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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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NO PLANALTO

Saúde pública vira DOI-Codi pós-moderno

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Há um lugar onde o Estado ainda tolera a tortura. O SUS converteu-se em sistema único de sevícias. Opera um novo instrumento de suplício: o pau-de-arara burocrático.
Esqueça-se, por batida, a imagem de doentes gemendo em macas abandonadas nos corredores de hospitais. Tome-se, por modelar, o programa de combate à Aids. Vem submetendo parte da clientela a castigos insondáveis.
Aqui se relatará a saga de quatro neotorturados. Terão os nomes preservados. Sobrevivem à Aids em Joinville (SC). Aposentados compulsoriamente, recebem pensões de fome. Serviam-se de coquetel de remédios ofertado pelo SUS (combinação de 15 tipos de drogas).
Súbito, os medicamentos perderam o efeito. Como os doentes caminhassem rumo à sepultura, o médico Luiz Henrique Melo receitou-lhes remédios novos, importados e caros. Coisa de R$ 1.600 a R$ 1.800 mensais.
Não constavam da lista do governo. E o SUS refugou a prescrição. Impacientes, os pacientes foram ao Ministério Público. O procurador Davy Lincoln Rocha comprou-lhes a briga em julho de 2001.
Acionada, a juíza federal Erika Giovanni Reupke cobrou explicações às autoridades. Lançado ao porão do SUS, o caso migrou da seara médica para a jurídica.
Brasília iniciou a tortura. Alegou que só lhe cabe planejar e formular políticas. Não se sente "obrigada especificamente à prestação dos serviços de saúde" (página 55 do processo judicial).
Santa Catarina deu sequência à sessão de maus-tratos. Argumentou que União e Estados repassam verbas, "mas o município é quem será responsável pela garantia da prestação de serviços" (página 181 dos autos).
Joinville completou o ciclo de crueldade. "Ora, se cabe ao Ministério da Saúde o registro, a autorização de importação [...], incompetente é o município para decidir se este ou aquele medicamento deve ser utilizado" (página 67).
Em sentença válida para todo o país, a juíza Erika Reupke ordenou o fornecimento das drogas. Sob ameaça de prisão, os agentes do porão recorreram sucessivas vezes. Acumularam derrotas.
Um doente, em estágio terminal, desceu à cova. Outros três, graças aos novos medicamentos, tiveram a carga viral reduzida a zero. Passam bem. Um dos medicamentos sonegados (Kaletra) foi incorporado à lista oficial do SUS. Outro (Tenofovir) aguarda regularização.
Os pacientes, que já se imaginavam a salvo do pau-de-arara administrativo, voltaram a sentir o bafo acerbo da burocracia no dia 10 de março. Atendendo a novo recurso de Brasília, o juiz Teori Albino Zavaski, presidente do TRF-4, revogou a sentença que impusera o fornecimento dos remédios.
Aceitou-se a tese de que a decisão imporia transtornos econômicos incontornáveis ao governo. O juiz citou na sentença o remédio Kaletra, cuja incorporação à lista do SUS é fato consumado.
Levado ao pé da letra, o despacho devolverá os pacientes de Joinville ao corredor da morte. Como eles, encontram-se pendurados à farmácia do SUS 127 mil pacientes de Aids. Não passam de 3.000 os casos que reclamam drogas alternativas.
Paulo Roberto Teixeira, chefe do programa de Aids desde FHC, diz que a demanda por novas medicações "tornou-se problema grave". Em muitos casos, reconhece, são vitais. A única forma de obtê-los é mesmo a via judicial.
"Seguimos a política de garantir os direitos dos pacientes." Por que, então, os recursos protelatórios? "Na maioria dos casos a prescrição imposta por sentença não é a mais adequada. Há lobby dos laboratórios."
O que fazer? "Deve-se abrir um diálogo entre o setor de saúde e a área judicial, para chegar a um modelo ágil de avaliação da indicação médica. Temos como dar resposta em até 48 horas."
No caso aqui relatado, tudo sucedeu às avessas. Em julho de 2001, o Estado soube que quatro pacientes muito pobres e muito moribundos necessitavam de ajuda. Podendo assegurar-lhes "os direitos", empreendeu uma cruzada para negá-los.
A resposta final não veio em "48 horas". Chegou dois anos e três meses depois do pedido de socorro. Não fosse "a prescrição imposta por sentença", talvez já estivessem mortos. Ao revogá-la, o TRF-4 reacomoda no pau-de-arara da burocracia pacientes que estavam postos em sossego.


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