São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 2006

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JANIO DE FREITAS

Os pequenos das alturas

Hediondo, essa palavra horrível, é muito insuficiente para o crime de incendiar um ônibus com passageiros

DIZEM QUE amanhã começa um governo do Brasil. Dizem até, embora muito menos, que amanhã começa um novo governo do Brasil. Deve ser coisa de Brasília, capital da boataria. Como só os ingênuos e os tolos sacam sobre o futuro, aconselha-se a admitir que até possa haver, em alguma altura dos próximos anos, um governo federal ou algo parecido. Mas nada indica, nesse sentido, mais do que uma possibilidade quase imperceptível.
Por que há de alguém querer a Presidência se não é para presidir, não é para governar? Nos anos de Médici e de Figueiredo ainda se tinha uma resposta, sangrenta, ressoando gritos de dor, em muitos casos mortalmente silenciada, mas era uma resposta: eles se prestavam a facilitar a permanência da ditadura dando-lhe a conveniente figuração presidencial. E Collor, Fernando Henrique, Lula? Seria só para ver suas fotos com pose de presidente, ou para dar um salto na economia pessoal e doméstica, ou só para pôr na bolsa de uns quantos pobres o que se entregava nas portas das igrejas, e depois nada mais?
Os cargos muito altos têm a propriedade de atrair os pequenos.

Pior a pior
Os "especialistas" -essa nova espécie que em geral só tem a especialidade de passar por especialistas, multiplicados pelos jornais se rechearem mais facilmente- já de manhã distribuíam explicações absolutas, e variadas, para o ataque desfechado pela bandidagem no Rio e municípios vizinhos. Apesar de tanta sabedoria disponível, até o momento de sábado em que faço esta nota não há, nem mesmo por parte da polícia, explicação convincente para a motivação de outra onda repentina de ferocidade. Como ouvi de um jurista, hediondo, essa palavra horrível, é muito insuficiente para o crime de incendiar um ônibus com passageiros.
A versão de mais sucesso, adotada por parte das autoridades e dos "especialistas", é a de represália da bandidagem às milícias que, pagas por favelados, expulsam as quadrilhas de certas favelas. Nesse caso, por que os bandidos incendiariam ônibus na Baixada Fluminense e matariam PM na Lagoa Rodrigo de Freitas, em vez de fazer os ataques, tão mais eficazes, às próprias milícias, muito mais fracas em número e em armas do que a polícia agora provocada?
Mais um pouco: se a a onda criminosa responde à expulsão das quadrilhas por milícias, por que as milícias bastam para expulsá-las e a polícia não o faz?
Aguardem-se as explicações da imprensa e seus "especialistas". Até lá, leitor, e depois também, satisfaça-se com sua própria explicação: a criminalidade sobe, sem cessar, novos estágios de ferocidade e amplitude, mas contra ela tudo permanece na mesma -a precariedade da seleção e da formação policial, a falta de políticas preventivas, os métodos fracassadamente repressivos e, claro, boa parte da legislação, produzida pelos melhores propósitos para épocas de agressividade ainda não bestial.

A mensagem
As últimas palavras do italiano Piergorgio Welby, há nove anos em imobilidade total e implorando por seu direito de morrer (comunicava-se por ruídos interpretados em computador), são o que de melhor foi dito em 2006 contra toda intolerância religiosa: "Obrigado, obrigado, obrigado". E, desligada a respiração artificial, morreu sem mais sofrimento.
Se o mundo pensasse nele em 2007, a vida e a morte se tornariam muito melhores.


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