São Paulo, quinta-feira, 03 de março de 2005

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ARTIGO

Conseguiremos recuperar o tempo perdido?

MAYANA ZATZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde o início de 2004, as notícias sobre células-tronco têm sido animadoras: pacientes são tratados, pesquisadores coreanos têm sucesso na clonagem terapêutica, células-tronco embrionárias formam neurônios. Enquanto a ciência avança a passos gigantescos no exterior, o Brasil luta para conseguir iniciar pesquisas com células-tronco embrionárias. Conseguiremos recuperar o tempo perdido? Quais são as perspectivas? Quais são as dúvidas? O que precisa ser desmistificado? Por que as células-tronco embrionárias são tão importantes?
Somente as células-tronco embrionárias são pluripotentes, isto é, têm a capacidade de produzir todos os 216 tecidos do nosso corpo. O escocês Ian Wilmut, criador da ovelha Dolly, usando a técnica de clonagem terapêutica, vai gerar linhagens de células-tronco embrionárias obtidas de pacientes com doenças neuromusculares letais. Elas serão direcionadas para produzir neurônios, o que permitirá entender por que essas células morrem nos pacientes.
Além disso, ele poderá estudar o efeito de diferentes drogas em culturas de neurônios ao invés de usar cobaias humanas. E, mais do que tudo, essas pesquisas poderão nos ensinar como programar as células-tronco embrionárias ou talvez reprogramar células-tronco adultas para produzir células nervosas -ou qualquer outra- antes de injetá-las nos pacientes.
A esperança é que inúmeras condições, muitas delas letais na infância ou no início da idade adulta, tais como algumas doenças neuromusculares, diabetes, mal de Parkinson, lesões de medula possam ser tratadas pela substituição ou correção de células ou tecidos defeituosos.
A terapia celular com células-tronco representa um avanço gigantesco nas técnicas hoje existentes de transplante de órgãos. Se as pesquisas derem os resultados esperados, a expectativa é que no futuro seja possível fabricar tecidos e órgãos em quantidade suficiente para todos. Mas, para chegar lá, ainda temos inúmeros obstáculos a vencer.

Células adultas
Pesquisas com células-tronco adultas já foram iniciadas em pacientes cardíacos ou em outras doenças como esclerose múltipla, acidente vascular ou diabetes. Quais são as perspectivas e limitações? Temos células-tronco adultas em vários tecidos: sangue, medula óssea, fígado e cordão umbilical. O transplante de células-tronco retiradas da medula óssea e mais recentemente do cordão umbilical e da placenta de doadores compatíveis para tratar leucemia é um exemplo de terapia celular de grande sucesso.
Entretanto, o tratamento de lesões cardíacas ou a recuperação do tecido nervoso em pessoas que sofreram acidentes vasculares com células-tronco obtidas da própria pessoa, que corresponde a um auto-transplante, ainda são experimentais. As questões a serem respondidas são: a quantidade de células-tronco retiradas da medula óssea de um indivíduo adulto é suficiente? Que tecidos essas células são realmente capazes de produzir: células cardíacas, células nervosas ou somente novos vasos sanguíneos? Qual é a idade das células-tronco de um indivíduo mais idoso? Será que já não são células velhas, com pouca capacidade de regeneração?
A má notícia é que essa técnica de auto-transplante não serve para portadores de doenças genéticas (3% da população, mais de 5 milhões de brasileiros), pois o defeito está presente em todas as suas células. Para essas pessoas será necessário o uso de células-tronco de outras fontes.
Utilizar células-tronco de embriões congelados equivale a um aborto, afirmam alguns grupos religiosos. Definitivamente não! No aborto provocado, interrompe-se a vida de um feto que está dentro do útero da mãe. Já no caso de embriões congelados em um tubo de ensaio nas clínicas de fertilização, não há chance de vida se não houver introdução do embrião dentro do útero. Na prática, esses embriões ficam congelados por anos, tornam-se inviáveis e são descartados.
Do ponto de vista científico, a grande vantagem das células-tronco retiradas de um embrião congelado é que, até a fase de cento e poucas células, elas são pluripotentes. Já o feto quando abortado, geralmente com algumas semanas, já sofreu um processo de diferenciação: suas células não são mais pluripotentes. Portanto mesmo para os cientistas que não são contra o aborto, essas células não têm o mesmo potencial das células embrionárias.

Sistema nervoso
Não há consenso de quando a vida se inicia: para alguns no momento da fecundação, para outros no momento da implantação do embrião no útero ou quando o feto pode ter uma vida independente fora do útero materno. Mas existe um consenso que a vida termina quando cessa a atividade cerebral. Por isso, países que permitem as pesquisas com células-tronco embrionárias estabeleceram um limite de até 14 dias, pois até essa fase não existe vestígio de sistema nervoso no embrião.
A expectativa de um tratamento para inúmeros pacientes condenados deve estar acima de dogmas religiosos.


Mayana Zatz é professora titular de Genética Humana e Médica Coordenadora do Centro de estudos do Genoma Humano Presidente da Associação Brasileira de distrofia muscular, departamento de Biologia, Universidade de São Paulo


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