São Paulo, Sexta-feira, 30 de Abril de 1999
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Saiba quem apostou contra o real e ganhou milhões

GUSTAVO PATÚ
em São Paulo

RICARDO GRINBAUN
da Reportagem Local


A lista da Bolsa de Mercadorias & Futuros com todas as operações no mercado futuro de dólar em janeiro mostra pelo menos 13 investidores que fizeram, rigorosamente, a operação certa às vésperas da desvalorização do real.
Os nomes: Joseph Safra, BBM, Cacique, Citibank, Brascan, Fundo Positano, Modal (banco e fundos), HSBC, Axial, Rendimento, Deutsche, Morgan Guaranty e Bozano, Simonsen.
São instituições de diversos tamanhos, estratégias e áreas de atuação, mas com algo em comum: todos quase só fizeram compras de dólares nos dias 11 e 12 de janeiro.
Outros bancos, fundos e pessoas físicas também compraram dólares naqueles dias, mas intercalando essas operações com vendas da moeda norte-americana, reduzindo o risco de sua aposta.
A listagem da BM&F, que ocupa quatro calhamaços, cada um com a grossura de uma lista telefônica, é a principal pista em poder da CPI dos Bancos para uma nova etapa das investigações: quem ganhou com a desvalorização do real, quanto e, principalmente, como.
Desde que a CPI começou, sua hipótese básica é que tenha ocorrido um vazamento de informação do Banco Central que permitiu a investidores lucrar alto comprando dólares com antecedência.
No entanto, até aqui o caso que rendeu mais indícios é o de um perdedor, o Banco Marka. Se usou informação privilegiada para apostar 20 vezes o seu patrimônio na manutenção do real, o Marka escolheu o informante errado.
Os dados requisitados à BM&F e vazados anteontem pela CPI são um documento inédito e de repercussões ainda imprevisíveis.
Nunca houve um relato tão completo das entranhas do mercado financeiro. Basta dizer que até um extrato de conta corrente é protegido pelo sigilo bancário. Agora, os senadores têm em mãos todas as operações de todos os investidores do mercado, descritas a cada dia com os volumes e as corretoras que as intermediaram.
Resta a dúvida mais importante: a lista é suficiente para apontar se um banco, um fundo ou uma pessoa tinha plena certeza do que estava fazendo quando apostou milhões na desvalorização do real?
Em primeiro lugar, os senadores precisarão descobrir as outras operações nas quais os investidores estavam envolvidos nos dias que antecederam o fim do controle das cotações do câmbio.
É possível que um banco que comprou dólares no mercado futuro tenha vendido no mercado à vista, ou em outra modalidade de negócio disponível na BM&F.
Isso é o que responderá se os bancos estavam jogando no ataque -ganhar uma fortuna em poucos dias- ou na defesa -evitar um prejuízo monumental com o crescimento súbito dos compromissos em moeda estrangeira.
Outra providência importante é avaliar o que se passou no Brasil e no mercado financeiro na primeira quinzena de janeiro.
1 - De possibilidade a certeza
A discussão sobre a necessidade de desvalorização do real começou no dia que o real foi criado, 1º de julho de 94.
Desde então, sabia-se que o país, em algum momento, teria de abandonar a política de controlar a inflação mantendo baratos o dólar e os produtos importados -à custa de déficits comerciais crescentes e juros estratosféricos.
O que era uma especulação foi se tornando certeza à medida que o real passava por sucessivas crises, a cada vez que problemas em outros países faziam secar o fluxo de capital externo ao Brasil.
Segundo o Banco Central, houve um padrão em crises como as do México (94/95), da Ásia (97) e da Rússia (98): em um ou dois dias, investidores passavam a fazer compras maciças de dólares.
A diferença, claro, é que nessas ocasiões quem apostou contra o governo perdeu. Depois da última crise, o mercado como um todo ficou descrente quanto ao futuro do Plano Real.
As compras de dólares fizeram as reservas do BC despencarem de US$ 70 bilhões para pouco mais de US$ 30 bilhões. Cresceram os rumores sobre a queda de Gustavo Franco, o todo-poderoso presidente do BC e guardião do câmbio.
Hoje, sabe-se que os rumores tinham fundamento e a mudança na política econômica era tramada desde outubro de 98.
Em seu depoimento à CPI dos Bancos, o presidente do BC, Armínio Fraga, argumentou que as evidências de que uma desvalorização estava por vir eram públicas -o que, por definição, excluiria a hipótese de ter havido vazamento de informação privilegiada.
Há, porém, uma grande diferença entre imaginar que uma maxidesvalorização está a caminho e fazer a operação certa 24 horas antes de o governo permitir a alta do dólar. O mesmo Fraga fez outra observação: é impossível provar que não houve vazamento.
2 - Estreando na BM&F
Permanece até hoje um mistério o que de tão especial aconteceu nos dias 11 e 12 de janeiro a ponto de fazer tantos investidores correrem para os contratos de compra de dólar no mercado futuro.
