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Leia o discurso do presidente na Assembléia da França
Leia a íntegra o discurso do presidente Fernando Henrique Cardoso na
Assembléia Nacional da França:
"Esta é a primeira vez que um presidente
do Brasil se dirige à Assembléia Nacional da
França. Recebam, senhores deputados, a
mais calorosa saudação do governo e do povo
brasileiros. Agradeço, honrado, a oportunidade de trazer-lhes a palavra de um país que
renovou seu compromisso com a democracia
e o desenvolvimento.
O Brasil sempre nutriu profunda admiração por esta Casa, que traz o timbre da história da França e da humanidade. Somos parte
de um continente que conquistou a independência sob a influência da luta memorável
que se travou neste hemisfério pela liberdade
e pela justiça. Daí se seguiu um diálogo intenso com a França e seus intérpretes. Sobretudo
nos momentos de inflexão de nossa história.
Lembro que a jovem monarquia brasileira
se consolidou tendo como eixo o "poder neutro" proposto por Benjamin Constant. Depois, em 1889, optamos pela República, com
lema positivista. A referência foi Auguste
Comte, assimilado segundo as circunstâncias
locais. O positivismo no Brasil foi emblema
do progresso material, ainda que sob o invólucro conservador da ordem.
A França também serviu de modelo à criação de importantes instituições brasileiras: o
Museu de Belas Artes, o Instituto Histórico e
Geográfico, a Academia Brasileira de Letras, a
Universidade de São Paulo.
Sou egresso da Universidade de São Paulo,
onde usufruí do legado que lá deixaram Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss e Fernand
Braudel. Aprendi a sociologia do trabalho
com George Friedmann e Alain Touraine, a
quem tanto devo intelectualmente. Nos anos
sessenta, o exílio me trouxe a Paris. Vivi de
perto os dias libertários de maio de 1968. Estive em Nanterre, onde ensinei sobre a América
Latina, mas aprendi bem mais.
Aprendi que o anseio de Tocqueville por
um equilíbrio ideal entre liberdade e igualdade continuava a animar o espírito francês. Lefort e Castoriadis colocavam a nu a experiência totalitária. A democracia era confirmada
como método de satisfação individual e coletiva, para o que não faltava a contribuição de
liberais refinados como Raymond Aron, a cujas aulas havia assistido muito antes, em 1961.
Mais tarde, nos anos setenta, lecionei na École
des Hautes Études e, por generosidade de Michel Foucault, no Collège de France.
O ambiente não podia ser mais estimulante, inclusive pela abertura da França aos exilados. Muitos fizeram deste país sua segunda
pátria. A norma era a tolerância, a transigência, a aceitação do outro. Das lembranças que
guardo do período, esta talvez seja a que mais
cultivo. A França, sempre identificada com os
valores universais, para mim se tornou também sinônimo de pluralismo, ideal que me é
muito caro, como a todos os brasileiros, produto que somos da integração contínua e duradoura de diferentes culturas.
Faço esta reminiscência em tom pessoal,
mas sei de sua importância política. O fato de
duas grandes nações, como a França e o Brasil, partilharem valor tão essencial como o
pluralismo é digno de louvor em qualquer circunstância. Mas isto assume relevância especial na conjuntura em que vivemos.
Na onda dos atentados de 11 de setembro, o
fanatismo dos terroristas parece encontrar
eco no desejo nefasto de acirrar ânimos entre
religiões ou culturas. Nós nos opomos tenazmente ao discurso de que existe um choque
de civilizações: de um lado, o "Ocidente" judaico-cristão; de outro, a civilização muçulmana. Heterogêneas como são as duas tradições, a barbárie e o autoritarismo, infelizmente, brotaram em ambas, mas também mereceram o repúdio dos segmentos mais lúcidos
de cada uma delas. Recordo Albert Camus e
sua visão de que, "para fazer triunfar um princípio, há um princípio que é preciso derrubar". Que saibamos fazer eco ao grande escritor. Contra o medo e o irracionalismo, façamos prosperar o diálogo e a cooperação, valores que sabemos inscritos em todas as civilizações.
