São Paulo, segunda-feira, 29 de novembro de 2004

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ARQUIVOS DO NAZISTA

Cartas escritas durante refúgio no Brasil incluem poesia sobre guerra e negociação com editora

Mengele tentou publicar livro nos anos 70

ANA FLOR
ANDRÉA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Em pelo menos duas cartas escritas no início dos anos 70, o médico nazista Josef Mengele, então escondido no Brasil, faz referência a manuscritos que teria enviado a uma editora por meio do amigo austríaco Wolfgang Gerhard. Gerhard, conforme escreve Mengele em 1974, seria o responsável por negociar a publicação dos escritos com a editora Stocker-Verlag, da cidade austríaca de Graz, onde Gerhard morava.
"O senhor escreve que o meu manuscrito ainda está na editora Stocker. Naturalmente, continuo interessado em receber qualquer forma de opinião, avaliação, crítica e idéias, especialmente -é claro- de especialistas. Talvez esses últimos tenham que separar a sua avaliação, sendo, por um lado, de um ponto de vista meramente artístico, por outro, o do "negócio'; gostaríamos de ouvir ambas as opiniões."
Em outra carta, escrita dois anos antes, o médico diz ter terminado "um terceiro capítulo" e agradece por um cheque recebido -sem deixar claro que a quantia a ele destinada fora dada como pagamento por alguma publicação. No mesmo texto, dá pistas de que usaria um pseudônimo.
"Fico satisfeito que o meu terceiro capítulo tenha chegado bem às suas mãos e, naturalmente também, que o senhor pretenda encaminhar os meus escritos a críticos imparciais. Isso já estamos esperando há muito tempo e, no entanto, fiquei ainda mais convencido da minha opinião que não faz sentido esperar qualquer crítica ou idéia útil de um "não especialista", ainda mais se conhecem o escritor."
Na semana passada, a Folha tentou contactar a Stocker. Não houve resposta aos dois e-mails enviados pela reportagem.
Mengele não deixa claro a qual estilo literário se dedicava. Porém, em uma carta escrita a Gerhard, também em 1972, o médico alemão fala de sua "veia de poeta". Ele conta ao austríaco que fora demitido da fábrica de papel Melhoramentos, em Caieiras (SP), onde morava. Sua idéia era dedicar o tempo livre e a tranquilidade financeira -receberia uma indenização- à literatura.
Pretendia testar a qualidade de sua escrita, mas tinha dúvidas sobre sua capacidade efetiva de produzir no ócio. "Especialmente me interessa, naturalmente, como a veia de poeta se comportaria neste caso por mim almejado."
Na mesma carta, Mengele, que foi fugitivo por 34 anos (19 dos quais viveu no Brasil), diz que a mudança decorrente da perda do emprego atrapalharia sua produção textual. "Para outra pessoa, seria a coisa mais natural do mundo. Para mim, diante de minha sensibilidade pessoal, é simplesmente terrível."

Carta ao filho
Em carta ao filho Rolf, em 1976, Mengele conta que começou a escrever sua autobiografia, atendendo a um pedido do filho.
Comenta a "sorte" de ter uma boa memória, mas que ela também estaria "indo", isto é, se apagando com o passar do tempo.
Na carta a Rolf, Mengele fala sobre o período depois da Primeira Guerra Mundial, de seus estudos e da vida simples que teve logo após a queda do 3º Reich, quando foi viver com agricultores no sul da Alemanha. Segundo a carta, o médico teria gravado fitas, nas quais provavelmente contava trechos de sua vida.

Rima rebuscada
Nos documentos pertencentes a Mengele que estavam perdidos na superintendência da Polícia Federal em São Paulo -a que a Folha teve acesso com exclusividade-, há algumas poesias. A análise de três delas -duas em tradução livre e uma em literal- revela uma rima rebuscada e temas românticos e patrióticos, sempre em situações idealizadas pelo autor.
Uma delas é um lamento escrito para o dia em que o final da Segunda Guerra Mundial completou 30 anos. "Se nenhum deus se ocupa do seu sofrimento, a sorte e a habilidade estão nas mãos dos homens: isso que outrora foi divino em nossa raça significou fidelidade, honra, direito; o alemão foi de força conceptiva, gerou beleza, significou sangue e pátria."

Críticos imparciais
A grande preocupação explicitada pelo médico é a de que seus escritos fossem avaliados por críticos imparciais. E, para intermediar essa apreciação, conta novamente com o amigo Gerhard.
"Esses [críticos parciais] receiam, por causa de um certo preconceito e parcialidade, expressar a sua opinião de qualquer forma, inclusive de dizer somente: gostei disso -ou também não."
A imparcialidade, continua Mengele, seria facilitada pela distância em que vivia da Europa. "Quando o oceano está no meio, isso parece ser mais possível."


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