O minúsculo Banco Cacique, por exemplo, estava ausente do mercado futuro de câmbio da BM&F desde o início do ano, pelo menos.
No dia 12, o Cacique, um banco mais conhecido pelo financiamento a consumidores, assumiu contratos de compra de dólar no valor de US$ 340 milhões e US$ 20 milhões em contratos de venda, o que resulta numa aposta de US$ 320 milhões na alta do dólar.
Trata-se de um valor alto até para instituições de grande porte e com mais volume de operação na BM&F. Cesário Coimbra, presidente do Cacique, diz que a operação "foi para proteger o patrimônio da empresa".
O banco é ligado à indústria Cacique, especializada na torrefação e venda de café. De acordo com Coimbra, o banco comprou os contratos no mercado futuro porque havia o risco de uma desvalorização e o grupo precisava de dólares para pagar dívidas no exterior.
As dívidas e o patrimônio da indústria foram calculados por Coimbra em US$ 200 milhões, enquanto o patrimônio do banco seria de 100 milhões.
Segundo Coimbra, havia "um sentimento geral no dia 12 que a situação cambial era frágil". Ele não soube explicar, no entanto, por que não comprou os contratos nos dias anteriores, também muito turbulentos. "Talvez devêssemos ter feito a proteção antes", diz.
O Bozano,Simonsen, que não quer comentar as operações, também fez sua estréia na BM&F em janeiro à véspera da queda de Gustavo Franco, que só vazou na noite do dia 12, com o mercado já fechado. Não foram operações de grande monta, mas tiveram um objetivo único: compras de US$ 85 milhões, nenhuma venda.
Chamou a atenção dos senadores da CPI o desconhecido Fundo Positano -descobriu-se depois que trata-se de uma instituição administrada pelo Banco Indosuez, que não quer responder pelo fundo.
O Positano fez suas primeiras operações do mês de janeiro no dia 11. Comprou US$ 126,5 milhões com dólar na casa de R$ 1,23, conseguindo um lucro que começou a ser realizado no dia 19, quando o dólar já passava de R$ 1,50.
3 - Mudando de estratégia
Há também os casos de bancos que mudam radicalmente de estratégia à medida que se aproxima a desvalorização do real.
Esses são os exemplos mais buscados pela CPI. Para detectar casos assim, serão necessários alguns dias de cálculo e comparação das operações diárias.
Mas há pelo menos um banco de pequeno porte que se encaixa perfeitamente nessa categoria. Até o dia 12, o Axial só havia operado no mercado futuro de câmbio em um único dia -foi um vendedor de dólares em 4 de janeiro.
De vendedor, o Axial passou a ser exclusivamente um comprador no dia 12, investindo US$ 150 milhões na queda do real que começou no dia seguinte.
O Axial é um pequeno banco de São Paulo, fundado há dois anos. Seu patrimônio é de R$ 25 milhões. É especializado em negócios nas áreas de esporte e meio ambiente.
Segundo o vice-presidente do Axial, Alfredo Miranda, o banco não especulou com a desvalorização do real. Antes do dia 12, diz Miranda, o banco tinha 1.500 contratos de venda de dólar no mercado futuro. Ou seja: estava apostando que a cotação da moeda se manteria. No dia 12, o Axial comprou 1.500 contratos de compra de dólar porque havia aumentado o risco da desvalorização.
"A coisa estava ficando perigosa e, por isso, decidimos zerar a posição. Não ganhamos nada com a desvalorização", diz Miranda. A prova, segundo ele, de que a compra dos contratos de dólar não era fruto de informação privilegiada para lucrar com a desvalorização do real é o balanço referente às atividades do banco em janeiro. O Axial teve prejuízo de R$ 500 mil.
Outro banco que aponta seu balancete para negar vantagens com a desvalorização é o HSBC, que comprou US$ 70 milhões.
4 - Correndo em manada
Muitas das explicações dadas pelos bancos sobre suas operações na BM&F permeiam, com algumas variações, a teoria do comportamento de manada do mercado financeiro. Trata-se de uma justificativa lógica para o porquê de tantos bancos fazerem as mesmas operações ao mesmo tempo.
Um operador de banco não é o dono do dinheiro que aplica. Ele recebe bônus e outros prêmios dependendo da remuneração que conseguir para o investidor.
A teoria da manada diz que é melhor perder acompanhado que ganhar sozinho, se a primeira opção for certa, e a segunda, duvidosa.
Se um operador vê outros bancos comprando dólares, tende a fazer o mesmo. Se der errado, haverá sempre a desculpa de que as perdas foram gerais. Pior seria todos ganharem e um ficar de fora da festa.
Mas, mesmo admitindo que uns seguiram outros, continua a questão: quem começou? Os investidores não entram em muitos detalhes. Dizem que havia rumores ou incertezas muito fortes no dia 12.
