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ENTREVISTA
Simpático à candidatura do ministro, filósofo diz que presidente não se compromete politicamente em nome de lealdades pessoais
FHC não se "suicida" por Serra, diz Giannotti
FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL
"Fernando Henrique Cardoso
não vai se suicidar politicamente
em nome de lealdades que não sejam políticas." "O presidente da
República é de uma frieza política
total." São frases do filósofo José
Arthur Giannotti, 71, amigo de
FHC, 70, desde a juventude, para
quem o presidente não irá jogar
todas as suas fichas na candidatura do ministro José Serra sob o risco de comprometer seu final de
mandato e sua aliança política.
A proximidade com FHC e a afinidade com seu governo não impedem Giannotti de reconhecer
que "havia, para aqueles que
apoiaram e compreenderam esse
processo, uma enorme esperança
de que o Fernando iria fazer muito mais do que fez". Ao criticar o
governo, Giannotti não poupa, no
entanto, também seus críticos.
"Estamos diante de uma situação
em que a nuance é extremamente
relevante. E os intelectuais estão
se comportando cada vez mais
como jornalistas." Ou seja, deveriam substituir o fígado pelo rigor
e a paciência do conceito.
Simpático à candidatura Serra,
Giannotti critica o esclerosamento dos políticos de esquerda, faz
objeções à candidatura Lula e reconhece que Roseana está "a léguas de distância dos velhos caciques", mesmo "estando ligada
aos esquemas do papai (José sarney) e do marido (Jorge Murad)".
Sobre o controle do processo
eleitoral pelos publicitários, o filósofo também anda contra a corrente politicamente correta. "Entre o poder dos publicitários e o
dos velhos chefes bolcheviques,
prefiro o primeiro", diz.
Professor emérito da USP e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Giannotti concedeu a entrevista à Folha na tarde da última
quinta, no escritório de sua casa,
onde prepara três novos livros.
Folha - Em maio de 93, FHC assumiu o Ministério da Fazenda. Em
94, foi eleito presidente. Ao término de seu mandato, serão quase
dez anos de hegemonia política.
Sairemos dessa em condições melhores do que entramos?
José Arthur Giannotti - Não há
dúvida de que existe, até da minha
parte, uma certa decepção em relação ao governo Fernando Henrique. Mas essa decepção está ligada às expectativas enormes que
tínhamos no início do governo.
Havia, para aqueles que apoiaram
e compreenderam esse processo,
uma enorme esperança de que o
Fernando ia fazer muito mais do
que fez. Ainda vamos ver o que ele
fez. Isso a história vai dizer.
Para saber exatamente qual é a
nossa posição hoje, seria preciso
fazer um estudo comparativo
com outros países da América Latina. E basta assumir essa perspectiva para sabermos que não
estamos tão mal assim.
Tenho convicção plena de que o
Estado brasileiro está hoje infinitamente melhor aparelhado para
enfrentar o novo capitalismo do
que estava antes do Fernando. É
claro que muita coisa ficou pela
metade, ou não foi enfrentada como deveria, mas também é verdade que a percepção dos avanços
estruturais já obtidos é lenta.
Folha - O sr. diz que no começo
havia muita esperança. Mas, também desde o começo, e cada vez
mais, as críticas dos intelectuais
que se sentiram traídos ou se opuseram a FHC nunca foram tão agudas. Há raiva, rancor ou o quê?
Giannotti - Nós estamos numa
situação em que a nuance é extremamente relevante. Como diz o
Wittgenstein [Ludwig Wittgenstein, filósofo austríaco (1889-1951)", o que a gente não pode ser
é jornalista filosófico. Tenho que
ter uma pontuação que não pode
ter a rapidez da notícia. Os intelectuais estão cada vez mais jornalistas. Ou eles são técnicos, pensando em problemas altamente
relevantes, como a Santíssima
Trindade, ou estão pensando a
notícia que vocês publicam. Se a
gente não começar a recuar e a
dar outra pontuação às notícias
que vocês publicam, relendo, refazendo, ficando quietos, iremos
fazer vida intelectual como vocês
fazem jornalismo midiático.
Folha - Quais suas maiores críticas ao governo FHC?
Giannotti - Em primeiro lugar,
foi tecnocrata. Não foi capaz de
mostrar à população quais os rumos que estava dando ao país. As
decisões foram atropeladas de cima e a idéia de um rolo compressor ficou presente não só no sistema político, como na própria sociedade. É verdade que não houve
solavancos e improvisos como
antes, mas o governo não soube
mobilizar a população.
Além disso, o governo não conseguiu dar funcionamento orgânico a si mesmo. Por causa das
alianças, do sistema político, o governo desenvolveu muito mais
certos setores -como a parte
econômica, o Banco Central, a reforma agrária- e não desenvolveu outros, como deveria. A falta
de organicidade prejudicou muito as reformas sociais.
Folha - Neste momento, a sucessão de FHC seria decidida entre Lula e Roseana. A quem caberia realizar a tarefa social?
