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A tarefa de proclamar a nudez do rei
CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL
Final da noite de 31 de março,
minutos iniciais de 1º de abril.
Apesar de ter recebido um ofício
do ex-chefe da Casa Civil, Darcy
Ribeiro, comunicando ao Congresso que o presidente da República se achava em território nacional, a caminho do Rio Grande
do Sul, o presidente do Senado,
Auro de Moura Andrade, que fora previamente derrubado por
Goulart da chefia de um governo
no regime parlamentarista, tomou a iniciativa de declarar vaga a
Presidência da República.
Na forma da lei, convocou o
presidente da Câmara de Deputados, Ranieri Mazzilli, para assumir o governo. Acompanhado de
alguns deputados, Mazzilli dirigiu-se ao Palácio do Planalto, sede
do governo, que estava fechado e
às escuras. A caravana teve de entrar pela garagem.
Conta Luís Viana Filho, que seria chefe da Casa Civil do primeiro governo militar, em seu livro
sobre o governo Castelo Branco,
que nenhum funcionário do palácio foi encontrado para acender
as luzes, nem havia ninguém que
soubesse onde ficavam os registros
elétricos. A turma
ia acendendo fósforos e isqueiros, à
medida que avançava até o gabinete presidencial.
Um historiador
parcial dos acontecimentos poderia classificar
aquela forma de
tomar o poder como um assalto,
mas tudo era legal,
ali estava o presidente da Câmara
que fora convocado pelo presidente
do Congresso para assumir a Presidência declarada
oficialmente vaga
da nação. Conta
ainda Luís Viana
Filho que, ao
acender um dos
fósforos, no meio
dos deputados
brasileiros que
acompanhavam
Mazzilli, descobriu "um jovem
secretário da Embaixada americana -Robert
Bentley" (Luís Viana Filho, "O
Governo Castelo Branco", José
Olympio, 1975, pág. 46).
Só não houve mais confusão
porque era impossível haver situação mais confusa. O governo
caíra sem resistência, os revoltosos tinham esboçado estratégias e
táticas para combates que não se
verificaram, os mais otimistas esperavam que os movimentos de
tropas durassem até 48 horas.
Enquanto isso, haveria tempo
para o tabuleiro melhor se arrumar. Mas, apanhados de surpresa, militares e civis que vinham
conspirando há tanto tempo não
tiveram tempo para esboçar uma
logística. A decisão de Moura Andrade, declarando vaga a Presidência, dera aparente continuidade legal ao país. E todos sabiam
que a posse de Mazzilli não era
para valer e muito menos para
durar.
Legiões vencedoras
Se fosse obedecida a tradição
dos fastos guerreiros, ao vencedor
seriam dadas as batatas, vale dizer, o poder. Mas, em certo sentido, agora eram vencedores e não
havia batata suficiente que desse
para tantos.
Pela ordem, o principal guerreiro era Mourão, que chegou ao Rio
à frente de suas tropas e, não encontrando nada para tomar, tomou o estádio do Maracanã, onde
mandou que seus soldados acampassem e fruíssem a vitória. Nos
tempos do Império Romano, um
general que chegasse a Roma à
frente de suas legiões vencedoras,
teria direito a um triunfo, um desfile monumental com o respectivo arco de mármore.
Mourão não teve nada disso.
Foi mesmo de jipe, enlameado
pela estrada União-Indústria, ao
Ministério da Guerra, que julgava
acéfalo, ou com um ministro
qualquer nomeado nas vascas do
governo deposto. Encontrou um
novo e já definitivo ministro da
Guerra, que àquela hora da madrugada estava dormindo numa
das salas do sexto andar.
Mourão invocou sua autoridade de chefe, que chegava vitorioso
ao fronte, e ordenou a um coronel
que fosse acordar o ministro posto em sossego. Cinco minutos depois, desgrenhado pelo sono interrompido, abotoando a túnica,
apareceu Costa e Silva, muito
amável, agradecendo tudo o que
Mourão havia feito pelo bem da
pátria. Mourão esperava proferir
alguma frase solene que se tornasse histórica, mas não havia clima.
Segundo narra em suas memórias, "o ambiente era péssimo. Camas de campanha encostadas
umas nas outras. Um cheiro ruim
de homens em fim de jornada,
misturado com o de cigarros apagados" (...) "um ambiente malcheiroso, militares estremunhados, de barba por
fazer, sem escovas
de dentes" -enfim, a platéia não
merecia presenciar um grande
lance que se incorporasse à história.
Para piorar o
seu humor, Costa
e Silva deu-lhe a
fatia do bolo em
hora imprópria e
em tamanho de
migalha. Para se
livrar de Mourão
o mais rapidamente possível, o
recém-ministro
declarou que continuava a precisar
dos valiosos serviços de tão bravo
guerreiro "na presidência da Petrobrás".
Foi dose. Esbodegado pelas
emoções que vivera, Mourão engoliu em seco,
ainda se lembrou
de argumentar,
não entendia nada de petróleo,
nem botara suas
tropas na rua para pleitear cargos.
Contudo, seu desconfiômetro de
mineiro o alertou: nada queriam
com ele. Já haviam subido ao poder novos homens e nova classe.
No Posto 6, em Copacabana,
desci à rua para encontrar Carlos
Drummond de Andrade, que me
esperava na esquina da Raul
Pompéia com a Rainha Elisabeth.
Fomos ver o que estava acontecendo ali perto, no Forte de Copacabana, tomado por militares que
se levantaram contra o governo
de João Goulart. Vimos um oficial
da Marinha chutando um operário de obra vizinha que havia dado um grito a favor de Brizola ou
Jango, não tenho certeza. Voltando para casa, escrevi minha crônica para o "Correio da Manhã",
iniciando uma série de textos que
provocaram invasão e depredação de meu apartamento, tentativa de seqüestro de minhas filhas
menores, processos, prisões, uma
temporada no exterior como apátrida.
Alguns amigos pensavam que
eu afinal abraçara um lado na luta
ideológica do meu tempo. No ano
seguinte, Tancredo Neves ofereceu-me um lugar na chapa de deputados federais do então MDB,
que eu recusei. Quarenta anos depois, continuo me negando a
qualquer participação pessoal na
vida política do país. Como jornalista, mas sobretudo como ser humano, sempre que posso -e
mesmo quando não posso nem
devo-, sinto-me obrigado a proclamar a nudez do rei, de qualquer rei. Certo ou errado, cumpri
uma obrigação para comigo mesmo.
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