UOL

São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2003

Texto Anterior | Índice

ELIO GASPARI

Prestes estendeu a mão a Vargas em 1942

O escritor Carlos Sussekind ("Armadilha para Lamartine") desentocou um documento excepcional: a entrada de 4 de agosto de 1942 do diário de seu pai, o promotor Carlos Sussekind de Mendonça, contando a visita que fez a Luís Carlos Prestes na Penitenciária Central do Rio de Janeiro. Encarcerado desde 1936, sabendo que Getúlio Vargas entregara sua mulher à polícia nazista e vivendo segregado, Prestes ofereceu a mão ao ditador. Ele aliou-se publicamente a Vargas três anos depois, mas não se conhecia registro semelhante com data tão remota. (Olga Benário já morrera na câmara de gás, mas isso só seria descoberto com o fim da guerra.) Prestes disse o seguinte a Sussekind e aos outros três promotores que o visitaram:
"Eu detesto o senhor Getúlio Vargas. Isso não é mistério para ninguém. Eu o responsabilizo por toda essa apatia, por toda essa degradação moral de que estamos sendo vítimas. Mas, se amanhã consentissem que eu falasse aos brasileiros, eu lhes dou minha palavra de que recalcaria todo esse meu ódio e seria o primeiro a pedir que ele cerrasse fileiras em torno do governo, tanto sinto a premência de nos organizarmos em torno do que existe, tanto noto que já nos falta o tempo de pensarmos numa situação ideal, para nos ocuparmos tão somente de compensar o tempo que perdemos contemporizando ou mesmo nos acumpliciando com o mal... Sei o que pode o brasileiro, do que é capaz o Brasil. Mas não há que perder tempo...".
Prestes disse isso aos quatro promotores sete meses depois de o Brasil ter rompido relações com o Eixo. Os alemães passaram a afundar navios mercantes brasileiros e entre junho e julho de 1942 puseram a pique cinco cargueiros. Os estudantes fizeram uma passeata pelas ruas do Rio, pedindo a entrada do Brasil na guerra.
Getúlio Vargas demitira o chefe de Polícia Filinto Müller, símbolo da repressão política do Estado Novo. Tudo isso e mais o início do colapso do exército alemão na Rússia. Três semanas depois Vargas declarou guerra à Alemanha.
Prestes já recebia jornais, livros e revistas (sabia da existência do Pato Donald e do Zé Carioca). Era visitado por um primo, um amigo e pelo advogado. Sussekind e seus três colegas foram vê-lo por curiosidade. A descrição do promotor mostra um homem seguro de si, gélido na analise de sua situação:
"Nós, comunistas, não negamos esse direito ao Estado [de prender os inimigos do regime]. Os senhores estão fartos de ouvir falar nas atrocidades que se praticam na Rússia. Na maior parte, são mentiras. Mas, no que diz respeito aos fuzilamentos, são reais. E legítimos! Antes tivessem feito o mesmo a mim! Se, quando acharam que eu havia cometido um crime para com as instituições, me encostassem a um muro, diante de um pelotão de carabinas apontadas contra mim, ninguém poderia censurar o governo por isso. (...) Nada mais justo. Mas fazerem de mim um camundongo nas mãos de quantos gatos me soltaram em cima é simplesmente vergonhoso. E contraproducente. Se me tivessem fuzilado, teriam feito de mim um cadáver. Apenas um cadáver. Torturando-me, como me torturaram, fizeram um mártir. E só quem é de todo ignorante em psicologia política é que desconhece o desserviço que representa para os governos fazer um mártir! Desserviço para os governos e serviço inestimável para a causa que esse mártir defenda. Os senhores acreditem: eu, nas quatro paredes do cubículo em que me segregaram, fiz mais pelo comunismo do que o teria feito em liberdade durante o dobro ou o triplo de anos".
Entre 1938 e 1963, Carlos Sussekind de Mendonça manteve um diário metódico e obsessivo. Abria-o pela manhã, narrando o planejamento do dia. Prestava contas à tarde e fazia um balanço à noite. Encheu 15 mil páginas em 80 cadernos. Quis a sorte que seu filho preservasse esse tesouro e decidisse copiá-lo. Uma bolsa da Fundação Guggenheim, consumida em 1983, e outra do Instituto Moreira Salles permitem que, aos 70 anos, Carlos Sussekind, complete a versão eletrônica do diário do pai.
O gesto de Prestes em direção a Vargas era parte de um novo tempo, percebido pelo diretor da penitenciária, tenente Vittorio Caneppa. Ele azucrinara a vida de Prestes e permitira que um magote de meganhas o espancasse numa ida ao tribunal. Caneppa tentou proteger-se:
"Eu gostaria, que você dissesse na presença do doutor procurador e desses outros senhores, Prestes: contra mim, pessoalmente, você tem razões de queixa? Não é verdade que eu fui sempre um protetor que você teve aqui?".
Prestes respondeu: "Tenente, eu já lhe tenho dito por diversas vezes que o senhor não me inspira ódio, nunca me inspirou. Eu o considero, apenas, lamentável".

Independência

Pode-se dizer o que se queira a respeito do aparelhamento do Estado pelo PT, mas nada disso se aplica aos três ministros que nomeou para o Supremo Tribunal Federal.
Um deles esteve a um passo de conceder uma liminar contra a tramitação da reforma da Previdência. Consultou dois veteranos e foi dissuadido.