Giannotti - A questão é mais
complicada do que a opção por
essa ou aquela candidatura. Se
nós tivéssemos numa democracia
bem organizada ou num regime
parlamentarista, o que teria acontecido na crise de energia? O governo teria caído. Mas não creio
que nenhum partido sozinho seja
capaz de realizar uma tarefa histórica do tamanho daquela que nós
devemos enfrentar.
O importante seria uma alternância de poder. Eu estaria felicíssimo se pudesse votar na oposição. Não sou militante de nenhum partido, acho que em determinado momento certos partidos podem cumprir melhor certas tarefas. O PSDB cumpriu uma
tarefa à medida que fez uma aliança necessária mas complicada
com a direita. Seria extraordinário se pudéssemos agora ter um
governo de centro-esquerda.
Folha - Mas o que seria esse governo de centro-esquerda? Uma
aliança do PT com o PSDB? Depois
dos anos FHC, essa aliança não ficou impossível?
Giannotti - Mas é impossível
porque os dois partidos não estão
respondendo a essa demanda por
causa de seus problemas internos.
Existe uma enorme demanda por
renovação -e o fenômeno Roseana está aí a evidenciar isso. O
problema é que a dinâmica política distanciou o centro e a esquerda. De um lado, há o PT, vítima de
um enrijecimento do coração de
sua direção, cada vez mais burocrática. Se o PT tivesse lançado
uma figura nova à sucessão, se
respondesse a essa demanda da
sociedade com o apoio do Lula,
eles teriam enorme chances de
vencer. Não sei se o PT não irá repetir o velho percurso de começar
muito bem e morrer na praia.
Por que o Lula não queria realizar as prévias? Porque o discurso
interno não pode ser o discurso
que ele vai ter de desenvolver para
fazer uma aliança de centro-esquerda. Ele fica bloqueado no seu
próprio discurso. Lula vai falar
durante a campanha das prévias
generalidades e não vai desenvolver realmente aquilo que ele pensa ser possível num governo.
Do outro lado você tem o PFL,
que é um partido que se renovou
enormemente, que se reestruturou, mas cuja base de poder é o local. Lançaram a Roseana como
forma de aumentar seu poder de
barganha. Acabou dando certo.
Folha - Até demais. O PFL está assustado com a perspectiva de chegar à cabeça do poder?
Giannotti - Parece. Assumir o
governo central significa ter instituições e equipes que sejam capazes de operar esses mecanismos
modernos que nos inserem num
capitalismo internacional e que
sejam capazes de fazer a ponte entre o governo federal e o poder local. É o centro político que tem esses quadros. Nem o PT nem o PFL
têm tido. E não é à toa que o secretário de Finanças da Marta Suplicy se chama João Sayad.
Folha - Quando o sr. fala na capacidade técnica do centro não estaria se referindo a uma elite tecnocrática tucano-uspiana? Não são as
pessoas que ganharam poder com
a ascensão de FHC?
Giannotti - Não, eu diria que é o
contrário. O poder do Fernando
Henrique deriva desses grupos
médios formados durante décadas aqui e em ultramar. Na ponta,
esse processo parece muito paulista, mas é um processo de formação de um centro de técnicos
sem o qual ninguém governa. Governar não é dirigir uma empresa
nem botar ordem em uma família. Implica não só eficácia administrativa e de gerenciamento,
mas também capacidade de lidar
com todo o sistema político e
equilibrar as posições.
Folha - O PSDB é hoje o partido do
centro no Brasil?
Giannotti - Não há um partido
de centro no país, o que é um problema sério. O PMDB está inteiramente feudalizado. É um confederação de caciques e interesses
regionais. O PSDB é um partido
muito mais orgânico, mas é pequeno, em fase de crescimento,
ainda é tecnocrata. Não é capaz de
mostrar o rumo ao país que é capaz de dar. Tanto é assim, que temos uma briga interessante entre
Tasso e Serra. No fundo, eles são
muito parecidos, têm um mesmo
perfil acadêmico-gerencial e, no
entanto, dentro do partido, eles
não conseguem encontrar mecanismos de se compor. Há um jogo
para ver quem sai pelo partido.
Folha - O jogo não está decidido
para o Serra dentro do PSDB?
Giannotti - Não sei, não sei. O
problema todo é se nesse avanço
estratégico que o Serra deve fazer
ele consegue galvanizar uma expectativa eleitoral, subir nas pesquisas, de tal modo que se mostre
capaz de vencer a eleição. Se isso
não acontecer, os aliados o abandonam. Abandonando, vão para
quem? Se o Tasso não fosse nordestino, acreditaria numa composição Roseana-Tasso.
Folha - E o Aécio?
Giannotti - Tem o Aécio, que está se revelando muito hábil. Do
ponto de vista do governo e do
grupo do Fernando Henrique...
Veja bem, o Fernando é de uma
frieza política total. Ele pode amar
este ou aquele, mas ele vai pedir
que os candidatos que saiam do
seio do governo se viabilizem. Ele
não vai se suicidar politicamente
em nome de certas lealdades que
não sejam políticas.
Folha - Então FHC não está condenado a apoiar Serra?
