São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2001

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ENTREVISTA

Simpático à candidatura do ministro, filósofo diz que presidente não se compromete politicamente em nome de lealdades pessoais

FHC não se "suicida" por Serra, diz Giannotti

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

"Fernando Henrique Cardoso não vai se suicidar politicamente em nome de lealdades que não sejam políticas." "O presidente da República é de uma frieza política total." São frases do filósofo José Arthur Giannotti, 71, amigo de FHC, 70, desde a juventude, para quem o presidente não irá jogar todas as suas fichas na candidatura do ministro José Serra sob o risco de comprometer seu final de mandato e sua aliança política.
A proximidade com FHC e a afinidade com seu governo não impedem Giannotti de reconhecer que "havia, para aqueles que apoiaram e compreenderam esse processo, uma enorme esperança de que o Fernando iria fazer muito mais do que fez". Ao criticar o governo, Giannotti não poupa, no entanto, também seus críticos. "Estamos diante de uma situação em que a nuance é extremamente relevante. E os intelectuais estão se comportando cada vez mais como jornalistas." Ou seja, deveriam substituir o fígado pelo rigor e a paciência do conceito.
Simpático à candidatura Serra, Giannotti critica o esclerosamento dos políticos de esquerda, faz objeções à candidatura Lula e reconhece que Roseana está "a léguas de distância dos velhos caciques", mesmo "estando ligada aos esquemas do papai (José sarney) e do marido (Jorge Murad)".
Sobre o controle do processo eleitoral pelos publicitários, o filósofo também anda contra a corrente politicamente correta. "Entre o poder dos publicitários e o dos velhos chefes bolcheviques, prefiro o primeiro", diz.
Professor emérito da USP e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Giannotti concedeu a entrevista à Folha na tarde da última quinta, no escritório de sua casa, onde prepara três novos livros.
 

Folha - Em maio de 93, FHC assumiu o Ministério da Fazenda. Em 94, foi eleito presidente. Ao término de seu mandato, serão quase dez anos de hegemonia política. Sairemos dessa em condições melhores do que entramos?
José Arthur Giannotti -
Não há dúvida de que existe, até da minha parte, uma certa decepção em relação ao governo Fernando Henrique. Mas essa decepção está ligada às expectativas enormes que tínhamos no início do governo. Havia, para aqueles que apoiaram e compreenderam esse processo, uma enorme esperança de que o Fernando ia fazer muito mais do que fez. Ainda vamos ver o que ele fez. Isso a história vai dizer.
Para saber exatamente qual é a nossa posição hoje, seria preciso fazer um estudo comparativo com outros países da América Latina. E basta assumir essa perspectiva para sabermos que não estamos tão mal assim.
Tenho convicção plena de que o Estado brasileiro está hoje infinitamente melhor aparelhado para enfrentar o novo capitalismo do que estava antes do Fernando. É claro que muita coisa ficou pela metade, ou não foi enfrentada como deveria, mas também é verdade que a percepção dos avanços estruturais já obtidos é lenta.

Folha - O sr. diz que no começo havia muita esperança. Mas, também desde o começo, e cada vez mais, as críticas dos intelectuais que se sentiram traídos ou se opuseram a FHC nunca foram tão agudas. Há raiva, rancor ou o quê?
Giannotti -
Nós estamos numa situação em que a nuance é extremamente relevante. Como diz o Wittgenstein [Ludwig Wittgenstein, filósofo austríaco (1889-1951)", o que a gente não pode ser é jornalista filosófico. Tenho que ter uma pontuação que não pode ter a rapidez da notícia. Os intelectuais estão cada vez mais jornalistas. Ou eles são técnicos, pensando em problemas altamente relevantes, como a Santíssima Trindade, ou estão pensando a notícia que vocês publicam. Se a gente não começar a recuar e a dar outra pontuação às notícias que vocês publicam, relendo, refazendo, ficando quietos, iremos fazer vida intelectual como vocês fazem jornalismo midiático.

Folha - Quais suas maiores críticas ao governo FHC?
Giannotti -
Em primeiro lugar, foi tecnocrata. Não foi capaz de mostrar à população quais os rumos que estava dando ao país. As decisões foram atropeladas de cima e a idéia de um rolo compressor ficou presente não só no sistema político, como na própria sociedade. É verdade que não houve solavancos e improvisos como antes, mas o governo não soube mobilizar a população.
Além disso, o governo não conseguiu dar funcionamento orgânico a si mesmo. Por causa das alianças, do sistema político, o governo desenvolveu muito mais certos setores -como a parte econômica, o Banco Central, a reforma agrária- e não desenvolveu outros, como deveria. A falta de organicidade prejudicou muito as reformas sociais.

