São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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Ficção viciada em bibliografia

Ao atacar a tecnociência em "Next", Crichton ecoa o pensamento conservador de Bush

"China Daily"/Reuters
Cientista chinês segura porcos transgênicos usados em pesquisa que usa proteína luminescente para marcar atividade celular


DO COLUNISTA DA FOLHA

E stá ficando cada vez mais complicado resenhar um romance de Michael Crichton. Com suas seis páginas de bibliografia sobre genética, talvez não fosse uma grande perda para a literatura se "Next" (Próximo), com sua tiragem de 2 milhões de exemplares nos EUA, acabasse esquecido entre os livros técnicos de medicina nas prateleiras.
Crichton deixou há muito de ser um mero romancista. Tornou-se celebridade cinematográfica, após arrasar quarteirões com "Parque dos Dinossauros" e a série de TV "ER". Mais que isso, tornou-se celebridade política. Com "Estado de Medo", alistou-se entre os negam o aquecimento global. Encarnou em personagens mal-ajambrados as teses do ambientalista cético Bjorn Lomborg e ganhou as graças da Casa Branca, onde assumiu ares de conselheiro científico.
Uma das maiores complicações de escrever sobre o novo romance está nas teses que ele defende -sim, além de bibliografia o livro também tem uma espécie de sumário executivo apensado ao final, sob o disfarce de "Nota do Autor". O problema é que os cinco pontos arrolados são todos sensatos e defensáveis, como interromper o patenteamento de genes, regulamentar claramente o uso de tecidos humanos em pesquisa e criar leis que obriguem a publicação de resultados negativos de pesquisas médicas.
Por que a sensatez de Crichton seria, então, um problema? Primeiro, porque é só em aparência que o romancista se bandeou para o lado dos inimigos da tecnologia e dos "verdes", que vergastou com "Estado de Medo" e supostamente teriam urticária só de ouvir falar em modificação genética. Ao atacar a biotecnologia em "Next", Crichton mais uma vez ecoa o conservadorismo que move Bush: a "húbris" científica está passando dos limites dados à espécie humana e já ameaça sua própria natureza.
Embora não use tais palavras, trata-se de um libelo contra uma tecnociência que se permite "brincar de Deus". Curiosamente, o remédio proposto nada tem de conservador: mais regulação, ação firme do Estado para impedir o comercialismo que conspurca a cena científica, em particular no campo biomédico. Nada diferente das perorações "neocon" de Francis Fukuyama no livro "Nosso Futuro Pós-Humano".
Em segundo lugar, Crichton escolheu uma ferramenta inadequada (o romance) para fazer propaganda. Pior, maneja-a muito mal. "Next" consegue ser pior que "Estado de Medo", nesse aspecto. Pura e simplesmente, é um livro banal, cheio de clichês e fórmulas.
Antes de mais nada, o autor compôs uma obra para leitores preguiçosos, ou já pensando na decupagem de cenas para um filme. Raro é o capítulo que tem mais de três páginas, e por isso cabem 95 deles nas 415 páginas de muitos enredos entrelaçados. O resultado é uma confusão em que o leitor fica voltando para reencaixar os nomes das dezenas de escroques que povoam os escritórios e laboratórios de biotecnologia. Ninguém se salva.
Além disso, há problemas de verossimilhança. O livro pulula em criaturas fantásticas, inconcebíveis mesmo para um engenheiro genético metamorfoseado em carnavalesco da escola de samba Beija-Flor.
Há papagaios inteligentes, calculadores, de memória prodigiosa e vocabulário superior ao de seus donos-inventores. Uma criança híbrida de humano com chimpanzé, que o cientista arrependido faz passar por seu filho (o que de fato é, em parte). Nas selvas da Ásia, um orangotango perspicaz e poliglota, que resmunga em holandês, inglês e francês e termina vitimado por um fotógrafo da natureza sem escrúpulos. Na América Central, as praias têm tartarugas com carapaças que fosforescem, enquanto põem seus ovos na areia, com mensagens publicitárias inscritas em seu genoma...
Além disso, há um paciente cujas células são doadas para pesquisa e depois se tornam objeto de patente milionária, sem que o dono original consiga fazer valer na Justiça o direito de partilhar os lucros obtidos com seus genes. Está certo que, neste caso, Crichton se inspirou num caso real, mas como o leitor desavisado vai se haver com o restante?
Para piorar a confusão entre fato e ficção, Crichton -além da bibliografia e do sumário executivo- encheu o livro de textos enquadrados, ou o que os jornalistas chamam de "boxes". Reproduzem, na maioria, supostas reportagens e notas baseadas, algumas ao menos, em pesquisas reais. São mais recursos para lastrear a idéia de que a genética constrói, já no presente, um mundo povoado de quimeras -o que é no mínimo um exagero.
Crichton avisa logo nas primeiras páginas de "Next": "Este romance é ficção, exceto pelas partes que não são". Poderia ser um jogo de espelhos literários, como aqueles dispostos com maestria por Machado de Assis -mas não é. É enganação, mesmo. (ML)


LIVRO - "Next" (Próximo)
Michael Crichton; Harper Collins, 431 págs, US$ 27,95



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