Giannotti - Não. As ligações dele
com o Serra são muito estreitas,
mas ele, como presidente da República e chefe dessa aliança, não
pode dizer "eu ponho as minhas
fichas no Serra". De repente, num
acidente de trajeto, ele fica com o
apoio na mão. Politicamente isso
é impensável, embora eu tenha
toda a simpatia pelo Serra e o veja
como um grande presidente.
A política que o Serra fez em relação aos remédios da Aids é
exemplar. Vi vários amigos dizendo que esse negócio de dar assistência universal para os aidéticos
era uma loucura, pois tirava dinheiro da saúde pública, da saúde
preventiva. Eu, me disse um amigo, tenho vergonha de expor num
fórum internacional qual a política do Brasil para os aidéticos, pois
ninguém está fazendo isso. O que
o Serra fez? Foi lá fora e disse que
quebraria as patentes. Aqui é que
está a força do Estado moderno.
Capaz de ter estratégia de inserção e de mudar os termos pelos
quais os problemas nos são apresentados. O problema agora é saber se o Serra vai se viabilizar eleitoralmente e conseguir fazer uma
aliança capaz de governar o país.
Folha - FHC tem uma personalidade mais transigente que o Serra.
Giannotti - É verdade. Lembro
de uma reunião, já no governo,
com o PSDB em que eles queriam
que o Fernando adotasse uma
postura mais agressiva. Eu disse:
"não peçam ao Fernando Henrique que ele tenha uma virtude
que ele não tem e cuja virtude foi
exatamente fazer um tipo de negociação que era necessária naquele momento". Pensar que
uma pessoa que foi eleita com determinadas virtudes que eram necessárias para tirar o país do impasse político em que estava vá
adquirir outras virtudes no momento em que a situação muda é
um erro. Acho a diferença de caráter entre Serra e Fernando Henrique altamente positiva.
Folha - A personalidade do Serra
é mais parecida com a sua. FHC não
dá a cara para bater...
Giannotti - O Fernando Henrique não dá a cara para bater, mas
ele fica esperando o bote. Quantos
anos ele esperou o bote para comer o ACM? A renovação do sistema político foi tal que os grandes caciques nacionais foram liquidados. A extrema direita hoje
só pode apresentar uma candidata como a Roseana, que está léguas de distância dos velhos caciques, embora seja Sarney.
Não vamos nos enganar. A Roseana é uma mulher que tem política injetada na veia desde criança
e tem personalidade, embora possa estar ligada aos esquemas todos do Maranhão, do papai, do
marido. Mas ela tem personalidade política muito mais moderna
do que os velhos aliados.
Não se pode dizer que o Bornhausen [Jorge Bornhausen, presidente do PFL" não seja um grande político. Liberal, de direita,
mas e daí? Se não tivermos um
grande político de direita, teremos um mau político de direita. A
escolha é essa. O problema é que
estamos vivendo um esclerosamento dos políticos de esquerda.
Folha - Dá para traçar um paralelo entre o Luís Eduardo Magalhães
e Roseana?
Giannotti - Acho que sim. O paralelo é correto.
Folha - Ela não existia. Vai à TV e
aparece com 20%. Como fica?
Giannotti - O que você tem contra as campanhas políticas feitas
na televisão? Vamos voltar aos velhos comícios, nos quais precisávamos tomar chuva para apoiar
um candidato? (risos).
Folha - E o poder da publicidade?
Giannotti - É enorme, como na
esquerda o poder da burocracia
oculta sempre foi enorme. Entre o
poder dos publicitários e o dos velhos chefes bolcheviques, prefiro
o primeiro. Os publicitários hoje
estão em todos os lugares, na esquerda inclusive. Em segundo lugar, é uma ofensa dizer ao eleitor
brasileiro que ele vota como se estivesse comprando sabonete. O
eleitor não é burro. É evidente que
a manipulação tem algum resultado, mas, como são vários manipuladores, temos o processo liberal em que as manipulações são
erodidas. Temos portanto um debate que é público.
Folha - Pela TV...
Giannotti - Mas o fato de termos
um programa eleitoral obrigatório na TV é muito positivo. Num
país como nosso é fundamental
que cada partido se apresente e tenha a oportunidade de se apresentar sem estar subordinado ao
jogo dos meios de comunicação.
Folha - Quais os desafios do próximo governo?
Giannotti - Hoje temos um capitalismo que está baseado no monopólio da invenção tecnológica.
Não se trata de um monopólio da
criação da ciência e de novas tecnologias. É um monopólio da invenção da tecnologia de cabo a rabo, desde o momento em que você inventa uma molécula até o
momento em que ela se transforma em remédio. O que significa
que todos podem descobrir com
um pajé na Amazônia uma substância para curar a Aids, mas, para transformar essa molécula em
remédio, é necessária uma quantidade de testes que custam algo
em torno de US$ 400 milhões.
Não temos condições. A não ser
pela borda, procurando nichos
para construir um caminho.
Folha - Mas esse monopólio da invenção tecnológica como motor do
capital o sr. já identificava pelo menos desde meados dos anos 80...
Giannotti - Pois é, eu também
não esqueço o que escrevi (risos).
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