São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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Jornalista diz que a análise de risco favorável a produtos com DNA modificado não é objetiva

DO COLUNISTA DA FOLHA

R eza uma velha piada que o bêbado procurava as chaves do carro junto de um poste, longe do bar. Quando alguém lhe perguntou por que não estendia a busca para o restante do trajeto desde o bar, respondeu: "Porque é aqui que tem luz".
Denise Caruso talvez não seja a primeira a lembrar a anedota para iluminar os impasses públicos sobre a segurança de organismos transgênicos. Poucos, no entanto, se afastaram tanto do poste oposto quanto a jornalista, ao escrever o livro "Intervention" (Intervenção). Caruso encontrou a chave para explicar a desconfiança do público com os organismos geneticamente modificados.
A chave se encontra na definição e no controle da noção de risco, ou seja, daquilo que se considera pertinente medir para avaliar a segurança dos transgênicos. Para voltar à piada: sob qual poste empreender a procura. A diferença com relação ao bêbado é que a improbabilidade de encontrar algo decorre mais de astúcia do que de embotamento das faculdades intelectuais.
Em 1992, as empresas americanas interessadas em lançar transgênicos no mercado convenceram a poderosa FDA (agência de alimentos e fármacos dos EUA) de que apenas a composição tradicionalmente analisada de seus produtos deveria ser objeto de investigação de biossegurança. Se um tomate transgênico -como o Flavr Savr, de 1994- fosse indistinguível do tomate convencional pelos métodos usuais, seria licenciado de modo automático. Nascia a doutrina da "equivalência substancial", cega para o método de obtenção do produto (modificação genética).
Os transgênicos já chegaram desregulamentados ao mercado americano. As empresas fornecem voluntariamente informações sobre os novos produtos ao poder regulador e se responsabilizam por sua segurança. Não só não precisam rotulá-los como não há meios de fazê-lo, uma vez que são "substancialmente equivalentes" aos congêneres "genericamente considerados seguros".
É o paraíso da biotecnologia, que a indústria tentou espalhar pelo mundo. Deu certo, até demais, na Argentina. Na Europa, não, pois o conceito de autoridades reguladoras andava baixo por lá, em razão de alguns desastres. No Brasil, deu no beco sem saída da CTNBio. Reeditou, como farsa, a tentativa de manter a aprovação de transgênicos sob o controle de quem já era favorável a eles.
Leia o que disse a respeito dessa forma de controle exclusivo Dan Glickman, que chefiou o Departamento de Agricultura dos EUA na administração Clinton: "O que eu via genericamente, no lado pró-biotecnologia, era a atitude de que a tecnologia era boa e de que era quase imoral dizer que não era boa, porque ela iria resolver os problemas da raça humana, alimentar os famintos e vestir os descamisados", afirmou numa entrevista recuperada por Caruso. "E havia um bocado de dinheiro investido nisso; se você fosse contra, era um ludita, um estúpido."
Mais? "Este, francamente, era o lado em que se achava o nosso governo. Sem pensar, nós havíamos tomado esse problema como uma questão de comércio e que "eles", quem quer que fossem "eles", queriam manter nosso produto fora de seu mercado", disse Glickman na entrevista. "Você se sentia como se fosse quase um alienígena, alguém desleal, por tentar manter uma visão aberta acerca de algumas questões que eram levantadas."
Caruso critica sem dó a promiscuidade entre regulados e reguladores. Seu "modus operandi" é a sistemática desconsideração de possíveis efeitos danosos do método de transformação usado. Não há como investigar se novos compostos capazes de causar alergias surgem neste ou naquele alimento transgênico, após a modificação genética, se a análise considera só alergênicos conhecidos.
Inebriados com o poder autoconferido, biotecnólogos dos dois lados do balcão denunciam como "não-científicas" e "ideológicas" as dúvidas e objeções surgidas fora de sua repartição. Confundem a luz do poste com a luz da razão. No Brasil são ardorosamente defendidos até pela SBPC e pela Academia Brasileira de Ciências, que deveriam representar a classe científica como um todo.
A autora de "Interventions" revela que um dos documentos cruciais para abrir os seus olhos foi produzido em 1996 a pedido do Conselho Nacional de Pesquisa, ligado à academia de ciência americana. Seu título: "Understanding Risk: Informing Decisions in a Democratic Society" (Entendendo risco: Informando decisões numa sociedade democrática).
Nele se afirma claramente, relata, que a análise de risco apresentada por especialistas -como os de biossegurança- como precisa e objetiva na realidade é sempre eivada de juízos de valor e considerações éticas ou políticas. Deveria, portanto, envolver muitos mais gente e especialidades do que são representadas nas comissões "técnicas".
Caruso não se limita a denunciar as limitações do modelo predominante de avaliação de tecnologias novas, como a transgenia. Ela fundou o Instituto de Vigor Híbrido, nome estranho para uma organização que pretende delinear formas alternativas de investigar e regular coisas como nanotecnologia (manipulação de átomos e moléculas na escala do bilionésimo de metro, como já se faz na indústria cosmética) e biologia sintética (construção de organismos do zero, como pretende o "savant terrible" da genômica, Craig Venter).
Ela até já testou suas idéias num projeto piloto sobre xenotransplantes, mais exatamente a proposta de modificar geneticamente porcos para que forneçam órgãos para seres humanos sem provocar rejeição. Um tanto cética com iniciativas de consulta e informação pública como "GM Nation?", na qual o governo britânico despejou meio milhão de libras em 2003, Caruso reuniu em seu instituto um amplo espectro de especialistas para que levantassem cenários problemáticos sobre os xenotransplantes.
Surgiu uma enxurrada de interrogações. Os questionamentos foram muito além do risco que tende a ser privilegiado pelos proponentes dessas biotecnologia -o de que vírus embutidos no genoma do porco "ressuscitem" e dêem origem a doenças desconhecidas e imprevisíveis.
Projetaram-se problemas aparentemente prosaicos, como o que fazer com toneladas de carcaças e de esterco que, por conter DNA modificado, seriam considerados material biológico contaminante. A tendência do especialista que propôs a nova biotecnologia é supor que há técnicas para dar conta dos riscos, como o confinamento, e deixar de fora de seus cálculos o sempre provável erro humano.
Só até meados de 2005, ressalta Caruso, houve 62 casos, em 27 países, de contaminação transgênica, como a detecção de milho modificado para ração animal em tortilhas industrializadas para consumo humano. Certamente os prejuízos causados por esses episódios não foram computados nas análises "científicas" de risco e de custo-benefício efetuadas pelas especialistas.
Um dito alemão afirma que confiança é uma coisa boa, mas controle é melhor ("Vertrauen ist gut, aber Kontrolle ist besser"). Caruso aponta caminhos para que a sociedade reconquiste algum controle sobre a biotecnologia, agora que a desconfiança é geral. Os que já se inebriam com o leite e o mel da nanotecnologia e da biologia sintética fariam bem em dar uma passada sob o poste de Caruso. Eles também correm o risco de não chegar a lugar algum. (ML)


LIVRO: "Intervention. Confronting the Real Risks of Genetic Engineering and Life on a Biotech Planet" (Intervenção. Confrontando os riscos reais da engenharia genética e da vida num planeta biotecnológico)
Denise Caruso; Hybrid Vigor Press, 252 págs, US$ 17,95



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