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ARTIGO/ CONTRA A CASSAÇÃO
"José Dirceu não sabe nadar"
FERNANDO MORAIS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Embora o conheça há quase
40 anos, não privo da intimidade do deputado José Dirceu.
Durante os 30 meses em que ele
chefiou a Casa Civil da Presidência, estive em seu gabinete uma
única vez e não foi para pedir, mas
para lhe oferecer solidariedade
após o caso Waldomiro Diniz.
Nossas famílias não se freqüentam
e até uma semana atrás eu nem sequer sabia onde fica sua casa. Um
balanço de nossas relações políticas e partidárias desde 1979, quando ele foi anistiado, revelará mais
divergências que afinidades.
Por que, então, perguntam-me,
meu comprometimento público
com a defesa da inocência e do
mandato de Dirceu? Tenho ouvido sugestões que vão do disparate
ao insulto. Na semana passada, na
cidade de Três Corações (MG),
um professor universitário quis
saber, a sério, se eu recebera ordens de Fidel Castro para apoiar o
deputado. Em um debate no Sindicato dos Jornalistas do Rio, dias
atrás, um colega perguntou, sem
mover um músculo do rosto, se eu
confirmava "um boato que corre
nas redações do Rio", segundo o
qual eu estaria sendo regiamente
remunerado pelo próprio Dirceu
para defendê-lo publicamente.
Para responder a dúvidas tão desatinadas, tenho recorrido a uma
singela passagem da vida de Ernesto Che Guevara. Logo após
chegar ao poder em Cuba, entre as
centenas de cartas que recebia do
mundo inteiro, ele leu a de uma espanhola residente no Marrocos e,
como ele, de sobrenome Guevara.
Ela queria saber se poderia haver
algum parentesco entre ambos.
Che respondeu que, na verdade,
nem sabia de que parte da Espanha tinha vindo sua família. "Não
creio que sejamos parentes", escreveu, "mas, se a senhora treme
de indignação cada vez que se comete uma injustiça no mundo, somos mais que parentes, somos
companheiros".
No fundo, é uma situação parecida. O deputado e eu não temos
parentesco de qualquer natureza,
mas somos companheiros. Eu o
acompanho à distância desde que,
foca do Jornal da Tarde, em 1966,
cobri irregularmente o Movimento Estudantil, de que então ele era
expoente. O que se passou depois
eu soube lendo os jornais: levado
para o Dops depois de desbaratado o congresso da UNE, em 1968,
no ano seguinte ele seria um dos 15
presos políticos trocados pelo embaixador dos Estados Unidos. Exilado em Cuba, junta-se a outros 27
militantes e rompe com a ALN
(Ação Libertadora Nacional), formando o Molipo (Movimento de
Libertação Popular).
Na volta ao Brasil, o grupo é dizimado. Entre os sobreviventes,
com o rosto transfigurado por
uma cirurgia plástica realizada em
Havana, está o Daniel, nome de
guerra adotado em Cuba por Dirceu durante o treinamento militar
que lá recebeu.
Com aparência e documentos
falsos, ele se converte no pacato
comerciante Carlos Henrique
Gouveia de Mello, estabelecido em
Cruzeiro D'Oeste (PR). Casa-se
com Clara Becker, e com ela tem
um filho, José Carlos, o Zeca Dirceu, atual prefeito da cidade. Nem
para Clara nem para o filho "Carlos Henrique" revelaria sua verdadeira identidade.
Este era um segredo compartilhado, no Brasil, com apenas três
ou quatro pessoas da cambaleante
organização guerrilheira. A "fachada" de dono de confecção permitia que Dirceu circulasse com
desenvoltura pelo Brasil e mantivesse contato com seus companheiros sem despertar maiores
suspeitas da repressão.
Só com a anistia, em 1979, é que
ele finalmente se sentiu seguro para contar a verdade à mulher e ao
filho. Voltou a Cuba, desfez a plástica e retornou ao Brasil para iniciar uma brilhante carreira política que o levaria a se eleger deputado federal com mais de meio milhão de votos e a ocupar, desde janeiro de 2003, a Casa Civil da Presidência da República.
