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ARQUIVOS DO NAZISTA
Cartas escritas durante refúgio no Brasil incluem poesia sobre guerra e negociação com editora
Mengele tentou publicar livro nos anos 70
ANA FLOR
ANDRÉA MICHAEL
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Em pelo menos duas cartas escritas no início dos anos 70, o médico nazista Josef Mengele, então
escondido no Brasil, faz referência a manuscritos que teria enviado a uma editora por meio do
amigo austríaco Wolfgang Gerhard. Gerhard, conforme escreve
Mengele em 1974, seria o responsável por negociar a publicação
dos escritos com a editora Stocker-Verlag, da cidade austríaca de
Graz, onde Gerhard morava.
"O senhor escreve que o meu
manuscrito ainda está na editora
Stocker. Naturalmente, continuo
interessado em receber qualquer
forma de opinião, avaliação, crítica e idéias, especialmente -é claro- de especialistas. Talvez esses
últimos tenham que separar a sua
avaliação, sendo, por um lado, de
um ponto de vista meramente artístico, por outro, o do "negócio';
gostaríamos de ouvir ambas as
opiniões."
Em outra carta, escrita dois
anos antes, o médico diz ter terminado "um terceiro capítulo" e
agradece por um cheque recebido
-sem deixar claro que a quantia
a ele destinada fora dada como
pagamento por alguma publicação. No mesmo texto, dá pistas de
que usaria um pseudônimo.
"Fico satisfeito que o meu terceiro capítulo tenha chegado bem
às suas mãos e, naturalmente
também, que o senhor pretenda
encaminhar os meus escritos a
críticos imparciais. Isso já estamos esperando há muito tempo e,
no entanto, fiquei ainda mais convencido da minha opinião que
não faz sentido esperar qualquer
crítica ou idéia útil de um "não especialista", ainda mais se conhecem o escritor."
Na semana passada, a Folha
tentou contactar a Stocker. Não
houve resposta aos dois e-mails
enviados pela reportagem.
Mengele não deixa claro a qual
estilo literário se dedicava. Porém,
em uma carta escrita a Gerhard,
também em 1972, o médico alemão fala de sua "veia de poeta".
Ele conta ao austríaco que fora demitido da fábrica de papel Melhoramentos, em Caieiras (SP), onde
morava. Sua idéia era dedicar o
tempo livre e a tranquilidade financeira -receberia uma indenização- à literatura.
Pretendia testar a qualidade de
sua escrita, mas tinha dúvidas sobre sua capacidade efetiva de produzir no ócio. "Especialmente me
interessa, naturalmente, como a
veia de poeta se comportaria neste caso por mim almejado."
Na mesma carta, Mengele, que
foi fugitivo por 34 anos (19 dos
quais viveu no Brasil), diz que a
mudança decorrente da perda do
emprego atrapalharia sua produção textual. "Para outra pessoa,
seria a coisa mais natural do mundo. Para mim, diante de minha
sensibilidade pessoal, é simplesmente terrível."
Carta ao filho
Em carta ao filho Rolf, em 1976,
Mengele conta que começou a escrever sua autobiografia, atendendo a um pedido do filho.
Comenta a "sorte" de ter uma
boa memória, mas que ela também estaria "indo", isto é, se apagando com o passar do tempo.
Na carta a Rolf, Mengele fala sobre o período depois da Primeira
Guerra Mundial, de seus estudos
e da vida simples que teve logo
após a queda do 3º Reich, quando
foi viver com agricultores no sul
da Alemanha. Segundo a carta, o
médico teria gravado fitas, nas
quais provavelmente contava trechos de sua vida.
Rima rebuscada
Nos documentos pertencentes a
Mengele que estavam perdidos na
superintendência da Polícia Federal em São Paulo -a que a Folha
teve acesso com exclusividade-,
há algumas poesias. A análise de
três delas -duas em tradução livre e uma em literal- revela uma
rima rebuscada e temas românticos e patrióticos, sempre em situações idealizadas pelo autor.
Uma delas é um lamento escrito
para o dia em que o final da Segunda Guerra Mundial completou 30 anos. "Se nenhum deus se
ocupa do seu sofrimento, a sorte e
a habilidade estão nas mãos dos
homens: isso que outrora foi divino em nossa raça significou fidelidade, honra, direito; o alemão foi
de força conceptiva, gerou beleza,
significou sangue e pátria."
Críticos imparciais
A grande preocupação explicitada pelo médico é a de que seus
escritos fossem avaliados por críticos imparciais. E, para intermediar essa apreciação, conta novamente com o amigo Gerhard.
"Esses [críticos parciais] receiam, por causa de um certo preconceito e parcialidade, expressar
a sua opinião de qualquer forma,
inclusive de dizer somente: gostei
disso -ou também não."
A imparcialidade, continua
Mengele, seria facilitada pela distância em que vivia da Europa.
"Quando o oceano está no meio,
isso parece ser mais possível."
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