Charanga esperta

Para o bem de todos, o IBGE divulga suas estatísticas de acordo com um calendário previamente conhecido. Para empulhação geral da nação, à menor suspeita de que virá algum número ruim, o PT Federal bota uma charanga na rua para fazer barulho e distrair a choldra.
Foi esse o trombone que o ministro Guido Mantega tocou quando se proclamou levantador de PIB.

Desmanche

Vai bem a universidade pública brasileira. Paga R$ 3.592 a um professor com doutorado e dedicação exclusiva (em tese).
O governo federal acaba de abrir concurso para o preenchimento de vagas no quadro da Polícia Rodoviária Federal. Exige nível médio de escolaridade e paga R$ 3.735.

ProSoft, uma aula de política industrial

O governo anunciou que o desenvolvimento de uma indústria nacional de software será um dos pontos cardeais de sua nova política industrial. Para que não se tente reinventar as rodas (a redonda e a quadrada) seria ótimo que os sábios da economia fossem ao prédio do BNDES e dissecassem o que aconteceu com o ProSoft.
Segundo a máquina de propaganda oficial, a sigla destinava-se exatamente a estimular o desenvolvimento de uma indústria nacional de software. Foi lançado em 1997, com R$ 30 milhões no cofre, para serem emprestados em cerca dois anos. Em setembro de 1999, o velho e bom BNDES havia assinado três contratos, emprestando R$ 3,7 milhões. Nessa ocasião, o ProSoft foi apelidado (aqui) de ProGogó. De 1997 a hoje, o BNDES pôs no cofre do ProSoft R$ 160 milhões. O programa fez 27 operações, comprometendo R$ 70 milhões. São 4,5 operações por ano. Mesmo assim, o programa amparou metade dos financiamentos feitos no setor.
O Brasil é o sétimo mercado de programas de computador do mundo, importa US$ 1 bilhão e exporta US$ 100 milhões. Trata-se de um setor que cresce a 11% ao ano.
O ProSoft não fracassou como programa. Fracassou, redondamente, como um instrumento de burocracia e propaganda. Para que a nova investida do governo não resulte na mesma enganação, os sábios deveriam se perguntar: Por que um programa de incentivo à produção de softwares não decola?
Ao contrário da produção de remédios genéricos, não há interesses estabelecidos combatendo-o. Não ajuda responsabilizar os mecanismos de proteção que o BNDES aplica aos seus empréstimos (noves fora o da Eletropaulo, ao tempo do tucanato). Também não ajuda dizer que a equipe do ProSoft é a menor do banco, porque equipes, ao contrário de bananeiras, são do tamanho desejado pelo dono do negócio. É possível que o piso dos empréstimos (R$ 500 mil) esteja muito alto. Quem sabe, a turma está pedindo papéis demais.
Se o Ministério do Desenvolvimento e o BNDES tentarem descobrir o que se deve fazer para emprestar o que podem, devem e gostariam, é possível que a indústria de software nacional cresça, estimulando sobretudo os pequenos empresários.
Uma coisa é certa: paira sobre a cabeça do ministro Luiz Fernando Furlan e do doutor Carlos Lessa a maldição da operadora de cartões de crédito que, em 1977, negou seu plástico a um garoto que não tinha cadastro: chamava-se Bill Gates.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota e acredita em tudo que o governo diz. Graças ao ministro do Trabalho, Jaques Wagner, se deu conta da extensão do êxito de Lula na criação de empregos. O idiota viu quando o doutor Wagner informou que durante o governo petista criaram-se 1 milhão de postos de trabalho.
Doutor Wagner ensinou que esse número virtuoso foi atropelado porque "chegou 1,5 milhão de pessoas" ao mercado de mão-de-obra.
O idiota entendeu que o problema foi criado por 500 mil pessoas que, podendo nascer em Marte, resolveram nascer no Brasil.
Eremildo vai procurar o doutor Wagner, levando-lhe uma proposta do rei Herodes. Matando os recém-nascidos de 2003 (como ele fez na Judéia), evita que a meninada pressione o mercado de trabalho em 2023.
O idiota avisa: não adianta matar aposentados.

Novo provão

Na terça-feira o ministro Cristovam Buarque anuncia na Câmara sua proposta para o novo sistema de avaliação do ensino superior. Será um novo índice, formado pela ponderação de quatro indicadores.
O provão sobrevive. O aluno será testado duas vezes, no meio e no fim do curso. Os professores também serão avaliados.
Os outros dois fatores levarão em conta a capacidade institucional da escola (coisas como laboratórios e bibliotecas) e o seu envolvimento com a comunidade.
Cada indicador poderá ser analisado isoladamente, mas ainda não se sabe se as notas do provão ficarão isoladas. É possível que, para efeitos de ponderação, sejam somadas às da avaliação dos professores.
O índice final terá dezenas de variáveis e ainda não se definiu o peso de cada uma delas. Considerando que uma caipirinha tem quatro ingredientes e cada pessoa acha que sabe a dosagem certa, ainda há muita praia pela frente.

O leitor esclarece

O leitor Raimundo Andrade Simões corrige: A isenção de Imposto de Renda não será um refresco que Lula dará aos anistiados do ABC. Os pagamentos que a Viúva faz às vítimas da ditadura estão isentas de IR, como todas as outras indenizações trabalhistas ou judiciais.


Texto Anterior: Biblioteca Folha: "O Jovem Törless" é o próximo romance
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.