São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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NO PLANALTO

Políticos brigam e seu bolso é que se machuca

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Houve um tempo em que a análise política exigia meia dúzia de raciocínios transcendentes. Era imperioso decidir se o pragmatismo do PSDB era melhor do que o puritanismo do PT, se a social-democracia responderia às dúvidas do socialismo, se a ética da responsabilidade prevaleceria sobre a ética da convicção, se o PTB estava à direita do PP, se isso, se aquilo.
A coisa hoje é bem mais simples. Gente como Karl Marx e Max Weber tornou-se descartável. Falidas as ideologias, o templo da política consolidou-se como uma congregação de homens de bens. Vigora no Congresso, agora mais do que antes, a lógica do negócio. Tudo se subordina a ela, inclusive os escrúpulos.
O processo político, outrora obscuro, foi subitamente clarificado pela descoberta de que o ex-PT não está imune às tentações alheias, nem mesmo às alianças esdrúxulas. Ao aderir ao fisiologismo, o ex-puro mostrou que a adesão aos inimigos, mais do que estratégia, é comunhão de estilos.
Ao nivelar-se à culpa comum dos outros, o petismo enterrou a pseudodiferença mágica. Foram-se os constrangimentos, as meias palavras e os subterfúgios. Todos se irmanaram na abjeção.
A orgia proporcionada pelo exercício despudorado do poder revelou aos ex-castos os prazeres da liberação da $ensualidade. A volta à antiga castidade, além de indesejada, é impossível. "Revirginização" é vocábulo por inventar.
A integridade dos ovos não vale mais nada. Importa apenas o proveito do omelete. Já nem é preciso varrer as cascas para debaixo do tapete. A generalização da desfaçatez tornou a anomalia normal. Superado pelo impensável, o inacreditável já não assusta. Até a imprensa o trata com indulgência.
O cliente mais notório do Congresso privatizado é o governo (eu, tu, eles). Num processo deflagrado sob Sarney, escancarado sob Collor, institucionalizado sob FHC e desmistificado sob Lula, o empreendimento congressual tonificou-se de modo tragicamente irreversível.
Perdeu-se pelo caminho um elemento que outrora recebia o nome de recato. Institucionalizou-se o troca-troca sem culpa, o vale-tudo sem represálias. Deputados e senadores mercadejam a própria honra. Sem o inconveniente de apensar ao contrato um atestado de origem.
Vendem-se votos à luz do dia. A cotação varia conforme o peso da matéria sob análise. Negocia-se ora em nome próprio, ora em nome dos grupos que financiam a eleição, ora em nome da rede de interesses regionais que sustentam o mandato.
Mesmo os temas supostamente relacionados à economia doméstica do Congresso foram ao balcão. A escolha dos presidentes da Câmara e do Senado ocorre numa atmosfera de algaravia em que sobressai o tilintar de moedas e cargos.
No Senado, a nota promissória está assinada. A virtual eleição do ex-collorido Renan Calheiros custará um rapapé para José Sarney -a hipoteca de uma vaga para a filha Roseana na Esplanada-, alguns acenos para o PMDB e o empenho de verbas orçamentárias carimbadas por parlamentares num Orçamento da União que se diz exíguo.
Na Câmara, trava-se uma "disputa" que consome páginas e páginas de jornal. Notícias vãs. Aconselha-se ao leitor que não desperdice um único segundo do seu tempo tentando acompanhar a movimentação de Greenhalghs e Guimarães, de Severinos e Aleluias. O circo foi montado para a diversão de almas ingênuas.
Convém anotar o provável resultado: antes que o primeiro voto desça à urna, pode-se deduzir que Luiz Eduardo Greenhalgh será eleito presidente da Câmara, substituto eventual de Lula (já pensou?).
De resto, caro leitor, comece a contabilizar os prejuízos. Vêm aí: 1) o aumento do salário dos parlamentares; 2) um novo reforço nas verbas de gabinete, torradas com muito despudor e pouca transparência; 3) um novo lote de generosas liberações orçamentárias para obras de utilidade duvidosa e execução temerária.
Há mais e pior: convenientemente adiado para depois do Carnaval, o anunciado arrastar de cadeiras na Esplanada será ouvido também nos fundões da administração pública. Não bastasse a iminente nomeação de novos ministros obscuros, as portas de estatais e autarquias serão abertas para apaniguados despreparados e teleguiados.
Como se vê, o acompanhamento do cotidiano político tornou-se um processo simples. Tão simples que até os seres mais simplórios podem acompanhá-lo. Fácil perceber que o Estado vem sendo espoliado em nome dos interesses mais organizados.
Mocinhos e bandidos são agora indistinguíveis. O legítimo e o indecoroso confundem-se em meio à impessoalidade de um mercado persa em que não há mais crimes. Muito menos castigos. Ninguém paga por nada, exceto o erário.
Não é a toa que o ex-PT propõe mais um aumento de impostos. O jogo da política é cada vez mais mesmo caro.


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