É preciso reagir com determinação ao terrorismo, mas ao mesmo tempo enfrentar,
com igual vigor, as causas profundas e imediatas de conflito, de instabilidade, de desigualdade. Não podemos mais suportar a carga de sofrimento, violência e intolerância que
há muito impede que se chegue a uma solução justa e duradoura para o conflito entre israelenses e palestinos.
Assim como apoiou em 1948 a criação do
Estado de Israel, o Brasil hoje reclama passos
concretos para a constituição de um Estado
Palestino democrático, coeso e economicamente viável. O direito à autodeterminação
do povo palestino e o respeito à existência de
Israel como Estado soberano, livre e seguro
são essenciais para que o Oriente Médio possa
reconstruir seu futuro em paz.
Países como a França e o Brasil estão mais
do que credenciados e assumirem um papel
ativo na modulação de uma ordem mais imune ao dogmatismo e à exclusão. Por história e
formação, somos fadados ao universalismo.
Se existe uma afinidade clara entre o Quai
D'Orsay e o Itamaraty, é exatamente a convicção de que o respeito à diversidade é condição
sem a qual não se realiza o diálogo.
Este é o método de nossa ação externa,
uma ação que se distingue pela variedade de
interlocutores. Na França e no Brasil, a votação universalista tem sido explorada a partir
da integração com os vizinhos. O Mercosul é
tão importante para o Brasil quanto a União
Européia o é para a França.
Jean Monnet se dizia satisfeito em perceber
que a integração européia não se amparava na
letra de tratados, mas na mente das pessoas.
Diria o mesmo do Mercosul, que deixou de
ser projeto de governos para se transformar
em projeto de sociedades. Acima dos obstáculos ocasionais, que são comuns sempre que
se busca a integração de vontades soberanas,
está a determinação de avançar uma experiência de grande importância para a região e
seu intercâmbio com o mundo.
Acredito na associação entre o Mercosul e a
União Européia, que pode vir a ser um dos
padrões de convivência que esperamos prevaleçam após a crise. Em quaisquer circunstâncias, o Brasil buscará associar-se à União
Européia e conta com o apoio da França.
Cumpre estar atento ao princípio da equidade. Aos ganhos de um lado deve corresponder o atendimento às expectativas do outro.
O interesse básico do Mercosul é de maior
acesso ao mercado agrícola comum e de poder competir em igualdade de condições em
terceiros mercados. A proposta do Mercosul
acaba de ser apresentada. Acredito ser uma
boa proposta. Mas estou convencido de que
podemos fazer mais, e convido os empresários e os negociadores dos dois lados a fazerem um esforço adicional para incluir um
universo mais amplo de produtos.
Com efeito, devemos dar um sinal claro de
que estamos dispostos a avançar rápido na
construção de um acordo de livre comércio.
Se acreditamos de fato no livre comércio, cabe
ao Mercosul e à União Européia a adoção de
medidas efetivas contra o protecionismo. Entretanto, o preço desta mudança não deveria
ser pago apenas pela França, uma vez que outros países mais poderosos continuam a subsidiar fortemente seus produtos agrícolas.
A convergência de nossos blocos contribuirá para que a próxima rodada da Organização Mundial do Comércio satisfaça aos anseios de todos, de forma equitativa. A ameaça
de um novo ciclo recessivo é demasiado presente para que se desperdice a oportunidade
de relançar em Doha as negociações comerciais multilaterais.
É também hora de controlar a instabilidade
dos fluxos financeiros. Se o mercado é o instrumento mais eficiente para a geração de riqueza, é preciso impor limites a suas distorções e abusos. Ousemos, se necessário, tributar o movimento dos capitais para assegurar
liquidez às economias emergentes e recursos
para combater a pobreza, a fome e as doenças
nos países mais carentes.
Dizia Montesquieu que o comércio tem a
virtude de civilizar os costumes políticos, inibindo a discórdia, favorecendo a moderação.
