto é uma obra
de bordado do Ceará, que requer
extrema habilidade política. Acho
que o PT tem a capacidade de fazer. Mas, como Garrincha nos
lembrou, é preciso saber se isso
está combinado com o outro lado,
com entidades patronais, com o
empresariado, com sindicatos,
movimentos sociais, para que o
governo tenha fôlego para retomar o crescimento. Na verdade, o
grande pacto só se dá se o crescimento econômico for retomado.
Folha - O modelo de desenvolvimento orientado pelo Estado até
aqui não funcionou. Qual é a saída
para o Brasil voltar a crescer?
Oliveira - Não é verdade que não
funcionou. Dos anos 30 aos anos
80, o Estado teve uma forte participação no direcionamento da
economia. O Estado investia junto com o setor privado, indicava
caminhos e armou conjuntos de
empresas produtivas que foram
eficazes para a industrialização.
Folha - Essa capacidade de investimento não se esgotou?
Oliveira - Havia se esgotado nos
anos 80, devido à brincadeira da
dívida externa. Foi a dívida externa que liquidou com a capacidade
financeira do Estado brasileiro.
Suas estatais foram usadas para
resolver problemas de balanço de
pagamentos, por isso se endividaram. Foram usadas como instrumentos de política econômica.
Em resumo, não se pensa em
nenhuma volta à estatização, mas
uma coisa é certa: sem a recriação
da capacidade reguladora e da capacidade do Estado de sustentar
políticas de desenvolvimento, as
chances são poucas. A periferia,
na qual se situa o Brasil, não pode
se contentar com o mercado.
Nossos países não têm moeda forte, portanto não têm outro recurso a não ser usar a força estatal.
Folha - O crescimento de 5% ao
ano nos próximos quatro anos, que
é o que foi anunciado como necessário para a criação de 10 milhões
de empregos, é viável?
Oliveira - Não. A curto prazo,
não vai dar. Não nos façamos ilusões.
Folha - A criação de 10 milhões de
empregos é difícil, então...
Oliveira - É difícil. Criar 10 milhões de empregos em quatro
anos não é nada fácil. Até porque
a pressão sobre a balança de pagamentos pode ser imediata. Há aí
uma contradição imediata: toda
pressão sobre balanço de pagamentos agrava a dívida externa e,
ao fazê-lo, comprime de novo a
possibilidade de crescimento.
Folha - Pode-se dizer que é improvável?
Oliveira - Diria que é pouco provável. Sobretudo a criação de emprego formal, que traga consigo
garantias sociais. O emprego informal não custa nada. Mas não é
desse emprego que precisamos.
Folha - O que será do PSDB agora?
Oliveira - Não vai acontecer nada
de muito radical. O PSDB é uma
das novas experiências da política
brasileira, assim como o PT. Foram digeridos pela enorme capacidade de cooptação que a política
brasileira produz. O PSDB vai
tentar liderar a oposição, não por
uma questão ideológica. É uma
razão que vem da estrutura social.
Esse é um país muito complexo,
que não comporta clivagens muito taxativas. Não é por outra razão
que o PT foi para o centro. Não foi
por cooptação ou fuga ideológica,
como geralmente se pensa. É que
a sociedade é complexa. O PSDB
vai liderar a oposição porque sabe
que partes da sociedade não vão
estar satisfeitas com o governo.
Folha - O sr. acha que o PT não vai
tentar reformas à esquerda?
Oliveira - Não.
Folha - Por quê? Se tentasse, não
passariam no Congresso?
Oliveira - Não passam. Reformas
mais à esquerda não passam no
Congresso.
Folha - O sr. acredita que o Congresso continua conservador?
Oliveira - Sim, embora tenha havido uma renovação importante,
da qual o PT é um protagonista
importante. Mas o Congresso
continua conservador. Há uma
confusão que está sendo feita, que
as eleições teriam mostrado um
avanço da esquerda. Houve uma
enorme renovação e uma indicação de oposição. Isso quer dizer
uma demanda por mudança na
orientação econômica e por novos empregos, mas não uma demanda de esquerda.
Isso aconteceu por causa do
quadro deteriorado que existe hoje no Brasil. O PT não vai tentar
reformas à esquerda.
Folha - Mas o que é ser de esquerda?
Oliveira - Ser de esquerda, noutros tempos, significava tentar socializar os meios de produção. Isso não está na pauta posta por nenhuma força política.
Sou marxista. Uso a teoria de
Marx para entender a sociedade
contemporânea. Na definição de
Marx, ser de esquerda é pôr o
acento na igualdade.
Em termos ideológicos clássicos, ser de esquerda era querer
que os trabalhadores assumissem
o controle do Estado. Radicalmente, ser de esquerda ainda é isso. Hoje, é retirar todas as discriminações possíveis, introduzir as
classes populares nas instituições
republicanas mais importantes.
É dizer que é preciso controle de
quem trabalha dentro das empresas capitalistas. Dito hoje, isso é
um enorme escândalo. Como eu
não sou governo, não tenho responsabilidades de governo, posso
continuar dizendo. Enquanto a
empresa capitalista continuar
sendo o reduto férreo da ditadura
do capital, a democracia e a igualdade não estarão realizadas.
Folha - O governo do PT não será,
então, um governo de esquerda?
Oliveira - Nesses termos, certamente não. Como se faz isso? Não
desapropriando os empresários.
A primeira vez que subi num caixão de gás para fazer política, era
isso que eu pensava. A idade faz
você ficar mais moderado.
Folha - Qual o significado para o
grupo de intelectuais do qual o sr.
faz parte da vitória de Lula?
Oliveira - Os intelectuais fizeram
a crítica do passado, o PT apropriou-se dessa crítica. Não inventamos o partido, mas a contribuição dos intelectuais foi muito importante. Para esse grupo, a sensação é a que nós temos uma responsabilidade enorme em mergulhar de cabeça nesse processo.
Por muitas razões. A primeira delas é não permitir que a direita
avance sobre uma conquista popular. Continuar a fazer a crítica
para que a direita não avance.
Da perspectiva mais restrita da
minha geração, é uma espécie de
confirmação da crítica que fizemos no passado. Esses intelectuais devem encarar esse enorme
desafio que é mergulhar de cabeça. Até onde sou parte desse sentimento, posso dizer que não estou
me equivocando. É mergulhar de
cabeça para fazer avançar. Nosso
processo é sempre montado em
dois pontos: preservar para avançar. O socialismo é isso.
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