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Jornalista diz que a análise de risco favorável a produtos com DNA modificado não é
objetiva
DO COLUNISTA DA FOLHA
R
eza uma velha piada
que o bêbado procurava as chaves do
carro junto de um
poste, longe do bar.
Quando alguém lhe perguntou
por que não estendia a busca
para o restante do trajeto desde
o bar, respondeu: "Porque é
aqui que tem luz".
Denise Caruso talvez não seja a primeira a lembrar a anedota para iluminar os impasses
públicos sobre a segurança de
organismos transgênicos. Poucos, no entanto, se afastaram
tanto do poste oposto quanto a
jornalista, ao escrever o livro
"Intervention" (Intervenção).
Caruso encontrou a chave para
explicar a desconfiança do público com os organismos geneticamente modificados.
A chave se encontra na definição e no controle da noção de
risco, ou seja, daquilo que se
considera pertinente medir para avaliar a segurança dos
transgênicos. Para voltar à piada: sob qual poste empreender
a procura. A diferença com relação ao bêbado é que a improbabilidade de encontrar algo
decorre mais de astúcia do que
de embotamento das faculdades intelectuais.
Em 1992, as empresas americanas interessadas em lançar
transgênicos no mercado convenceram a poderosa FDA
(agência de alimentos e fármacos dos EUA) de que apenas a
composição tradicionalmente
analisada de seus produtos deveria ser objeto de investigação
de biossegurança. Se um tomate transgênico -como o Flavr
Savr, de 1994- fosse indistinguível do tomate convencional
pelos métodos usuais, seria licenciado de modo automático.
Nascia a doutrina da "equivalência substancial", cega para o
método de obtenção do produto (modificação genética).
Os transgênicos já chegaram
desregulamentados ao mercado americano. As empresas
fornecem voluntariamente informações sobre os novos produtos ao poder regulador e se
responsabilizam por sua segurança. Não só não precisam rotulá-los como não há meios de
fazê-lo, uma vez que são "substancialmente equivalentes" aos
congêneres "genericamente
considerados seguros".
É o paraíso da biotecnologia,
que a indústria tentou espalhar
pelo mundo. Deu certo, até demais, na Argentina. Na Europa,
não, pois o conceito de autoridades reguladoras andava baixo por lá, em razão de alguns
desastres. No Brasil, deu no beco sem saída da CTNBio. Reeditou, como farsa, a tentativa
de manter a aprovação de
transgênicos sob o controle de
quem já era favorável a eles.
Leia o que disse a respeito
dessa forma de controle exclusivo Dan Glickman, que chefiou o Departamento de Agricultura dos EUA na administração Clinton: "O que eu via
genericamente, no lado pró-biotecnologia, era a atitude de
que a tecnologia era boa e de
que era quase imoral dizer que
não era boa, porque ela iria resolver os problemas da raça humana, alimentar os famintos e
vestir os descamisados", afirmou numa entrevista recuperada por Caruso. "E havia um
bocado de dinheiro investido
nisso; se você fosse contra, era
um ludita, um estúpido."
Mais? "Este, francamente,
era o lado em que se achava o
nosso governo. Sem pensar,
nós havíamos tomado esse problema como uma questão de
comércio e que "eles", quem
quer que fossem "eles", queriam
manter nosso produto fora de
seu mercado", disse Glickman
na entrevista. "Você se sentia
como se fosse quase um alienígena, alguém desleal, por tentar manter uma visão aberta
acerca de algumas questões
que eram levantadas."
Caruso critica sem dó a promiscuidade entre regulados e
reguladores. Seu "modus operandi" é a sistemática desconsideração de possíveis efeitos
danosos do método de transformação usado.
Não há como investigar se
novos compostos capazes de
causar alergias surgem neste
ou naquele alimento transgênico, após a modificação genética, se a análise considera
só alergênicos conhecidos.
