São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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DAVOS - DEBATE GLOBAL - PORTO ALEGRE

Críticas de Davos colocam a América Latina no "divã"

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A DAVOS


A América Latina vem seguindo o receituário dito neoliberal, o favorito de 11 de cada 10 freqüentadores habituais de Davos (o Brasil também). Até a Argentina, o vilão regional, por ter decretado a moratória há três anos, mantém, por exemplo, um superávit fiscal de 4% de seu PIB (é a diferença entre receitas e despesas do governo como proporção da produção econômica do país).
A América Latina teve um desempenho econômico notável no ano de 2004, ao crescer 5% (o Brasil também).
Logo, o encontro anual 2005 do Fórum Econômico Mundial foi uma celebração da América Latina (e do Brasil também), certo?
Errado.
Celebração sobre o desempenho econômico até que houve, para o Brasil principalmente. Mas cercada de tantas ressalvas que a sub-região acabou sendo levada ao divã, em uma sessão de três horas de duração na sexta-feira (o Brasil foi junto).
Para começar, olhando para o presente, lembrou William Rhodes, presidente do Citibank e um banqueiro que lida com América Latina há tanto tempo que fala "obrigado" e "muchas gracias" sem sotaque:
"A América Latina tem tremendos desafios pela frente, quando se olha para o crescimento da China, para o que está ocorrendo na Índia e na Ásia em geral."
Para continuar, olhando para o futuro, Rhodes avisa que vem aí um aumento dos juros norte-americanos, que pode afetar a América Latina, na medida em que os juros baixíssimos praticados na principal economia do mundo ajudaram a trazer capital para o Sul, área em que os juros são mais atraentes (em especial no Brasil, que tem os juros mais altos do mundo).
Olhando para trás, Enrique García, o presidente da CAF (Corporação Andina de Fomento), uma espécie de BNDES dos países andinos, diz: "A América Latina precisa reconhecer suas limitações e constatar que perdeu importância relativa no mundo".
Se o metro com que se mede a perda de importância relativa for o interesse pela região em Davos, a perda foi sensível: na sessão da sexta em que se discutiu a economia brasileira, havia cinco mesas de dez lugares cada uma. Uma delas ficou vazia. No dia anterior, na sessão sobre a China, em um salão muitíssimo maior, boa parte do público teve de ficar em pé.

"Idade de ouro"
É compreensível, portanto, que o ex-presidente mexicano Ernesto Zedillo, hoje diretor do Centro para o Estudo da Globalização da Universidade Yale (EUA), detecte uma "nostalgia da idade de ouro" (os anos 60 e parte dos 70, em que a América Latina crescia aos níveis da China). Cruel, Zedillo lembra, no entanto: "Mesmo na idade de ouro, a América Latina teve performance insuficiente, tanto que foi a única região que não diminuiu a brecha com os EUA".
A nostalgia, sempre segundo Zedillo, tem também um componente político, na forma de saudades "do velho populismo" -uma palavra, aliás, que Davos abomina incondicionalmente.
Tanto abomina que Ignacio Walker, o novo ministro chileno do Exterior, mesmo cobrando "novas e sadias lideranças", pede que sejam "diferentes da tradicional, carismática e populista".
Já o senador norte-americano Christopher Dodd (do partido democrata) prefere dizer que um dos problemas da América Latina é o fato de não ter construído instituições sólidas, defeito que vem do período colonial e que "gerou um sistema de caudilhos, mais que de instituições".
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva está na lista dos populistas (ou caudilhos), em que, sim, figuram o argentino Néstor Kirchner e o venezuelano Hugo Chávez?
Não, pelo menos para Walker. Ao contrário, o chanceler chileno elogiou muito Lula por ter tido a coragem de adotar medidas que contrariaram a clientela habitual de seu partido. "Pagou um preço por isso", diz Walker.
Como era previsível, o ministro de Lula, Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento), faz idêntico reconhecimento: "Há dois anos, muitos de vocês não acreditariam que Lula pudesse manter o caminho da democracia e das reformais fiscais, de continuar fazendo o que é bom para o país."
É um elogio, claro, mas não é aquele que o presidente e seu partido gostariam, na medida em que ambos adoram negar que sigam as políticas de seu antecessor.
Os elogios não impediram, no entanto, constatações negativas. "Sabemos bem o que acontecerá no Brasil quando os juros internacionais subirem", diz Zedillo.
Se a idéia é que acontecerão coisas terríveis no Brasil, nem todo mundo em Davos sabe.
John Williamson, conhecido como pai do Consenso de Washington, o receituário neoliberal, não vê grandes problemas para o Brasil na alta dos juros nos EUA, pelo fato de que seria pequena a porcentagem de dinheiro que poderia deixar de ir para o país em busca de maior rendimento com os novos juros norte-americanos.
Para Williamson, o problema do Brasil não são os juros norte-americanos, mas os seus próprios, tese que seria unânime em Davos se o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, não tivesse comparecido ao encontro.

Males conhecidos
Do divã em que Davos deitou o subcontinente, emergiu um diagnóstico carregado de males, a maioria bem conhecia: corrupção, carências educacionais, pobreza, desrespeito à lei, excesso de informalidade, excesso de leis, ineficácia do Estado, visão de curto prazo dos governantes etc.
Mas emergiram também aspectos menos notados ou, pelo menos, menos comentados.
O senador Dodd disse que "a América Latina é pré-capitalista em valores culturais, mas vive em um ambiente capitalista".
Até o que já foi motivo de orgulho (o crescimento das cidades, que levou São Paulo a carregar, durante anos, o slogan "São Paulo não pode parar") agora é um problema. "É uma região demasiadamente urbanizada, a área geográfica mais urbanizada do mundo."
Mas nem todos concordaram com o diagnóstico pessimista de Zedillo. Em ao menos um caso, houve o contrário. Ou por temperamento ou por dever de ofício, o ministro Luiz Fernando Furlan decretou: "O século 21 pode ser o século da América Latina."


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