Falava do "doce comércio". Oxalá a economia
do futuro proporcione esse importante ganho
adicional. Não nos esqueçamos, de todo modo, que o fortalecimento da democracia constitui um fim em si mesmo, inclusive no plano
das relações entre os Estados. Ordem alguma
se revelará legítima sem o concurso daqueles
a que se destina. Para não falar de sua eficácia,
que será sempre função do consentimento
das partes.
Assim se justifica o pleito pela democratização dos mecanismos decisórios de poder, o
que inclui o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que deve ser ampliado e reformado para melhor refletir a realidade em que
hoje vivemos. As instituições da governança
internacional foram concebidas para reger o
mundo da Guerra Fria. É chegado o momento de atualizar essas instituições às circunstâncias do século 21.
Neste começo de século, enfrentamos de
novo a oposição entre barbárie e civilização.
A barbárie não é somente a covardia do terrorismo, mas também a intolerância ou a imposição de políticas unilaterais em escala planetária.
Não devemos permitir que a lógica do medo substitua a lógica da liberdade, da participação, da racionalidade. A nova ordem não
pode prescindir tampouco do reforço da proteção dos direitos humanos. Ela tampouco
pode prescindir da proteção do meio ambiente. Daí nosso apoio vigoroso ao Protocolo de
Kyoto.
O Brasil está concluindo os procedimentos
necessários à ratificação do estatuto do Tribunal Penal Internacional. São instrumentos como o TPI que revigoram nossa confiança na
cooperação entre os Estados. E até nos fazem
acreditar na possibilidade de um novo contrato internacional.
Um contrato que atenda à segurança dos
Estados e também promova o desenvolvimento sustentável, a democracia e os direitos
humanos. Um contrato que atualize a utopia
da fraternidade entre os povos, que tanto mobilizou esta Assembléia em seus primeiros
dias. Um contrato que dissemine uma nova
ética.
Se é certo que a globalização aproxima
mercados e sistemas produtivos, não é menos
certo que a paz no mundo depende da difusão
de uma ética da solidariedade. O Brasil já demonstrou sua solidariedade ao reduzir, quase
anulando, as dívidas de vários países pobres
tanto da África quanto da América Latina. Se
o Brasil já pôde fazê-lo, por que outros países
mais desenvolvidos não poderiam fazer o
mesmo? Esta solidariedade não dispensa a
ação dos Estados. Antes a exige.
Sabemos que o interesse geral pode reclamar restrições à soberania estatal, mas a soberania popular não prospera sem presença ainda maior dos Estados nacionais. O pluralismo
cultural também requer que as sociedades organizadas em Estados ativos e radicalmente
democráticos, que respeitem o sentimento e
autonomia dos povos. Por salutar que seja a
intervenção direta de novos atores no debate
internacional, as possibilidades reais de mudanças passam pela mediação dos Estados.
O contrato que antevejo se dá, portanto,
entre Estados. Mas Estados que não sufoquem as nações, senão que sejam delas súditos. Isto se impõe sobretudo nos momentos
de crise, que podem ser fecundos. O paradoxo
das situações de crises é exatamente o de criar
ambiente propício à revisão de paradigmas.
Expandem-se as fronteiras do possível. Lutemos por uma nova ordem mundial que reflita
um contrato entre nações realmente livres, e
não apenas o predomínio de uns Estados sobre outros, de uns mercados sobre outros.
Mas isto exige ousadia. Em idéias e atos. Esta é a tradição da França e, na medida de suas
possibilidades, também a do Brasil. É mais do
que oportuno que saibamos intensificar ainda mais nosso diálogo, um diálogo de séculos,
pleno de realizações, mas também de promessas não concretizadas. Que o nosso diálogo neste início de século se nutra de esperanças, mas nos leve à construção de um caminho comum e venturoso, é o meu desejo.
Agradeço, uma vez mais, em nome de meu
país, a gentileza do convite para ocupar esta
nobre tribuna. Muito obrigado."
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