UOL


São Paulo, sexta-feira, 02 de maio de 2003

Próximo Texto | Índice

BIOTECNOLOGIA

Produção de gameta fora do corpo de uma fêmea é inédita; descoberta deve impulsionar terapia celular

Célula-tronco vira óvulo em placa de vidro

Divulgação K. Hübner e H.R. Schöler/Science
Óvulos obtidos de células-tronco embrionárias de camundongo


MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

A biotecnologia reprodutiva dá hoje um novo e surpreendente salto, com o anúncio da obtenção de oócitos (óvulos) de camundongo fora do corpo de uma fêmea, sobre uma placa de vidro, a partir de células-tronco embrionárias. Se a façanha vier a ser repetida com células humanas, como é provável, pode representar o fim do principal gargalo na pesquisa com células-tronco: a falta de óvulos humanos.
O anúncio partiu de um grupo da Universidade da Pensilvânia (EUA), liderado por Hans Schöler. O trabalho está sendo divulgado pela revista americana "Science" apenas eletronicamente (www.sciencexpress.org), sem data definida para sair na edição impressa -recurso em geral reservado a pesquisas de impacto.
"É muito importante", avalia Lygia da Veiga Pereira, 36, especialista em células-tronco da USP. "Nunca havia sido relatada [a produção" de gametas."
Pereira se refere às células que o grupo de Schöler foi capaz de identificar na placa de vidro, por meio de marcação genética, depois que as células-tronco de roedores foram retiradas de seu meio de cultura tradicional. Quando cultivadas sobre um tapete de células nutrizes, ou alimentadoras (que os biólogos brasileiros costumam designar em inglês, mesmo: "mouse feeder cells"), células-tronco de camundongo ou humanas não se diferenciam.
Ao serem transferidas para uma placa sem esse tapete celular, as células-tronco começam a se diferenciar. Até grupos de células pulsantes podem aparecer, num arremedo de coração.
O feito de Schöler foi demonstrar que no meio dessa cacofonia celular havia óvulos, alguns até cercados de células do tipo que os acompanha no ovário de uma fêmea de carne e osso. O achado comprova ainda que células-tronco, mais que pluripotentes, são totipotentes (permanecem capazes de gerar qualquer tipo celular, inclusive células germinativas).

Terapias celulares
Células-tronco representam a esperança da hora em biomedicina, agora que a conclusão dos megaprojetos de sequenciamento de genomas deixou claro que a prometida revolução molecular da saúde vai demorar várias décadas.
Essas células poderiam, em teoria, ser usadas em terapias para semear tecidos doentes, como no caso de um cérebro afetado pelo mal de Parkinson, reativando uma linha de produção de células saudáveis (veja glossário). Para evitar rejeição pelo corpo, o ideal é usar células com a informação genética do próprio paciente.
Como as células-tronco adultas que podem ser obtidas do paciente oferecem certas limitações, os biomédicos apostam nas células-tronco embrionárias. Para que sejam compatíveis com o paciente, no entanto, elas precisam ser derivadas pela técnica da transferência de núcleo de células somáticas (ou SCNT, na abreviação corrente, em inglês).
É o mesmo procedimento de clonagem usado para fabricar a ovelha Dolly, mas no caso costuma ser chamado de clonagem terapêutica. Seu objetivo não é produzir um embrião e, dele, uma nova pessoa (ou animal), mas células-tronco embrionárias que possam ser empregadas na pesquisa de terapias celulares.
A técnica demanda um fornecimento contínuo de óvulos, dos quais cada núcleo é retirado para fusão com outro núcleo, de uma célula somática do organismo adulto que se queira pesquisar ou, um dia, talvez curar. Entre as objeções éticas levantadas contra o procedimento, além da "destruição" de embriões, está o provável incentivo a um comércio paralelo de óvulos humanos.
"De longe a maior preocupação é que mulheres tenham de doar oócitos para SCNT", afirmou Schöler, 50, por e-mail. "Agora é possível gerar oócitos para SCNT sem mulheres envolvidas. Mas é claro que isso significa que primeiro é preciso ver se oócitos humanos podem ser gerados [da mesma maneira]."

Células de George W. Bush
Schöler planeja testar a possibilidade de produzir óvulos com as poucas dezenas de linhagens de células-tronco embrionárias humanas reconhecidas pelo governo norte-americano em 2001.
"Para mim, a questão mais entusiasmante é que agora podemos estudar melhor os oócitos e o modo pelo qual eles reprogramam um núcleo [de célula adulta]. De um ponto de vista prático, quero ver se eles [óvulos obtidos de células-tronco embrionárias] podem ser usados para SCNT."


Próximo Texto: Glossário
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.