5 - Mercado nervoso
Um relato obtido pela Folha pode ilustrar o que se passava no pequeno Banco Rendimento na manhã do dia 11. O Rendimento passou os quatro anos anteriores apostando no real -ou seja, que o governo manteria a promessa de não promover alterações bruscas no câmbio- e ganhando.
Sempre houve uma relação de argumentos à mão do Palácio do Planalto e da equipe econômica para sustentar a tese de que a desvalorização seria uma catástrofe a ser evitada a todo custo.
Abandonar a âncora cambial seria um desastre para bancos e empresas que, encorajados pelo governo, tomaram empréstimos externos desde o Plano Real -e para o próprio governo, cada vez mais devedor em moeda estrangeira.
Na manhã do dia 11, porém, houve uma reunião dos diretores do Rendimento, um braço financeiro da empresa de eletrodomésticos CCE sediado em São Paulo.
A avaliação foi de que o mercado estava anormalmente nervoso naquele dia. Em anos anteriores, o nervosismo observado não havia sido suficiente para fazer o Rendimento abandonar sua estratégia.
Já se conheciam os rumores da queda de Gustavo Franco e se examinavam os números que indicavam grande saída de dólares no país. Eram normais, na época, fugas de US$ 1 bilhão a cada dia.
A possibilidade de saída de Franco era logicamente associada à desvalorização do real. A saída de dólares era um acelerador desse processo.
O resultado, na versão oficiosa obtida no Rendimento, foi a compra de US$ 150 milhões em contratos de dólar no mercado futuro.
Há histórias mais simples, mas que também devem ser levadas em conta na hora de avaliar se os dados da BM&F podem ser considerados indícios de vazamento de informações privilegiadas.
6 - Coincidência O Citibank classificou como "uma coincidência" o fato de ter negociado muitos contratos de compra de dólar na véspera da desvalorização do real.
Segundo a assessoria de imprensa, o banco "atua 252 dias úteis por ano" no mercado de derivativos, como são conhecidas as operações no mercado futuro e outras que "derivam" da variação de produtos, índices e moedas.
Pela lista em poder da CPI, o Citi comprou US$ 110 milhões no dia 12, quando vendeu apenas US$ 30 milhões no mercado futuro. Fica, assim, um saldo comprador de US$ 80 milhões. Para o banco, não se trata de um valor expressivo para um dos líderes do mercado de derivativos no país.
É normal que no mercado haja diferentes apostas, mesmo em instituições de um mesmo grupo.
Não foi o caso, porém, do Banco Modal e de dois fundos de investimento financeiro a ele ligados. Juntas, as três instituições compraram US$ 310 milhões no dia 12.
Assim como o Modal, outras duas instituições compradoras de dólares não foram encontradas pela Folha ontem: BBM (US$ 50 milhões) e Brascan (US$ 115 milhões).
O Deutsche Bank, que comprou US$ 50 milhões no dia 12, considera que as operações "estão no escopo natural" da sua atuação de "bom-tom" que visa a proteção do seu capital, segundo o presidente da instituição, Roger Karam.
Entre os 13 investidores que se destacam pela concentração de operações de compra nos dias 11 e 12, o campeão absoluto é o Morgan Guaranty. As operações do banco -quase todas de compra- no dia 12 ocupam mais de uma página da lista da BM&F em poder da CPI. No total, descontando as poucas operações de venda, o Morgan comprou, no dia, US$ 727,5 milhões.
Do mesmo grupo do Morgan Guaranty, o JP Morgan é citado pelo deputado Aloizio Mercadante (PT-SP) como um dos bancos que fizeram grandes compras de dólar no mercado à vista.
O JP Morgan repudia "qualquer insinuação" de que tenha recebido informações privilegiadas. Segundo a assessoria de imprensa, o banco sempre foi ativo nos mercados de juros e de câmbio e todas suas operações são baseadas em instrumentos financeiros legais. O banco considera sua atividade do dia 12 compatível com os volumes de mercado.
O Morgan responde ainda ao questionamento sobre o fato de senadores da CPI terem encontrado, entre os registros de ligações telefônicas do Banco Central, um telefonema para o banco.
Segundo o Morgan, a ligação realmente existiu. Um diretor do Banco Central teria participado de uma "conference call" organizado pelo banco em 31 de janeiro. Cerca de 1.700 pessoas teriam acompanhado, por telefone, o debate sobre a economia brasileira.
Há também um recordista entre os investidores pessoa física, o banqueiro Joseph Safra, dono do banco que leva seu sobrenome e que não foi tão ousado na BM&F, ao menos naquele dia.
Safra comprou, só no dia 12, US$ 340 milhões em contratos futuros de câmbio. Descontando a única operação de venda que fez, no valor de US$ 5 milhões, o banqueiro investiu US$ 335 milhões do próprio bolso na alta do dólar.


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