Folha - Neste momento, a sucessão de FHC seria decidida entre Lula e Roseana. A quem caberia realizar a tarefa social?
Giannotti -
A questão é mais complicada do que a opção por essa ou aquela candidatura. Se nós tivéssemos numa democracia bem organizada ou num regime parlamentarista, o que teria acontecido na crise de energia? O governo teria caído. Mas não creio que nenhum partido sozinho seja capaz de realizar uma tarefa histórica do tamanho daquela que nós devemos enfrentar.
O importante seria uma alternância de poder. Eu estaria felicíssimo se pudesse votar na oposição. Não sou militante de nenhum partido, acho que em determinado momento certos partidos podem cumprir melhor certas tarefas. O PSDB cumpriu uma tarefa à medida que fez uma aliança necessária mas complicada com a direita. Seria extraordinário se pudéssemos agora ter um governo de centro-esquerda.

Folha - Mas o que seria esse governo de centro-esquerda? Uma aliança do PT com o PSDB? Depois dos anos FHC, essa aliança não ficou impossível?
Giannotti -
Mas é impossível porque os dois partidos não estão respondendo a essa demanda por causa de seus problemas internos. Existe uma enorme demanda por renovação -e o fenômeno Roseana está aí a evidenciar isso. O problema é que a dinâmica política distanciou o centro e a esquerda. De um lado, há o PT, vítima de um enrijecimento do coração de sua direção, cada vez mais burocrática. Se o PT tivesse lançado uma figura nova à sucessão, se respondesse a essa demanda da sociedade com o apoio do Lula, eles teriam enorme chances de vencer. Não sei se o PT não irá repetir o velho percurso de começar muito bem e morrer na praia.
Por que o Lula não queria realizar as prévias? Porque o discurso interno não pode ser o discurso que ele vai ter de desenvolver para fazer uma aliança de centro-esquerda. Ele fica bloqueado no seu próprio discurso. Lula vai falar durante a campanha das prévias generalidades e não vai desenvolver realmente aquilo que ele pensa ser possível num governo.
Do outro lado você tem o PFL, que é um partido que se renovou enormemente, que se reestruturou, mas cuja base de poder é o local. Lançaram a Roseana como forma de aumentar seu poder de barganha. Acabou dando certo.

Folha - Até demais. O PFL está assustado com a perspectiva de chegar à cabeça do poder?
Giannotti -
Parece. Assumir o governo central significa ter instituições e equipes que sejam capazes de operar esses mecanismos modernos que nos inserem num capitalismo internacional e que sejam capazes de fazer a ponte entre o governo federal e o poder local. É o centro político que tem esses quadros. Nem o PT nem o PFL têm tido. E não é à toa que o secretário de Finanças da Marta Suplicy se chama João Sayad.

Folha - Quando o sr. fala na capacidade técnica do centro não estaria se referindo a uma elite tecnocrática tucano-uspiana? Não são as pessoas que ganharam poder com a ascensão de FHC?
Giannotti -
Não, eu diria que é o contrário. O poder do Fernando Henrique deriva desses grupos médios formados durante décadas aqui e em ultramar. Na ponta, esse processo parece muito paulista, mas é um processo de formação de um centro de técnicos sem o qual ninguém governa. Governar não é dirigir uma empresa nem botar ordem em uma família. Implica não só eficácia administrativa e de gerenciamento, mas também capacidade de lidar com todo o sistema político e equilibrar as posições.

Folha - O PSDB é hoje o partido do centro no Brasil?
Giannotti -
Não há um partido de centro no país, o que é um problema sério. O PMDB está inteiramente feudalizado. É um confederação de caciques e interesses regionais. O PSDB é um partido muito mais orgânico, mas é pequeno, em fase de crescimento, ainda é tecnocrata. Não é capaz de mostrar o rumo ao país que é capaz de dar. Tanto é assim, que temos uma briga interessante entre Tasso e Serra. No fundo, eles são muito parecidos, têm um mesmo perfil acadêmico-gerencial e, no entanto, dentro do partido, eles não conseguem encontrar mecanismos de se compor. Há um jogo para ver quem sai pelo partido.

Folha - O jogo não está decidido para o Serra dentro do PSDB?
Giannotti -
Não sei, não sei. O problema todo é se nesse avanço estratégico que o Serra deve fazer ele consegue galvanizar uma expectativa eleitoral, subir nas pesquisas, de tal modo que se mostre capaz de vencer a eleição. Se isso não acontecer, os aliados o abandonam. Abandonando, vão para quem? Se o Tasso não fosse nordestino, acreditaria numa composição Roseana-Tasso.

Folha - E o Aécio?
Giannotti -
Tem o Aécio, que está se revelando muito hábil. Do ponto de vista do governo e do grupo do Fernando Henrique... Veja bem, o Fernando é de uma frieza política total. Ele pode amar este ou aquele, mas ele vai pedir que os candidatos que saiam do seio do governo se viabilizem. Ele não vai se suicidar politicamente em nome de certas lealdades que não sejam políticas.

