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Ficção viciada em bibliografia
Ao atacar a
tecnociência
em "Next",
Crichton
ecoa o
pensamento
conservador
de Bush
"China Daily"/Reuters
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Cientista chinês segura porcos transgênicos usados em pesquisa que usa proteína luminescente para marcar atividade celular |
DO COLUNISTA DA FOLHA
E
stá ficando cada vez
mais complicado resenhar um romance de
Michael Crichton.
Com suas seis páginas
de bibliografia sobre genética,
talvez não fosse uma grande
perda para a literatura se
"Next" (Próximo), com sua tiragem de 2 milhões de exemplares nos EUA, acabasse esquecido entre os livros técnicos
de medicina nas prateleiras.
Crichton deixou há muito de
ser um mero romancista. Tornou-se celebridade cinematográfica, após arrasar quarteirões com "Parque dos Dinossauros" e a série de TV "ER".
Mais que isso, tornou-se celebridade política. Com "Estado
de Medo", alistou-se entre os
negam o aquecimento global.
Encarnou em personagens
mal-ajambrados as teses do
ambientalista cético Bjorn
Lomborg e ganhou as graças da
Casa Branca, onde assumiu
ares de conselheiro científico.
Uma das maiores complicações de escrever sobre o novo
romance está nas teses que ele
defende -sim, além de bibliografia o livro também tem uma
espécie de sumário executivo
apensado ao final, sob o disfarce de "Nota do Autor". O problema é que os cinco pontos arrolados são todos sensatos e
defensáveis, como interromper
o patenteamento de genes, regulamentar claramente o uso
de tecidos humanos em pesquisa e criar leis que obriguem
a publicação de resultados negativos de pesquisas médicas.
Por que a sensatez de Crichton seria, então, um problema?
Primeiro, porque é só em aparência que o romancista se
bandeou para o lado dos inimigos da tecnologia e dos "verdes", que vergastou com "Estado de Medo" e supostamente
teriam urticária só de ouvir falar em modificação genética.
Ao atacar a biotecnologia em
"Next", Crichton mais uma vez
ecoa o conservadorismo que
move Bush: a "húbris" científica está passando dos limites
dados à espécie humana e já
ameaça sua própria natureza.
Embora não use tais palavras, trata-se de um libelo contra uma tecnociência que se
permite "brincar de Deus". Curiosamente, o remédio proposto nada tem de conservador:
mais regulação, ação firme do
Estado para impedir o comercialismo que conspurca a cena
científica, em particular no
campo biomédico. Nada diferente das perorações "neocon"
de Francis Fukuyama no livro
"Nosso Futuro Pós-Humano".
Em segundo lugar, Crichton
escolheu uma ferramenta inadequada (o romance) para fazer propaganda. Pior, maneja-a
muito mal. "Next" consegue
ser pior que "Estado de Medo",
nesse aspecto. Pura e simplesmente, é um livro banal, cheio
de clichês e fórmulas.
Antes de mais nada, o autor
compôs uma obra para leitores
preguiçosos, ou já pensando na
decupagem de cenas para um
filme. Raro é o capítulo que
tem mais de três páginas, e por
isso cabem 95 deles nas 415 páginas de muitos enredos entrelaçados. O resultado é uma
confusão em que o leitor fica
voltando para reencaixar os
nomes das dezenas de escroques que povoam os escritórios
e laboratórios de biotecnologia.
Ninguém se salva.
Além disso, há problemas de
verossimilhança. O livro pulula
em criaturas fantásticas, inconcebíveis mesmo para um
engenheiro genético metamorfoseado em carnavalesco da escola de samba Beija-Flor.
Há papagaios inteligentes,
calculadores, de memória prodigiosa e vocabulário superior
ao de seus donos-inventores.
Uma criança híbrida de humano com chimpanzé, que o cientista arrependido faz passar
por seu filho (o que de fato é,
em parte). Nas selvas da Ásia,
um orangotango perspicaz e
poliglota, que resmunga em
holandês, inglês e francês e termina vitimado por um fotógrafo da natureza sem escrúpulos.
Na América Central, as praias
têm tartarugas com carapaças
que fosforescem, enquanto
põem seus ovos na areia, com
mensagens publicitárias inscritas em seu genoma...
Além disso, há um paciente
cujas células são doadas para
pesquisa e depois se tornam
objeto de patente milionária,
sem que o dono original consiga fazer valer na Justiça o direito de partilhar os lucros obtidos com seus genes. Está certo
que, neste caso, Crichton se
inspirou num caso real, mas
como o leitor desavisado vai se
haver com o restante?
Para piorar a confusão entre
fato e ficção, Crichton -além
da bibliografia e do sumário
executivo- encheu o livro de
textos enquadrados, ou o que
os jornalistas chamam de "boxes". Reproduzem, na maioria,
supostas reportagens e notas
baseadas, algumas ao menos,
em pesquisas reais. São mais
recursos para lastrear a idéia
de que a genética constrói, já
no presente, um mundo povoado de quimeras -o que é no
mínimo um exagero.
Crichton avisa logo nas primeiras páginas de "Next": "Este romance é ficção, exceto pelas partes que não são". Poderia
ser um jogo de espelhos literários, como aqueles dispostos
com maestria por Machado de
Assis -mas não é. É enganação, mesmo.
(ML)
LIVRO - "Next" (Próximo)
Michael Crichton; Harper Collins,
431 págs, US$ 27,95
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