São Paulo, Domingo, 30 de Maio de 1999
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DOMINGUEIRA
Tucano no orelhão

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

Encontro meu amigo tucano, depois de muito tempo, num telefone público dos Jardins.
Très, très suspect.
Por que meu amigo tucano, homem de posses e novidadeiro, não estaria usando seu celular de última geração, que trouxe no bolso de sua última viagem a Nova York?
Sento-me na cadeira do bar da esquina e fico aguardando o final do colóquio. O cashmere amarelinho de meu amigo tucano faz um interessante contraponto cromático com o orelhão da Telefônica, que prossegue harmoniosamente pelos seus jeans novinhos e termina na incrivelmente fashion botinha da Prada.
Ele recoloca o fone no gancho e vem em minha direção.
"Há quanto tempo, meu caro!" -saúdo simpaticamente.
Ele corresponde, senta-se a meu lado e -às favas o novo câmbio- pedimos um bom vinho francês.
"E aí, como estão as coisas?" -pergunta.
"O de sempre" -respondo. "Muita saúva e pouca saúde".
"Que papelão esse negócio das fitas, hein?" -comenta ele, fazendo uma careta.
"É mesmo. Esse governo está virando piada. E parece que o grampo veio lá de dentro mesmo" -fofoco.
"Papelão de vocês! Papelão de vocês!" -repete exclamativo. "A essa altura do campeonato, depois que o país conseguiu passar pela crise, apesar das previsões catastrofistas e facassomaníacas, vêm vocês e publicam esse café requentado e fedorento. Francamente... Não entendo o objetivo..."
Para meu amigo tucano "vocês" é quase toda a imprensa, mais as áreas de opinião que têm reservas sobre a atuação do governo. É como Nelson Rodrigues tinha vontade de dizer ao poeta Ferreira Gullar, sempre em articulações com intelectuais do PC, na época do regime militar. Nelson encontrava Gullar em Copacabana. "Oi, Nelson, como vai você?" E Nelson: "Tudo bem Gullar. E como vão vocês?"
"Ora, meu caro" -respondo- "essas fitas andaram por aí afora, muita gente ouviu, acho que até você. Agora elas chegaram às mãos do jornal e decidiu-se que os leitores tinham interesse e direito de conhecê-las".
"Ai que lindo! Que pureza, que isenção... Como vocês são legais... Escuta aqui, vocês não têm cálculo político não? Acham que vale tudo? Querem ver o Lula ou o Ciro comandando essa bosta?"
Percebendo que o tom está ficando elevado (em decibéis), decido moderar.
"Não se preocupe, o governo está conseguindo abafar o negócio. Não vai dar em nada. E nós já estamos muito velhos para brigar por esse tipo de coisa".
"I'm too old for this shit", concorda ele, parafraseando, não sei se intencionalmente, uma das falas captadas pelo grampo.
O vinho já está no fim, mas não resisto à curiosidade: "Escuta, por que você estava falando no orelhão? Para colaborar com a privatização da telefonia fixa?".
Meu amigo tucano ignora a ironia, coça seu magnífico bico, e responde cheio de sua esperteza:
"Eu sou babaca, mas não rasgo. Tem certas coisas que não se deve falar por telefone. Por celular, então, meu filho, nem pensar".


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