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A ciência transcendental
Livro critica a visão triunfalista da biologia, defendida por pesquisadores e mídia
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não fossem as impecáveis credenciais
de seu autor, "Promessas do Genoma" seria talvez
indiciado como um ataque solerte à ciência, mais uma tentativa de desacreditar a razão;
quem sabe até Marcelo Leite
não seria um agente provocador dos criacionistas? Deus nos
livre.
Se o livro for lido assim, será
uma pena. Pois, muito ao contrário, ao dissecar o imaginário
articulado em torno do Projeto
Genoma Humano (PGH), da
biotecnologia e da idéia de determinismo (genético ou tecnológico), ele presta um serviço precioso à ciência.
Presta também um serviço à
profissão que é a sua, quando,
ao dar um puxão de orelhas nos
cientistas que difundem uma
visão grosseiramente triunfalista da biologia, mostra como
isso não acontece sem a complacência ativa da mídia especializada.
Esse papel pouco brilhante
do jornalismo científico na história do PGH se explica não
apenas pela busca do sensacional mas por algo mais profundo, uma credulidade de princípio. "É nos conceitos biológicos
que residem os últimos vestígios de transcendência no pensamento moderno." A observação, feita por Claude Lévi-Strauss em 1947, quando mal
se despertava do pesadelo nazista, continua pertinente em
2007.
Primeiramente, porque a
tentação (ou promessa) do eugenismo, a que a biologia moderna jamais esteve de todo
imune, só fez ficar mais sedutora (mais circunspecta, mais
operacional) com a hegemonia
alcançada pela biologia molecular nos últimos 30 anos.
Em segundo lugar porque,
uma vez as teorias da física tendo se tornado intuitivamente
opacas, coube à biologia molecular assumir o papel de ciência prototípica para o "público", vasta categoria que inclui
os governantes, as agências financiadoras, a imprensa e a
academia. O poderoso dispositivo do determinismo, aperfeiçoado pela física clássica e convertido (ao cabo de um processo histórico não-determinista)
em signo supremo de cientificidade, passou às mãos da biologia molecular.
Últimos vestígios
É aqui, como mostra Leite,
que está o xis do problema. Pois
não é na biologia enquanto tal,
mas no determinismo enquanto esquema epistêmico, que residem os "últimos vestígios da
transcendência" na modernidade. Como pode ser verificado, aliás, toda vez que outras
transcendências contemporâneas são estigmatizadas como
"pré-modernas", "tradicionalistas" ou "fundamentalistas".
O Projeto do Genoma Humano, a encarnação tecnocientífica dessa categoria moderna da
transcendência, foi vendido (literalmente) como marcando o
início da ascensão para o milênio biológico, quando a humanidade se tornaria finalmente
transparente para si mesma: do
"Gênesis" ao gene, cumprir-se-ia enfim o destino paradoxal da
espécie, o de controlar as condições de sua própria criação;
pouco importa, ao que parece,
que tal desiderato bata de frente com a teoria darwiniana.
A chave
Não é certamente por acaso
que o título do livro associe o
PGH à noção de "promessa",
cara à soteriologia cristã; a biologia encontra-se muito próxima, do ponto de vista de uma
topologia política das idéias, da
religião.
O "Dogma Central", o "Livro
da Vida", o "Código-Mestre"
não fazem má figura ao lado dos
personagens mobilizados pelo
criacionismo, o mais recente
tradicionalismo secretado pelo
sistema sociocultural que gerou e sustenta a "Big Science".
É curioso que a primeira declaração do cardeal Ratzinger
ao assumir o trono de são Pedro
[tornando-se o papa Bento 16]
tenha sido uma diatribe contra
o relativismo, a diabólica arma
de desconstrução em massa de
posse dos libertinos, dos
nietzschianos, dos construcionistas, dos pós-modernos e demais servos do mal, que são, como se sabe, uma legião.
Quanto a isso, Dawkins e
Dennett, dois dos mais ferozes
"buldogues de Darwin" em atividade, concordariam entusiasticamente com o "rottweiler de Deus".
Imagem da biologia
Mas, felizmente, a biologia
"para dentro" é muito diferente
da biologia "para fora". A contribuição fundamental do livro
de Leite, além de sua implacável dissecação de algo que só
pode ser chamado de propaganda científico-midiática enganosa, consiste em acertar o
passo entre a imagem pública
da biologia e o que está acontecendo dentro dela, e que é uma
lenta, gradual, mas firme convergência entre a biologia experimental e certas teses críticas
desde cedo dirigidas ao PGH e a
seu substrato metafísico-dualista por pensadores como R.
Lewontin, S. Oyama, S.J. Gould
e E.F. Keller, entre outros.
O autor mostra como a dificultosa coabitação entre uma
genética molecular constitucionalmente pré-formacionista e a revolucionária teoria da
evolução darwiniana começa a
ruir, com a falência da imagística gerencial-informacional (código, programa, controle), o
abandono progressivo da dicotomia gene/ambiente e a emergência de uma biologia do desenvolvimento, radicalmente
imanentista, ateleológica e
não-determinista.
Uma biologia, enfim, que não
está mais sob o controle da
idéia de controle. Quem sabe
assim poderemos deixar de temer que a sigla MBA venha um
dia a significar "Master of Biological Administration".
EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO é antropólogo no Museu Nacional, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
PROMESSAS DO GENOMA
Autor: Marcelo Leite
Editora: Unesp (tel. 0/xx/11/3242-7171)
Quanto: R$ 30,00 (248 págs.)
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