São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2006

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Tá tudo dominado

Advogada diz temer que, nos Estados Unidos, até as leis da natureza sejam enfim patenteadas

Associated Press
A patente do telégrafo, equipamento inventado por Samuel Morse no século 19 nos EUA, deu dor-de-cabeça a seu criador


EDUARDO GERAQUE
DA REPORTAGEM LOCAL

Pode parecer prosaico. Mas, se transportada para os dias de hoje, a discussão sobre se Albert Einstein teria o direito de ser o dono legal da famosa equação E=mc2 não só é pertinente como pode, inclusive, determinar até que ponto o avanço científico será engessado no futuro, por causa da cada vez maior febre de registro de patentes.
"Apesar de a lei ser clara-as pessoas não podem supor que seja possível patentear as regras da natureza -existe uma grande voracidade hoje pelos registros por parte dos próprios pesquisadores", disse à Folha a advogada Lori Andrews, diretora do Instituto para Ciência, Leis e Tecnologia de Illinois, nos Estados Unidos.
Uma espécie de guru de assuntos voltados para a biotecnologia e engenharia genética, com livros, artigos e aparições públicas na televisão, Andrews também é autora de um artigo publicado anteontem pela revista "Science". No texto, ela defende a tese de que, em muitos casos, as patentes travam o desenvolvimento científico.
O que, em tese, teria ocorrido no passado se Einstein obtivesse uma patente das suas descobertas ou mesmo se Isaac Newton tivesse a chance de ter se tornado dono da Lei da Gravidade. Com essas teorias privatizadas, explica Andrews, o avanço visto hoje no campo da física não teria ocorrido.
"A literatura científica que vem sendo publicada está incompleta", afirma. A advogada usa enquetes realizadas por outros pesquisadores este ano nos Estados Unidos para defender seu ponto de vista.
Um estudo publicado por David Blumenthal e colaboradores, feito com cientistas da área das ciências biológicas das cem universidades mais produtivas do país, é categórico. Segundo Andrews, 44% dos geneticistas e 32% dos demais pesquisadores afirmaram que normalmente escondem dados de estudos, em publicações ou em conversas com os colegas.

Segredo industrial
"Dessa amostra, 16% faz isso para preservar seu tema principal de estudo, 12% por causa de acordos sigilosos já feitos, 6% para ganhar tempo para o registro das patentes e 2% para proteger o valor comercial das possíveis descobertas", explica a pesquisadora. "Isso impede totalmente o progresso científico", enfatiza Andrews.
Principalmente nos EUA, a discussão moderna sobre o que pode gerar uma patente ou não já chegou à Suprema Corte. Um dos casos mais emblemáticos, julgado em julho, ainda não terminou. De um lado está uma pequena empresa, o Metabolite Laboratories. De outro, a multinacional LabCorp (Laboratory Corporation).
O primeiro desenvolveu um teste para medir a quantidade de homocisteína (um tipo de aminoácido) no sangue humano. Se a a taxa estiver alta, isso significa que aquela pessoa está com deficiência em vitamina B no seu organismo.
A segunda passou a usar o teste depois que o Metabolite permitiu uma espécie de arrendamento da patente.
Algum tempo se passou até que a LabCorp fechou uma parceria com um terceiro grupo -e continuou usando o teste normalmente. Na Justiça, o Metabolite ganhou pelo menos até agora, e a tese de que o teste se baseava em uma relação natural (homocisteína versus deficiência de vitamina) não foi aceita pelo tribunal.
De acordo com Andrews, esse caso de julho pode ser visto mais com uma exceção do que uma regra. Apesar de a USPTO (o escritório de patentes dos EUA) e as instâncias jurídicas inferiores americanas não estarem levando muito em conta a importância de deixar livres as leis da natureza, quando os casos chegam à Suprema Corte a filosofia utilizada na maioria dos julgamentos tem sido bastante diferente.
"Nós precisamos mudar a mente dos cientistas e encorajar a troca de informações, se quisermos que o desenvolvimento científico ocorra", declara Andrews. A advogada já está preocupada, inclusive, com as futuras gerações.
"Uma pesquisa feita com mil estudantes de doutorado e pós-doutorado nos EUA, todos da área de ciências da vida, mostra os profundos desdobramentos que a falta de troca de informações hoje poderá ter."
Do total de entrevistados nessa outra pesquisa, 49% afirmaram que os "segredos de Estado" baixam a taxa de descobertas em seus laboratórios. Outros 33% acreditam ainda que esse processo está afetando de forma negativa sua rotina.
Se até mesmo Samuel Morse teve problemas com a patente do telégrafo em 1854, equipamento que ele inventou - na época ele queria uma proteção mais abrangente do que a que acabou recebendo -, a situação, daqui para frente, com toda a nova onda de descobertas em várias áreas do conhecimento, tende apenas a piorar.
Nas palavras de Andrews, há uma séries de questões delicadas relacionadas ao balanço que existe entre o conjunto de informações de conhecimento público e os direitos exclusivos sobre uma informação científica que deve estar legitimamente embutido em uma patente. Com a palavra, entre outros atores, os cientistas.


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