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São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

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NO PLANALTO

Abin do PT elogia fichado pelo "Brasil Nunca Mais"

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Planalto iniciou em outubro operação para tonificar os poderes da Agência Brasileira de Inteligência. A "nova" Abin vem sendo vendida em reuniões públicas. Num esforço que conta com a participação do chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, general Jorge Armando Félix.
Para Félix, a trilha da transparência tem certos obstáculos. Papéis secretos, ainda que velhos de 200 anos, de interesse meramente historiográfico, não podem conhecer a luz do sol. Cioso quanto ao sigilo, o general talvez devesse zelar também pelo conteúdo do papelório oculto.
O teor de alguns deles não combina nem com o discurso de Félix nem com o histórico do governo a que serve. É o caso do "Boletim de Serviço Confidencial" da Abin. Possui periodicidade quinzenal. É impresso em rotativas da própria agência.
O repórter obteve o número 14. É coisa novíssima, de 31 de julho de 2003. No capítulo "Justiça e Disciplina", sob o título "referências elogiosas", o boletim exalta "a lealdade, o espírito de irrestrito cumprimento do dever, a inteligência, a correção de atitudes e a fidalguia" de um de seus servidores.
Chama-se Rubens Robine Bizerril. É coronel do Exército. Aposentou-se em julho, depois de "anos de bons serviços à inteligência brasileira". Ingressara no extinto SNI em 74. Dois anos antes, chefiava um inquérito militar no Batalhão de Caçadores de Goiás, hoje rebatizado de Batalhão de Infantaria Militar.
Eram tempos nublados. Pergunte-se ao companheiro Zé Dirceu. Libertado da cana em 69, numa operação que envolveu a troca de prisioneiros políticos pelo embaixador americano Charles Elbrick, Dirceu, então um estudante idealista, retornara de uma temporada em Cuba.
Entrara clandestinamente no Brasil em 71, como integrante do Molipo (Movimento de Libertação Popular). Encontrou uma atmosfera de franca perseguição. No mesmo ano, refugiou-se de novo em Cuba. Fez plástica no rosto com médicos chineses e só ousou retornar em 75, na pele de "Pedro Caroço".
Gente como Dirceu temia justamente a ação de gente como o coronel Robine Bizerril. Não sem motivo. Em agosto de 72, Ismael de Jesus Silva, 19, estudante secundarista de Campinas, militante do Partidão, conheceu "a correção de atitudes e a fidalguia" do xilindró do Batalhão de Caçadores de Goiás. Preso, foi torturado à morte.
A família só soube do ocorrido quase um mês depois. O cadáver de Ismael Silva exibia claros sinais de maus-tratos. Trazia um olho vazado, as palmas das mãos lanhadas. Pela versão oficial, cometera suicídio.
Envergonhado por ter sido preso, teria se enforcado com um fio de persiana. À frente do inquérito, Robine Bizerril, aferrado ao "espírito de irrestrito cumprimento do dever", não se deu ao trabalho de abrir uma reles sindicância. Seu nome foi ao dossiê do projeto "Brasil Nunca Mais".
Em 2000, sob FHC, Robine Bizerril foi descoberto no exercício de nobres funções. Ocupava o posto de coordenador de Planejamento e Segurança Pública do Ministério da Justiça. Exposto no noticiário, foi devolvido pelo tucanato à Abin.
Ouvido à época pela Folha, Robine Bizerril pretextou inocência. Disse que só vira Ismael Silva depois de morto. Estava no quarto de um sargento, o fio de persiana enrolado no pescoço. Alegou que o estudante não fora recolhido a uma cela convencional por falta de espaço. Não enxergou razões para duvidar da versão de suicídio. Disse: "A tortura é covarde, abominável, abjeta e uma burrice".
Irônico e caprichoso, o destino quis que Robine Bizerril interrompesse a sua trajetória de "bons serviços" no curso do primeiro ano do governo petista. Aposentou-se na função de assessor de Inteligência da Diretoria Executiva de Planejamento e Coordenação da Abin.
Redigidos por um superior, os elogios à sua atuação foram chancelados pela chefia da repartição. Publicados no boletim confidencial da Abin, ganharam ares de manifestação oficial.
Procurado, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência manifestou-se por escrito na sexta-feira. Disse que a "referência elogiosa" a Robine Bizerril foi anotada em papel "confidencial" porque nomes de servidores da Abin não podem, por força de lei, constar de "documentos ostensivos".
De resto, o "Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União não estabelece qualquer discriminação em razão da origem do servidor." Por isso, Robine Bizerril "recebeu tratamento igual a todos os demais". Ponto final.
Assim como os ex-militantes de esquerda que executaram prisioneiros, personagens como Robine Bizerril têm o passado escorado na Lei da Anistia. O diabo é que nenhuma lei preceitua que devam ter o futuro adornado por "referências elogiosas".
O gesto deve ser debitado ao descompromisso do ex-PT com a sua própria história. Será contabilizado no mesmo rol de passivos em que se encontra espetada a resistência do "novo" governo em disponibilizar à história as informações oficiais relativas à guerrilha do Araguaia.



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