São Paulo, domingo, 03 de dezembro de 2006

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+ Marcelo Leite

Bíblia de araque


Se o genoma for o Livro da Vida, é obra de um copiador maluco


A pós o bombardeio de reportagens sobre o genoma humano, entre 2000 e 2004, popularizou-se a noção de que havia 99,9% de coincidência no DNA de duas pessoas. Esqueça isso. É muito mais complicado, como mostra mais um estudo, divulgado há pouco mais de uma semana: identidade e diferença não residem só nas seqüências de letras do DNA mas também no número de cópias dessas seqüências.
A façanha técnica e subversiva, subestimada pela imprensa não-especializada, coube ao grupo de Stephen Scherer, do Instituto Médico Howard Hughes (EUA). Deu margem, no último dia 23, a uma salva de quatro artigos nos periódicos "Nature", "Nature Genetics" e "Genome Research". O time descobriu que pelo menos 12% do genoma é afetado por um fenômeno antes tido por muito raro.
A versão canônica reza que cada pessoa tem duas cópias de cada um dos 20 mil ou 25 mil genes da espécie. Uma cópia está na metade do genoma herdada da mãe, outra na metade do pai. A presença de mais de duas cópias ficava na conta das anomalias, que estudos recentes associaram a problemas renais, Parkinson, Alzheimer e até suscetibilidade à Aids.
O estudo de Scherer analisou o DNA de 270 pessoas de ascendências asiática, africana e européia. Encontrou muito mais desvios do que esperava: deleções ou múltiplas cópias em trechos com até 250 mil letras que afetavam 2.900 genes conhecidos. Cada pessoa tem, em média, 70 dessas "variações no número de cópias" (CNVs, em inglês). Isso ajuda a explicar as discrepâncias entre os dois genomas humanos seqüenciados (soletrados) em 2001, pelo Projeto Genoma Humano (PGH) e pela empresa Celera.
Outros grupos já haviam comparado as duas seqüências do genoma, "mas encontraram tantas diferenças que a maioria atribuiu os resultados a erro", assinalou Scherer num comunicado do Howard Hughes. "Não conseguiam acreditar que as alterações que encontravam pudessem ser variantes entre as fontes de DNA em análise."
Thomas Kuhn ensinou que o saber convencional, em certa altura, passa a atrapalhar a correta interpretação dos dados empíricos. Parece ser esse o caso aqui -prepare-se, portanto, para um abalo no paradigma genético. Essa forma popular de pensamento determinista atribui apenas a seqüências de DNA toda e qualquer variação na saúde, no comportamento, na matéria-prima da seleção natural.
Tamanho fundamentalismo ajudou a pôr e manter de pé o bilionário PGH. Se o genoma fosse mesmo o Livro da Vida, como não se cansou de propalar James Watson (co-descobridor da estrutura em dupla hélice e primeiro diretor do projeto), o exemplar que toca a cada ser humano seria obra de um copiador maluco. Faltam páginas, outras aparecem duplicadas uma ou várias vezes, sentenças inteiras são cortadas, multiplicadas e coladas umas sobre as outras.
Pesquisas anteriores já haviam mostrado, de resto, que o calhamaço genético só tem utilidade para o organismo com rabiscos nas margens, orelhas e adesivos coloridos. No jargão dos biólogos moleculares, marcas "epigenéticas", um sistema de informação biográfica ou hereditária descasado da seqüência propriamente dita, mas fundamental para o desenvolvimento normal e a saúde do corpo.
Só falta cair a ficha para os leigos, que continuam a acreditar em DNA como destino. Os especialistas, porém, não se esforçam muito para desfazer o equívoco. Seria o mesmo que um vendedor de Bíblias alertar o cliente potencial de que elas não contêm toda a verdade para guiar a vida.

MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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