Inebriados com o poder autoconferido, biotecnólogos
dos dois lados do balcão denunciam como "não-científicas" e "ideológicas" as dúvidas e objeções surgidas fora
de sua repartição. Confundem a luz do poste com a luz
da razão. No Brasil são ardorosamente defendidos até pela SBPC e pela Academia Brasileira de Ciências, que deveriam representar a classe
científica como um todo.
A autora de "Interventions" revela que um dos documentos cruciais para abrir
os seus olhos foi produzido
em 1996 a pedido do Conselho Nacional de Pesquisa, ligado à academia de ciência
americana. Seu título: "Understanding Risk: Informing
Decisions in a Democratic
Society" (Entendendo risco:
Informando decisões numa
sociedade democrática).
Nele se afirma claramente,
relata, que a análise de risco
apresentada por especialistas
-como os de biossegurança-
como precisa e objetiva na
realidade é sempre eivada de
juízos de valor e considerações éticas ou políticas. Deveria, portanto, envolver muitos mais gente e especialidades do que são representadas
nas comissões "técnicas".
Caruso não se limita a denunciar as limitações do modelo predominante de avaliação de tecnologias novas, como a transgenia. Ela fundou o
Instituto de Vigor Híbrido,
nome estranho para uma organização que pretende delinear formas alternativas de
investigar e regular coisas como nanotecnologia (manipulação de átomos e moléculas
na escala do bilionésimo de
metro, como já se faz na indústria cosmética) e biologia
sintética (construção de organismos do zero, como pretende o "savant terrible" da genômica, Craig Venter).
Ela até já testou suas idéias
num projeto piloto sobre xenotransplantes, mais exatamente a proposta de modificar geneticamente porcos para que forneçam órgãos para
seres humanos sem provocar
rejeição. Um tanto cética com
iniciativas de consulta e informação pública como "GM
Nation?", na qual o governo
britânico despejou meio milhão de libras em 2003, Caruso reuniu em seu instituto um
amplo espectro de especialistas para que levantassem cenários problemáticos sobre
os xenotransplantes.
Surgiu uma enxurrada de
interrogações. Os questionamentos foram muito além do
risco que tende a ser privilegiado pelos proponentes dessas biotecnologia -o de que
vírus embutidos no genoma
do porco "ressuscitem" e
dêem origem a doenças desconhecidas e imprevisíveis.
Projetaram-se problemas
aparentemente prosaicos, como o que fazer com toneladas
de carcaças e de esterco que,
por conter DNA modificado,
seriam considerados material
biológico contaminante. A
tendência do especialista que
propôs a nova biotecnologia é
supor que há técnicas para
dar conta dos riscos, como o
confinamento, e deixar de fora de seus cálculos o sempre
provável erro humano.
Só até meados de 2005, ressalta Caruso, houve 62 casos,
em 27 países, de contaminação transgênica, como a detecção de milho modificado
para ração animal em tortilhas industrializadas para
consumo humano. Certamente os prejuízos causados
por esses episódios não foram
computados nas análises
"científicas" de risco e de custo-benefício efetuadas pelas
especialistas.
Um dito alemão afirma que
confiança é uma coisa boa,
mas controle é melhor ("Vertrauen ist gut, aber Kontrolle
ist besser"). Caruso aponta
caminhos para que a sociedade reconquiste algum controle sobre a biotecnologia, agora que a desconfiança é geral.
Os que já se inebriam com o
leite e o mel da nanotecnologia e da biologia sintética fariam bem em dar uma passada sob o poste de Caruso. Eles
também correm o risco de
não chegar a lugar algum.
(ML)
LIVRO: "Intervention. Confronting the Real Risks of Genetic Engineering and Life on a Biotech
Planet" (Intervenção. Confrontando os riscos reais da engenharia genética e da vida num planeta biotecnológico)
Denise Caruso; Hybrid Vigor
Press, 252 págs, US$ 17,95
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