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Sem ônus, sem prova
Em coletânea de artigos, cientistas expõem teses nas quais acreditam, mas que admitem não podem provar
Nasa
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O célebre "Rosto em Marte", formação rochosa na região de Cydonia que já foi tida como evidência de civilização marciana
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
O que move legiões
de cientistas a trabalhar numa empreitada de pesquisa baseada em
especulação? Enquanto a comunidade de psicólogos cognitivos se divide entre times que
trabalham para tentar provar
diferentes teorias da consciência, centenas de físicos dedicam suas vidas a uma teoria
(ainda) insondável, segundo a
qual os componentes fundamentais da matéria e da energia não são partículas mas sim
pequenas cordas vibrando.
É à especulação, afinal, que
os cientistas se apegam enquanto suas ferramentas não
conseguem produzir as evidências de que precisam. Mas, apesar de a divagação livre ser uma
parte essencial da atividade
científica empírica -é preciso
especular algo para poder testar-, pedir a um cientista para
pisar a fronteira nebulosa entre o palpite e a certeza é sempre delicado. Muitas vezes isso
é mesmo um tabu.
Esse é o tema escolhido pelo
escritor John Brockman para
reunir a coletânea de artigos
"What We Believe But Cannot
Prove" (Aquilo em que Acreditamos Mas Não Podemos Provar), lançada no ano passado.
Brockman é um dos mentores do site Edge (www.edge.org), um fórum com textos diários que reúne pelo menos uma
centena dos intelectuais mais
respeitados dos Estados Unidos e de outros países. No projeto, uma comunidade de cientistas que inclui vários Prêmios
Nobel e autores de divulgação
científica premiados debatem o
destino da ciência.
Pode-se dizer que o Edge,
que completa dez anos agora, é
um espaço "seguro" para cutucar a casa de marimbondos da
especulação. Lá se pode ler artigos livres, isentos do ônus da
prova e de notas bibliográficas,
sem o risco de encontrar relatos sobre discos voadores ou
teorias quânticas da mente.
Em 2005, Brockman enviou
a vários intelectuais (a maioria
cientistas) uma proposta coletiva de artigo formulada pelo
psicólogo Nicholas Humphrey.
O convite dizia: "Grandes mentes às vezes podem adivinhar a
verdade antes de terem evidências ou argumentos para tal.
(Diderot chamou isso de "esprit
de divination".) O que você
acredita que seja verdade, mesmo que não possa provar?"
Mais de uma centena de convidados ilustres respondeu, e o
projeto resultou no livro lançado em 2006. Os artigos discutem problemas das áreas da
ciência de ponta que têm recebido mais atenção -genética,
evolução, ciência da informação, neurofisiologia, psicologia
e física- além da filosofia que
incendeia todas elas, é claro.
Entropia acadêmica
Se alguém esperava que o
ataque de um exército de pesos-pesados acadêmicos poderá determinar à força o futuro
da ciência, porém, nada pode
ser mais desorientador do que a
coletânea de Brockman.
No campo da teoria da mente, enquanto um artigo do cientista cognitivo Joseph Ledoux
defende que a consciência existe em animais tidos como irracionais, outro, de Humphrey
(um dos idealizadores do livro)
especula que ela simplesmente
não existe -nem em humanos.
"É um truque enganador, projetado para nos fazer pensar
que estamos na presença de um
mistério enganador", diz. Será?
Em alguns artigos, autores
relatam decepção com o ceticismo de colegas. É o caso de
Susan Blackmore, da Universidade de Bristol, que diz ter atingido um estado da mente no
qual se livrou da sensação de
agir por livre arbítrio. "Mas o
que acontece? As pessoas dizem que eu estou mentindo!".
Crenças como a de Blackmore, talvez não-prováveis já em
sua formulação, também permeiam a física. Carlo Rovelli,
do Centro de Física Teórica de
Marselha, diz que o tempo é
uma entidade que não existe,
"reflexo da nossa ignorância".
Demonstrações de humildade no livro, faça-se justiça, vêm
quase todas da física. O teórico
israelense Haim Harari, por
exemplo, acredita que o elétron
e outras partículas fundamentais não são "elementares" e
devem ser quebráveis. "O átomo, o núcleo atômico e o próton eram considerados elementares (...) mas foram subdivididos mais tarde", diz. "Como
podemos ser arrogantes a ponto de excluir a possibilidade de
que isso aconteça de novo?"
"What We Believe But Cannot Prove", afinal, não é uma
obra que indique alguma tendência geral da história da ciência para o século 21. Mas é um
bom panorama sobre as questões que hoje tiram o sono de
cientistas de primeira linha.
LIVRO - "What We Believe But
Cannot Prove"
John Brockman (org.); Harper Perennial; 252 págs.
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