São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2000

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+ ciência
Intuição do conceito de número, fundamento da aritmética, está ligada a uma base biológica universal, mas nada indica que alguns possuam um órgão calculador maior
O cérebro matemático

Stanislas Dehaene
especial para o "Le Monde"

O cérebro dos matemáticos fascina as pessoas. Por meio de que mecanismos um tecido feito de neurônios e sinapses, uma confusão de neurotransmissores, é capaz de "transformar café em teoremas"? Que representações mentais e que arquiteturas neuronais proporcionam ao cérebro humano, e apenas a ele, acesso às verdades matemáticas? De tempos em tempos algumas pessoas afirmam ter encontrado a resposta no cérebro do mais lendário dos sábios do século 20, Albert Einstein. Ainda durante sua vida, o grande físico era solicitado para toda espécie de experimentos, que suscitavam comentários divertidos de Roland Barthes: "Uma imagem o mostra deitado, com a cabeça coberta de fios elétricos. Suas ondas cerebrais eram registradas enquanto lhe pediam que pensasse na relatividade". Mais tarde o precioso encéfalo de Einstein seria preservado, fotografado, etiquetado, recortado, perdido e reencontrado. Periodicamente, é retirado de sua redoma para possibilitar novas revelações. Em 1985, Marian Diamond, da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), reportou ter constatado na região parietal do córtex de Einstein uma densidade mais alta das células gliais, que constituem o substrato dos neurônios corticais. Em 1999, Sandra Witelson, da Universidade McMaster, em Ontário (Canadá), afirmou ter identificado, mais de 40 anos após a morte do físico, uma anomalia macroscópica de sua anatomia cerebral: seus lobos parietais seriam inchados e seus sulcos seriam tão profundamente desviados do traçado normal que uma região cortical inteira estaria ausente. Eu me incluo entre os muitos que consideram anedóticas e prematuras essas pesquisas que pretendem localizar a origem da genialidade em alguns centímetros cúbicos de córtex cerebral. Apesar dos avanços espetaculares que já fizeram, as neurociências cognitivas ainda não chegaram ao ponto de conseguir analisar o substrato neural de variações individuais tão sutis quanto as que distinguem um Prêmio Nobel de um físico menor. Por outro lado, já têm condições de começar a explorar o que possuem em comum todos os cérebros capazes de entender matemática.

Números inteiros
Em última análise, como diz Jean-Pierre Changeux, "os objetos matemáticos se identificam com estados físicos de nosso cérebro, de tal maneira que, em princípio, deveríamos ser capazes de observá-los de maneira externa, com a ajuda de métodos de criação de imagens cerebrais". De fato, os novos métodos para produção de imagens por ressonância magnética permitem abordar empiricamente a representação cerebral dos mais simples objetos matemáticos, aqueles compartilhados pelo conjunto da humanidade: os números inteiros pequenos. Com a atenção voltada às abstrações, alguns matemáticos podem não enxergar nisso mais que um trabalho de interesse marginal sobre objetos demasiado simples, que não fazem mais parte do campo da pesquisa matemática. Entretanto, isso seria esquecer que os números integram as unidades fundamentais, os alicerces sem os quais o edifício da matemática jamais seria erguido. A questão dos fundamentos da aritmética ocupa lugar central na filosofia da matemática, desde Platão e Descartes até Bertrand Russell ou David Hilbert. Nossas pesquisas sugerem que um dos fundamentos da aritmética, a intuição do conceito de número, tem sua origem na arquitetura do cérebro, que, desde o nascimento, representa espontaneamente esse parâmetro essencial do mundo físico. A intuição do número está tão profundamente enraizada em nossos sulcos parietais que nem sequer nos damos conta de sua importância. Compreendemos sem esforço que 3 é menor do que 5. Parece-nos tão evidente que 2 mais 2 são 4 que nem nos interrogamos sobre o aparelho cerebral que está na origem dessa intuição. Paradoxalmente, só tomamos consciência de sua importância quando ele se deteriora. Há cerca de 80 anos os neurologistas sabem que uma lesão cerebral na região parietal, tanto na idade adulta quanto na primeira infância, pode provocar a incapacidade total de compreender o significado dos números. Em certos casos, o déficit é tão global que mesmo leitura e escrita de números se tornam impossíveis, e esses objetos repentinamente tornam-se tão destituídos de sentido que o paciente é incapaz de fazer uso deles. Outros pacientes podem conservar uma boa capacidade de leitura e escrita dos números e até mesmo de recitar a tabuada. Entretanto, mesmo que se lembrem das palavras "3 vezes 9 são 27", já não compreendem seu sentido. Laurent Cohen e eu examinamos, no hospital de La Pitié-Salpêtrière, um homem de 60 anos que tivera o infortúnio de sofrer um acidente vascular na região parietal direita. Ele apresentava tanta dificuldade em fazer subtrações que tivemos que interromper o teste quando ele não conseguiu fazer a conta 3 menos 1 (a resposta que deu foi 7). Suas dificuldades não tinham ligação com algum modo especial de apresentação, por escrito ou por via oral, com resposta em voz alta ou selecionada por múltipla escolha. Ele fracassava também nos testes de comparação. Disse que 6 era menor do que 5. Num teste de bissecção, considerou natural que o número entre 2 e 4 fosse 6, "porque 2-4-6". Compreendia o que lhe pedíamos, já que soube dizer que dia da semana se encaixa entre terça-feira e quinta-feira e que letra cai entre B e D. Apenas o campo dos números parecia ter sido atingido de maneira dramática.