Folha - Então FHC não está condenado a apoiar Serra?
Giannotti -
Não. As ligações dele com o Serra são muito estreitas, mas ele, como presidente da República e chefe dessa aliança, não pode dizer "eu ponho as minhas fichas no Serra". De repente, num acidente de trajeto, ele fica com o apoio na mão. Politicamente isso é impensável, embora eu tenha toda a simpatia pelo Serra e o veja como um grande presidente.
A política que o Serra fez em relação aos remédios da Aids é exemplar. Vi vários amigos dizendo que esse negócio de dar assistência universal para os aidéticos era uma loucura, pois tirava dinheiro da saúde pública, da saúde preventiva. Eu, me disse um amigo, tenho vergonha de expor num fórum internacional qual a política do Brasil para os aidéticos, pois ninguém está fazendo isso. O que o Serra fez? Foi lá fora e disse que quebraria as patentes. Aqui é que está a força do Estado moderno. Capaz de ter estratégia de inserção e de mudar os termos pelos quais os problemas nos são apresentados. O problema agora é saber se o Serra vai se viabilizar eleitoralmente e conseguir fazer uma aliança capaz de governar o país.

Folha - FHC tem uma personalidade mais transigente que o Serra.
Giannotti -
É verdade. Lembro de uma reunião, já no governo, com o PSDB em que eles queriam que o Fernando adotasse uma postura mais agressiva. Eu disse: "não peçam ao Fernando Henrique que ele tenha uma virtude que ele não tem e cuja virtude foi exatamente fazer um tipo de negociação que era necessária naquele momento". Pensar que uma pessoa que foi eleita com determinadas virtudes que eram necessárias para tirar o país do impasse político em que estava vá adquirir outras virtudes no momento em que a situação muda é um erro. Acho a diferença de caráter entre Serra e Fernando Henrique altamente positiva.

Folha - A personalidade do Serra é mais parecida com a sua. FHC não dá a cara para bater...
Giannotti -
O Fernando Henrique não dá a cara para bater, mas ele fica esperando o bote. Quantos anos ele esperou o bote para comer o ACM? A renovação do sistema político foi tal que os grandes caciques nacionais foram liquidados. A extrema direita hoje só pode apresentar uma candidata como a Roseana, que está léguas de distância dos velhos caciques, embora seja Sarney.
Não vamos nos enganar. A Roseana é uma mulher que tem política injetada na veia desde criança e tem personalidade, embora possa estar ligada aos esquemas todos do Maranhão, do papai, do marido. Mas ela tem personalidade política muito mais moderna do que os velhos aliados.
Não se pode dizer que o Bornhausen [Jorge Bornhausen, presidente do PFL" não seja um grande político. Liberal, de direita, mas e daí? Se não tivermos um grande político de direita, teremos um mau político de direita. A escolha é essa. O problema é que estamos vivendo um esclerosamento dos políticos de esquerda.

Folha - Dá para traçar um paralelo entre o Luís Eduardo Magalhães e Roseana?
Giannotti -
Acho que sim. O paralelo é correto.

Folha - Ela não existia. Vai à TV e aparece com 20%. Como fica?
Giannotti -
O que você tem contra as campanhas políticas feitas na televisão? Vamos voltar aos velhos comícios, nos quais precisávamos tomar chuva para apoiar um candidato? (risos).

Folha - E o poder da publicidade?
Giannotti -
É enorme, como na esquerda o poder da burocracia oculta sempre foi enorme. Entre o poder dos publicitários e o dos velhos chefes bolcheviques, prefiro o primeiro. Os publicitários hoje estão em todos os lugares, na esquerda inclusive. Em segundo lugar, é uma ofensa dizer ao eleitor brasileiro que ele vota como se estivesse comprando sabonete. O eleitor não é burro. É evidente que a manipulação tem algum resultado, mas, como são vários manipuladores, temos o processo liberal em que as manipulações são erodidas. Temos portanto um debate que é público.

Folha - Pela TV...
Giannotti -
Mas o fato de termos um programa eleitoral obrigatório na TV é muito positivo. Num país como nosso é fundamental que cada partido se apresente e tenha a oportunidade de se apresentar sem estar subordinado ao jogo dos meios de comunicação.

Folha - Quais os desafios do próximo governo?
Giannotti -
Hoje temos um capitalismo que está baseado no monopólio da invenção tecnológica. Não se trata de um monopólio da criação da ciência e de novas tecnologias. É um monopólio da invenção da tecnologia de cabo a rabo, desde o momento em que você inventa uma molécula até o momento em que ela se transforma em remédio. O que significa que todos podem descobrir com um pajé na Amazônia uma substância para curar a Aids, mas, para transformar essa molécula em remédio, é necessária uma quantidade de testes que custam algo em torno de US$ 400 milhões. Não temos condições. A não ser pela borda, procurando nichos para construir um caminho.

Folha - Mas esse monopólio da invenção tecnológica como motor do capital o sr. já identificava pelo menos desde meados dos anos 80...
Giannotti -
Pois é, eu também não esqueço o que escrevi (risos).



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