São Paulo, Domingo, 30 de Maio de 1999
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LANTERNA NA POPA
Mudanças de paradigma

ROBERTO CAMPOS

O Plano Real nasceu para nos livrar da tríade maligna: inflação, desvalorização e proteção (numa economia fechada). O modelo era de "acomodação", e não de "reforma". As pressões da demanda eram acomodadas pela inflação. As de custo, pela desvalorização cambial.
O modelo implícito no Plano Real envolvia uma tríade diferente: estabilização, abertura e reformas. Também esse modelo sofreu de esgotamento.
O objetivo de estabilidade de preços foi alcançado, reduzindo a inflação a quase zero, mas houve efeitos colaterais malignos: o déficit gêmeo -fiscal e cambial- acompanhado da praga do alto desemprego. Esse plano, que chamaremos de Real 1, teve que ser substituído após o contágio da crise russa por uma nova tríade: rigidez fiscal, flexibilidade cambial e retomada do crescimento.
Os instrumentos usados no Plano Real 1 foram a desindexação, a âncora cambial, a política monetária restritiva (juros altos), a abertura para importações e um miniajuste fiscal (Fundo Social de Emergência). Como instrumento ancilar, a privatização de empresas estatais. Os calcanhares de Aquiles foram a sobrevalorização cambial e o explosivo déficit fiscal.
Agora que FHC amarga o nadir da impopularidade, é justo lembrarmos que ele conseguiu "mudar a cabeça do povo" mais do que qualquer outro presidente recente. Foram quatro os progressos "culturais":
- a eliminação do fatalismo inflacionário, passando a estabilidade de preços a ser um valor fundamental e atingível;
- o abandono de fórmulas heterodoxas de combate à inflação (controle de preços e sequestro de ativos);
- a descoberta do inimigo fundamental -o déficit global do setor público- descartando o tradicional escapismo de atribuirmos a culpa a agentes externos;
- a refuncionalização do Estado, que deve deixar de ser empresário incompetente para ser samaritano diligente, privatizando-se as atividades que não são típicas do Estado.
Houve desempenho desigual na busca da tríade. A estabilidade foi substancialmente alcançada. Houve razoável progresso na abertura em seu tríplice aspecto -comércio, tecnologia e investimento. A abertura comercial foi modesta pelos padrões mundiais (15% na soma de exportações e importações), mas penosa para os produtores internos, em virtude da sobrevalorização cambial e dos altos juros. A abertura tecnológica teve dois importantes momentos: a liberalização da grotesca Lei de Informática e a modernização do Código de Patentes. A abertura para investimentos manifestou-se na abolição dos monopólios estatais e da discriminação contra empresas brasileiras de capital estrangeiro.
O desempenho mais tíbio foi nas reformas. Das reformas estruturais, a administrativa ainda depende de regulamentação, a previdenciária é apenas um remendo no inviável sistema de repartição, e a reforma fiscal simplesmente não aconteceu, substituída por ajustes tópicos e emergenciais. A reforma patrimonial -a privatização- marcha lentamente, entorpecida pela resistência corporativista e por guerrilhas judiciais.
A resposta às sucessivas crises externas foi inadequada. Recorreu-se ao tradicional binômio -puxada de juros e miniajuste fiscal. Este último, distorcido, pois baseado mais em arrecadação adicional do que em corte de gastos. Uma aceleração das privatizações poderia bem ter substituído a ginástica fiscal, sem trazer efeitos recessivos. O fracasso do pacote 51, de adaptação à crise asiática, resultou em devastadora perda de credibilidade. O subproduto deste binômio ineficiente foi o explosivo crescimento da dívida pública.
Quando negociamos o primeiro acordo com o FMI, em novembro de 1998, obtivemos uma vitória de Pirro. Esperava-se que o pacote internacional de ajuda viesse em apoio da flexibilização do sistema cambial, mas teimamos em preservar o mecanismo de bandas, que entrou em colapso em janeiro. O pacote fiscal acordado com o FMI está ainda em execução, mas certamente não dispensará uma reforma estrutural em profundidade do fisco. Na era eletrônica, os impostos clássicos de tipo declaratório são relíquias artesanais. E a insistência em mantê-los, um insulto à tecnologia internáutica.
O Real 2 nunca foi explicitamente proclamado, mas tornou-se visível uma mudança de paradigmas após o colapso da âncora cambial em janeiro último. A nova tríade tem como componente principal a rigidez fiscal, acoplada à flexibilidade cambial.
O Banco Central, afligido pelo trauma da desvalorização e sob os holofotes da CPI do Senado sobre o sistema financeiro, acaba de propor a metodologia das "metas de inflação" ("inflation targeting"). Esse sistema foi adotado pela Nova Zelândia (1989), Canadá (1991), Grã-Bretanha (1992), Suécia e Finlândia (1993). A motivação da Nova Zelândia e do Canadá foi sua insatisfação com o sistema de metas monetárias, tornadas imprecisas pelo surgimento de moedas eletrônicas e por inovações como securitização e derivativos. No caso dos três outros países, a motivação foi a insustentabilidade de taxas cambiais rígidas. Ambas essas motivações existem no caso brasileiro.
As vantagens da enunciação de "metas de inflação" são:
- um controle de resultados mais direto e visível que a inspeção de agregados intermediários, como a taxa cambial, a expansão monetária ou os saldos fiscais;
- a responsabilização do BC e do governo em caso de descumprimento ou desvio das metas;
- a flexibilidade no uso de diferentes instrumentos para cumprimento das metas.
São consideráveis os problemas técnicos inerentes quer à fixação de metas (habitualmente fixa-se uma faixa de flutuação antes que uma taxa singular de inflação), quer à escolha do índice de avaliação do desempenho. Habitualmente se usa o índice de preços ao consumidor, expurgado para excluir os preços de petróleo, os de alimentos e ainda o impacto de impostos indiretos, todos os quais independem da política monetária. No Brasil, o expurgo de índices daria a impressão de manipulação, com perda de credibilidade, como o descobriu o ministro Mário Simonsen ao introduzir, em 1976, o "coeficiente de acidentalidade" para levar em conta o imposto árabe sobre o petróleo.
É importante que o índice escolhido seja "independente", como o são os índices calculados pela Fundação Getúlio Vargas. Os índices do IBGE são considerados mais suscetíveis de influência governamental, além de terem no passado sofrido descontinuidades provocadas pelo grevismo no serviço público. Tratando-se de um índice destinado a avaliar o desempenho do governo, não deve ser ele fabricado nas entranhas governamentais. Aliás, a sobrecarga do IBGE na produção de índices oficiais dá-lhe uma desaconselhável posição de quase monopólio.
A opção pelo método de "inflation targeting" trouxe resultados positivos nos países que o adotaram. Para julgamento definitivo, tem-se que aguardar sua aplicação ao longo de mais um ciclo econômico. A proposta do BC deve ser olhada como um "experimento nobre". Vale a pena tentar.


Roberto Campos, 82, economista e diplomata, foi senador pelo PDS-MT, deputado federal pelo PPB-RJ e ministro do Planejamento (governo Castello Branco). É autor de "A Lanterna na Popa" (Ed. Topbooks, 1994).


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