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LANTERNA NA POPA
Mudanças de paradigma
ROBERTO CAMPOS
O Plano Real nasceu para nos
livrar da tríade maligna: inflação, desvalorização e proteção
(numa economia fechada). O
modelo era de "acomodação", e
não de "reforma". As pressões
da demanda eram acomodadas
pela inflação. As de custo, pela
desvalorização cambial.
O modelo implícito no Plano
Real envolvia uma tríade diferente: estabilização, abertura e
reformas. Também esse modelo
sofreu de esgotamento.
O objetivo de estabilidade de
preços foi alcançado, reduzindo
a inflação a quase zero, mas
houve efeitos colaterais malignos: o déficit gêmeo -fiscal e
cambial- acompanhado da
praga do alto desemprego. Esse
plano, que chamaremos de Real
1, teve que ser substituído após o
contágio da crise russa por uma
nova tríade: rigidez fiscal, flexibilidade cambial e retomada do
crescimento.
Os instrumentos usados no
Plano Real 1 foram a desindexação, a âncora cambial, a política monetária restritiva (juros
altos), a abertura para importações e um miniajuste fiscal
(Fundo Social de Emergência).
Como instrumento ancilar, a
privatização de empresas estatais. Os calcanhares de Aquiles
foram a sobrevalorização cambial e o explosivo déficit fiscal.
Agora que FHC amarga o nadir da impopularidade, é justo
lembrarmos que ele conseguiu
"mudar a cabeça do povo" mais
do que qualquer outro presidente recente. Foram quatro os
progressos "culturais":
- a eliminação do fatalismo
inflacionário, passando a estabilidade de preços a ser um valor fundamental e atingível;
- o abandono de fórmulas
heterodoxas de combate à inflação (controle de preços e sequestro de ativos);
- a descoberta do inimigo
fundamental -o déficit global
do setor público- descartando
o tradicional escapismo de atribuirmos a culpa a agentes externos;
- a refuncionalização do Estado, que deve deixar de ser empresário incompetente para ser
samaritano diligente, privatizando-se as atividades que não
são típicas do Estado.
Houve desempenho desigual
na busca da tríade. A estabilidade foi substancialmente alcançada. Houve razoável progresso na abertura em seu tríplice aspecto -comércio, tecnologia e investimento. A abertura comercial foi modesta pelos
padrões mundiais (15% na soma de exportações e importações), mas penosa para os produtores internos, em virtude da
sobrevalorização cambial e dos
altos juros. A abertura tecnológica teve dois importantes momentos: a liberalização da grotesca Lei de Informática e a modernização do Código de Patentes. A abertura para investimentos manifestou-se na abolição dos monopólios estatais e
da discriminação contra empresas brasileiras de capital estrangeiro.
O desempenho mais tíbio foi
nas reformas. Das reformas estruturais, a administrativa ainda depende de regulamentação,
a previdenciária é apenas um
remendo no inviável sistema de
repartição, e a reforma fiscal
simplesmente não aconteceu,
substituída por ajustes tópicos e
emergenciais. A reforma patrimonial -a privatização-
marcha lentamente, entorpecida pela resistência corporativista e por guerrilhas judiciais.
A resposta às sucessivas crises
externas foi inadequada. Recorreu-se ao tradicional binômio
-puxada de juros e miniajuste
fiscal. Este último, distorcido,
pois baseado mais em arrecadação adicional do que em corte
de gastos. Uma aceleração das
privatizações poderia bem ter
substituído a ginástica fiscal,
sem trazer efeitos recessivos. O
fracasso do pacote 51, de adaptação à crise asiática, resultou
em devastadora perda de credibilidade. O subproduto deste binômio ineficiente foi o explosivo crescimento da dívida pública.
Quando negociamos o primeiro acordo com o FMI, em novembro de 1998, obtivemos uma
vitória de Pirro. Esperava-se
que o pacote internacional de
ajuda viesse em apoio da flexibilização do sistema cambial,
mas teimamos em preservar o
mecanismo de bandas, que entrou em colapso em janeiro. O
pacote fiscal acordado com o
FMI está ainda em execução,
mas certamente não dispensará
uma reforma estrutural em profundidade do fisco. Na era eletrônica, os impostos clássicos de
tipo declaratório são relíquias
artesanais. E a insistência em
mantê-los, um insulto à tecnologia internáutica.
O Real 2 nunca foi explicitamente proclamado, mas tornou-se visível uma mudança de
paradigmas após o colapso da
âncora cambial em janeiro último. A nova tríade tem como
componente principal a rigidez
fiscal, acoplada à flexibilidade
cambial.
O Banco Central, afligido pelo
trauma da desvalorização e sob
os holofotes da CPI do Senado
sobre o sistema financeiro, acaba de propor a metodologia das
"metas de inflação" ("inflation
targeting"). Esse sistema foi
adotado pela Nova Zelândia
(1989), Canadá (1991), Grã-Bretanha (1992), Suécia e Finlândia (1993). A motivação da Nova Zelândia e do Canadá foi sua
insatisfação com o sistema de
metas monetárias, tornadas
imprecisas pelo surgimento de
moedas eletrônicas e por inovações como securitização e derivativos. No caso dos três outros
países, a motivação foi a insustentabilidade de taxas cambiais
rígidas. Ambas essas motivações existem no caso brasileiro.
As vantagens da enunciação
de "metas de inflação" são:
- um controle de resultados
mais direto e visível que a inspeção de agregados intermediários, como a taxa cambial, a expansão monetária ou os saldos
fiscais;
- a responsabilização do BC
e do governo em caso de descumprimento ou desvio das metas;
- a flexibilidade no uso de diferentes instrumentos para
cumprimento das metas.
São consideráveis os problemas técnicos inerentes quer à fixação de metas (habitualmente
fixa-se uma faixa de flutuação
antes que uma taxa singular de
inflação), quer à escolha do índice de avaliação do desempenho. Habitualmente se usa o índice de preços ao consumidor,
expurgado para excluir os preços de petróleo, os de alimentos
e ainda o impacto de impostos
indiretos, todos os quais independem da política monetária.
No Brasil, o expurgo de índices
daria a impressão de manipulação, com perda de credibilidade, como o descobriu o ministro
Mário Simonsen ao introduzir,
em 1976, o "coeficiente de acidentalidade" para levar em
conta o imposto árabe sobre o
petróleo.
É importante que o índice escolhido seja "independente",
como o são os índices calculados
pela Fundação Getúlio Vargas.
Os índices do IBGE são considerados mais suscetíveis de influência governamental, além
de terem no passado sofrido
descontinuidades provocadas
pelo grevismo no serviço público. Tratando-se de um índice
destinado a avaliar o desempenho do governo, não deve ser ele
fabricado nas entranhas governamentais. Aliás, a sobrecarga
do IBGE na produção de índices
oficiais dá-lhe uma desaconselhável posição de quase monopólio.
A opção pelo método de "inflation targeting" trouxe resultados positivos nos países que o
adotaram. Para julgamento definitivo, tem-se que aguardar
sua aplicação ao longo de mais
um ciclo econômico. A proposta
do BC deve ser olhada como um
"experimento nobre". Vale a
pena tentar.
Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento
(governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).
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