São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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+ Marcelo Leite

Desastre climático e midiático

Uma coisa é produzir dados, outra é torná-los inteligíveis

Terça-feira foi um dia de notícias ruins. Na primeira página da Folha do dia seguinte: China derruba bolsas no mundo; Avanço do mar põe 42 milhões em risco; Pernambuco lidera taxa de homicídios. Fiquemos pelo Brasil, deixando de lado suas teleconexões com a China. A exportação de soja tem relação com o desmatamento na Amazônia, por exemplo, mas isso já foi comentado aqui (6 de agosto de 2006). A sensação da semana foi mesmo a projeção de impactos do aquecimento global em território brasileiro.
A previsão catastrófica sobre a elevação do nível do oceano, que afetaria um quarto da população nacional na região costeira, saiu de um estudo divulgado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). Um desastre, sob todos os aspectos -inclusive de comunicação. Nada a ver com o quarto relatório do Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC) divulgado há um mês. Não que o trabalho, "Mudanças Climáticas Globais e seus Efeitos sobre a Biodiversidade", seja obra de gente pouco séria. José A. Marengo, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), tem reputação internacional. Uma coisa, porém, é produzir dados e projeções; empacotá-los e torná-los inteligíveis pelo público leigo (jornalistas inclusive) são outros 500. O volume de 201 páginas disponível na página do MMA na internet (www.mma.gov.br/estruturas/imprensa/_arquivos/livro%20completo.pdf) tem problemas. A introdução do relatório, por exemplo, diz que ele foi escrito em linguagem acessível, o que não corresponde à realidade. Boa parte dos gráficos está em inglês. As legendas em português nem sempre coincidem com o que se vê. Embora se dirija a tomadores de decisão, não existe um sumário executivo, como é praxe nesse gênero de literatura que ninguém lê de ponta a ponta. Quem se alarmou com a previsão de que 42 milhões de brasileiros poderiam ter de deixar suas casas -uma improbabilidade, mesmo que o mar suba o máximo de 50 cm previsto pelo IPCC- pode ter sentido necessidade de verificar a fonte. Neste caso, deu com os burros n'água. Confira na pág. 74 de "Mudanças Climáticas Globais e seus Efeitos sobre a Biodiversidade". Ali se diz que "cidades litorâneas e 25% da população brasileira, cerca de 42 milhões de pessoas que vivem na zona costeira, segundo o Ministério da Educação, serão possíveis vítimas da elevação do nível do mar, segundo o Relatório do Greenpeace (Greenpeace 2006)". MEC? Greenpeace? Não parecem fontes primárias adequadas para quantificar cientificamente a parcela da população que seria afetada por um evento tão complexo quanto a erosão e perda de área costeira. Em tempo: a fonte da ONG ambientalista é "O Mar no Espaço Geográfico Brasileiro", volume do MEC e da Marinha destinado a professores do ensino médio e fundamental.   Para não dizer que não se falou aqui da criminalidade, a terça-feira trouxe ainda o estudo Mapa da Violência, da OEI (Organização dos Estados Ibero-Americanos). Esqueça Pernambuco e atente para as cidades campeãs de homicídios: Colniza, com 165,3 mortos por 100 mil habitantes em 2004, e Juruena, com 137,8 (a média nacional foi 27,0). Ambas ficam em Mato Grosso, governado pelo rei da soja Blairo Maggi. Figuram regularmente na lista dos municípios mais desmatados do Estado e da Amazônia. Ali mandam grileiros e madeireiros e desobedece quem tem juízo. A questão ambiental, no Brasil, também é caso de polícia.


MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Amazônia, Terra com Futuro" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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