Dislexia e discalculia
Hoje dispomos de várias observações semelhantes com pacientes de todas as idades e países. Todas indicam que as lesões da região parietal se fazem acompanhar de problemas graves na intuição de quantidades -e, ao que parece, isso se aplica também às crianças muito pequenas. A discalculia do desenvolvimento é um problema de aritmética comparável à dislexia, na medida em que afeta uma parcela importante das crianças (entre 3% e 6%, segundo as poucas pesquisas epidemiológicas disponíveis). Pelo menos algumas dessas crianças sofrem de déficits isolados de aritmética comparáveis aos observados em adultos após um acidente vascular.
Outro caso de discalculia do desenvolvimento examinado recentemente com espectroscopia por ressonância magnética mostra uma anomalia focal do metabolismo, exatamente onde postulamos que se situam os circuitos neuronais da compreensão das quantidades: a região parietal inferior. Parece que, muito antes do nascimento, a migração dos neurônios do córtex parietal foi anormal. Determinadas doenças genéticas -mas também outros fatores, tais como o nascimento prematuro ou a exposição ao álcool durante a gravidez- parecem favorecer as disfunções cerebrais precoces.
A matemática já foi vista como construtor cultural fundamentado na invenção de símbolos e regras formais, ou, ainda, como linguagem universal para descrever a estrutura do universo. Mas essa linguagem só assume sentido porque nosso cérebro é dotado, desde o nascimento, de circuitos neuronais capazes de apreender a estrutura intuitiva do domínio que vai tornar-se aquele da matemática. Se a matemática de alto nível se constrói graças à linguagem e à educação, suas bases mais elementares -conceitos de número, de espaço, de tempo, de operação etc.- devem ser buscadas na própria organização do cérebro.
A existência de uma base biológica universal do sentido dos números não implica, de maneira alguma, que ela apresente variações anormais entre os superdotados em matemática. Se existem déficits autênticos de intuição numérica, nada, por enquanto, indica que na população normal algumas pessoas nasceriam dotadas de um "cérebro matemático" maior que o de outras. Pelo contrário: tudo leva a crer que a intuição numérica faz parte do patrimônio genético de todos, mas que pode se expandir, em graus variáveis, segundo o trabalho e a paixão que a ela dedicamos.
Pesquisas mostram que as estratégias educativas européias, americanas ou asiáticas exercem um impacto radical sobre os índices de aprovação dos estudantes nos mesmos testes. As biografias dos maiores matemáticos indicam que estudaram e refletiram sobre o assunto de maneira intensa e cotidiana, muitas vezes desde uma idade muito precoce, antes de ver seu talento florescer. Talvez o matemático de talento seja aquele que sabe, melhor do que outros, explorar as muitas intuições que o cérebro projeta no mundo.


Stanislas Dehaene é diretor de pesquisas do Instituto Nacional da Saúde e Pesquisas Médicas (Inserm) da França e autor do livro "La Bosse des Maths" (O Calombo Matemático)
Tradução de Clara Allain


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