São Paulo, quarta-feira, 31 de março de 2004

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A tarefa de proclamar a nudez do rei

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Final da noite de 31 de março, minutos iniciais de 1º de abril. Apesar de ter recebido um ofício do ex-chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, comunicando ao Congresso que o presidente da República se achava em território nacional, a caminho do Rio Grande do Sul, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, que fora previamente derrubado por Goulart da chefia de um governo no regime parlamentarista, tomou a iniciativa de declarar vaga a Presidência da República.
Na forma da lei, convocou o presidente da Câmara de Deputados, Ranieri Mazzilli, para assumir o governo. Acompanhado de alguns deputados, Mazzilli dirigiu-se ao Palácio do Planalto, sede do governo, que estava fechado e às escuras. A caravana teve de entrar pela garagem.
Conta Luís Viana Filho, que seria chefe da Casa Civil do primeiro governo militar, em seu livro sobre o governo Castelo Branco, que nenhum funcionário do palácio foi encontrado para acender as luzes, nem havia ninguém que soubesse onde ficavam os registros elétricos. A turma ia acendendo fósforos e isqueiros, à medida que avançava até o gabinete presidencial.
Um historiador parcial dos acontecimentos poderia classificar aquela forma de tomar o poder como um assalto, mas tudo era legal, ali estava o presidente da Câmara que fora convocado pelo presidente do Congresso para assumir a Presidência declarada oficialmente vaga da nação. Conta ainda Luís Viana Filho que, ao acender um dos fósforos, no meio dos deputados brasileiros que acompanhavam Mazzilli, descobriu "um jovem secretário da Embaixada americana -Robert Bentley" (Luís Viana Filho, "O Governo Castelo Branco", José Olympio, 1975, pág. 46).
Só não houve mais confusão porque era impossível haver situação mais confusa. O governo caíra sem resistência, os revoltosos tinham esboçado estratégias e táticas para combates que não se verificaram, os mais otimistas esperavam que os movimentos de tropas durassem até 48 horas.
Enquanto isso, haveria tempo para o tabuleiro melhor se arrumar. Mas, apanhados de surpresa, militares e civis que vinham conspirando há tanto tempo não tiveram tempo para esboçar uma logística. A decisão de Moura Andrade, declarando vaga a Presidência, dera aparente continuidade legal ao país. E todos sabiam que a posse de Mazzilli não era para valer e muito menos para durar.

Legiões vencedoras
Se fosse obedecida a tradição dos fastos guerreiros, ao vencedor seriam dadas as batatas, vale dizer, o poder. Mas, em certo sentido, agora eram vencedores e não havia batata suficiente que desse para tantos.
Pela ordem, o principal guerreiro era Mourão, que chegou ao Rio à frente de suas tropas e, não encontrando nada para tomar, tomou o estádio do Maracanã, onde mandou que seus soldados acampassem e fruíssem a vitória. Nos tempos do Império Romano, um general que chegasse a Roma à frente de suas legiões vencedoras, teria direito a um triunfo, um desfile monumental com o respectivo arco de mármore.
Mourão não teve nada disso. Foi mesmo de jipe, enlameado pela estrada União-Indústria, ao Ministério da Guerra, que julgava acéfalo, ou com um ministro qualquer nomeado nas vascas do governo deposto. Encontrou um novo e já definitivo ministro da Guerra, que àquela hora da madrugada estava dormindo numa das salas do sexto andar.
Mourão invocou sua autoridade de chefe, que chegava vitorioso ao fronte, e ordenou a um coronel que fosse acordar o ministro posto em sossego. Cinco minutos depois, desgrenhado pelo sono interrompido, abotoando a túnica, apareceu Costa e Silva, muito amável, agradecendo tudo o que Mourão havia feito pelo bem da pátria. Mourão esperava proferir alguma frase solene que se tornasse histórica, mas não havia clima. Segundo narra em suas memórias, "o ambiente era péssimo. Camas de campanha encostadas umas nas outras. Um cheiro ruim de homens em fim de jornada, misturado com o de cigarros apagados" (...) "um ambiente malcheiroso, militares estremunhados, de barba por fazer, sem escovas de dentes" -enfim, a platéia não merecia presenciar um grande lance que se incorporasse à história.
Para piorar o seu humor, Costa e Silva deu-lhe a fatia do bolo em hora imprópria e em tamanho de migalha. Para se livrar de Mourão o mais rapidamente possível, o recém-ministro declarou que continuava a precisar dos valiosos serviços de tão bravo guerreiro "na presidência da Petrobrás".
Foi dose. Esbodegado pelas emoções que vivera, Mourão engoliu em seco, ainda se lembrou de argumentar, não entendia nada de petróleo, nem botara suas tropas na rua para pleitear cargos. Contudo, seu desconfiômetro de mineiro o alertou: nada queriam com ele. Já haviam subido ao poder novos homens e nova classe.
No Posto 6, em Copacabana, desci à rua para encontrar Carlos Drummond de Andrade, que me esperava na esquina da Raul Pompéia com a Rainha Elisabeth. Fomos ver o que estava acontecendo ali perto, no Forte de Copacabana, tomado por militares que se levantaram contra o governo de João Goulart. Vimos um oficial da Marinha chutando um operário de obra vizinha que havia dado um grito a favor de Brizola ou Jango, não tenho certeza. Voltando para casa, escrevi minha crônica para o "Correio da Manhã", iniciando uma série de textos que provocaram invasão e depredação de meu apartamento, tentativa de seqüestro de minhas filhas menores, processos, prisões, uma temporada no exterior como apátrida.
Alguns amigos pensavam que eu afinal abraçara um lado na luta ideológica do meu tempo. No ano seguinte, Tancredo Neves ofereceu-me um lugar na chapa de deputados federais do então MDB, que eu recusei. Quarenta anos depois, continuo me negando a qualquer participação pessoal na vida política do país. Como jornalista, mas sobretudo como ser humano, sempre que posso -e mesmo quando não posso nem devo-, sinto-me obrigado a proclamar a nudez do rei, de qualquer rei. Certo ou errado, cumpri uma obrigação para comigo mesmo.


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