É compreensível que setores de
uma sociedade conservadora como a nossa tenham dificuldade
para aceitar que alguém com semelhante história possa chegar
onde chegou, ainda que por meios
legais e constitucionais, como o
voto. O inadmissível é que, em nome da divergência ideológica ou
política, queiram esvurmá-lo da
vida pública, condenando-o a um
degredo de dez anos dentro de seu
próprio país. Quanto mais argumentam, mais seus adversários
deixam claro que não pretendem
cassá-lo por seus eventuais defeitos, mas por suas virtudes. Parecem querer puni-lo não pelo que
tenha feito, mas pelo que foi.
A primeira tentativa de decapitação de José Dirceu aconteceu em
fevereiro de 2004, quando do caso
Waldomiro. O que aconteceu ali?
A mídia divulgou cenas em que o
então presidente da Loteria do Estado do Rio, Waldomiro Diniz,
aparecia pedindo propina a um
bicheiro. Embora o delito tivesse
ocorrido muito antes de Lula se
eleger presidente, o fato de Waldomiro ter depois ido trabalhar na
Casa Civil era o elo que faltava.
Pouco importava também se era
um fato passado em um governo
estadual de oposição ao PT: a presença de Waldomiro na equipe de
Dirceu era anunciada como a prova incontestável de que o funcionário agia a mando do chefe da
Casa Civil.
Frustrada a degola no ano passado, as denúncias do ex-deputado
Roberto Jefferson (aliás, retiradas
pelo próprio) ensejaram o esquartejamento de que Dirceu vem sendo vítima há seis meses. O nervo
exposto, a medula da acusação feita contra ele no relatório do deputado Júlio Delgado (PSB-MG) está
no final do documento, disponível
a qualquer internauta no endereço
www2.camara.gov.br/conheca/eticaedecoro/notaqui.html.
Delgado consome 70 intermináveis páginas para chegar à conclusão de que "não é crível" que tudo
tivesse ocorrido sem que "um parlamentar com tamanho poder de
decisão (...) soubesse". Com talento infinitamente maior, La Fontaine já nos contou essa história
na célebre fábula do lobo e do cordeiro. Como não se conseguiu
provar nenhuma ligação dele com
os delitos, querem cassá-lo por ignorar que delitos estavam sendo
cometidos.
Mal escaldada pelos crimes que
ela própria cometeu como Bar Bodega, Escola Base e Alceni Guerra,
para ficar só em três casos, parte
expressiva da mídia vem se comportando de maneira escandalosa
no chamado "caso Dirceu".
A imprensa investigou, julgou e
condenou o deputado e agora tem
surtos de histeria porque o Legislativo e o Judiciário se recusam a
executar a sentença. Transformados em partidos políticos, veículos
mandam às favas os escrúpulos de
consciência e esquecem os mais
elementares rudimentos do bom
jornalismo.
Exemplos pululam. Na semana
retrasada, a revista "Veja" publicou uma reportagem de página e
meia sobre a suposta falsificação
da assinatura do ex-presidente do
PT, Tarso Genro, em um documento enviado ao Conselho de
Ética da Câmara. Um leitor habitual do semanário estranharia que
em um texto de denúncia de mil
palavras não houvesse qualquer
acusação a Dirceu. A surpresa termina na última linha, onde o deputado entra como Pilatos no Credo: "Não há indício de que José
Dirceu esteja envolvido nessa
fraude". Na mesma "Veja", um
colunista encerra seu artigo com
esta gracinha: "Agora, só falta Dirceu andar sobre as águas".
Pode ser. A frase lembra outra,
pronunciada nos anos 60 pelo presidente americano Lyndon Johnson, e que pode ser parodiada para
os tempos que estamos vivendo:
"No dia em que José Dirceu andar
sobre as águas, "Veja" dará na capa:
ex-ministro não sabe nadar".
Fernando Morais, 59, é jornalista, escritor, membro do Conselho Superior da Telesur-TV, com sede em Caracas, e autor
de "A Ilha" e "Chatô, o Rei do Brasil"
(Companhia das Letras), entre outros
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