São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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+ ciência

A agonia do Hubble

Jeff Hester e Paul Scowen/Arizona State University/Nasa
Nuvem de hidrogênio incubadora de estrelas, que se formam nas projeções, cada uma delas maior que o Sistema Solar


NASA VOLTA AS COSTAS PARA SEU TELESCÓPIO ESPACIAL, RESPONSÁVEL PELA REVOLUÇÃO NA ASTRONOMIA MODERNA

Dante Grecco
Duilia de Mello

especial para a Folha

O telescópio espacial Hubble, o maior sucesso astronômico de todos os tempos, está passando por sua maior crise desde 1990, quando foi lançado. Sean O'Keefe, diretor da Nasa (agência espacial norte-americana), parece determinado a não enviar a próxima missão de reparo ao telescópio, que seria realizada em 2006 por um dos ônibus espaciais da agência. Se isso se confirmar, será a morte do telescópio espacial. Há mais de dois meses o Hubble, que completa 14 anos em 20 dias, agoniza à espera de uma decisão da Nasa. Ele tem dois de seus giroscópios quebrados e precisa de manutenção para que continue ativo. Se nada for feito, pode ser que o Hubble não resista e deixe de operar. Desde o início de seu projeto, em 1977, mais de US$ 4 bilhões já foram gastos com o telescópio. Ainda são consumidos cerca de US$ 55 milhões por ano em sua manutenção. Se forem incluídos os gastos para o desenvolvimento de instrumentos novos, a despesa chega a US$ 230 milhões. Apesar disso, ele não consome nem 2% do orçamento anual da Nasa. O Hubble foi inicialmente planejado para operar por 15 anos (até 2005). Mas, devido às suas grandes descobertas, teve seu tempo de vida prolongado até 2010, com duas missões de reparo previstas para os próximos anos. A quarta, que havia sido aprovada antes do desastre do Columbia em 2003, deveria acontecer em 2004, mas foi adiada para 2006. Uma quinta vinha sendo planejada e garantiria que o Hubble permanecesse ativo até que seu sucessor, o telescópio James Webb, fosse lançado em 2011. Cerca de US$ 200 milhões já foram gastos no desenvolvimento e construção de novos instrumentos, a serem instalados durante essa quarta missão. Ninguém sabe o que fazer com eles.

Uma senadora em ação
O drama do Hubble começou em 16 de janeiro, quando Sean O'Keefe revelou que a comissão encarregada de investigar a causa da desintegração do ônibus espacial Columbia teria recomendado algumas medidas de segurança que tornariam impraticável a ida de um ônibus espacial até o Hubble. Temendo novos acidentes, a Nasa está disposta a seguir as novas normas de segurança da comissão e a efetuar as mudanças no ônibus espacial para que ele viaje apenas até a ISS (Estação Espacial Internacional), a cerca de 300 km de altitude.
Se todas as recomendações forem seguidas, a ida ao Hubble (596 km acima da Terra) ficaria impossibilitada. A decisão causou a revolta dos astrônomos do mundo inteiro e também ameaça revoltar o público, que se acostumou com as belas imagens reveladas pelo telescópio. A repercussão nos EUA foi tamanha que Barbara Mikulski, senadora pelo Estado de Maryland e considerada "madrinha" do Hubble, passou a pressionar a agência espacial para que reconsiderasse a decisão. "O mais bem-sucedido programa da Nasa desde a missão Apollo não pode ser eliminado com uma simples canetada. Mas claro que a segurança dos astronautas deve ser prioridade número um", disse Mikulski em 30 de janeiro, quando visitou o Space Telescope Science Institute (STScI), centro que coordena as operações do Hubble em Baltimore, Maryland. A senadora, apoiada pela Associação de Pesquisas das Universidades Americanas (Aura), que gerencia o STScI, foi tão insistente que O'Keefe concordou em solicitar ao almirante Harold Gehman Jr., coordenador da investigação do Columbia, uma análise mais aprofundada do caso. Em 11 de março, ela apresentou o novo parecer a uma comissão do Senado que supervisiona os fundos da Nasa. No relatório, o almirante apontou os riscos da missão e os classificou como apenas "um pouco" mais graves do que os envolvidos em uma missão à estação espacial. A senadora, apoiada pela comissão, recomendou que O'Keefe entregasse o caso à Academia Nacional de Ciências e que fosse considerada a possibilidade de enviar uma missão não-tripulada para fazer a manutenção do telescópio.

A Nasa parece estar com receio de enfrentar riscos, depois do acidente do Columbia

Astrônomos desanimados
Não adiantou. Segundo Mario Livio, astrônomo do STScI e vice-diretor do seu Departamento de Ciências, até 19 de março passado nenhuma carta teria sido enviada à academia por O'Keefe. Livio faz previsões pessimistas: "Se a Nasa mantiver o cancelamento da missão de reparo, o instituto deverá passar por uma reformulação. Talvez tenha de reduzir o quadro de pessoal à metade". Ele afirma ainda que os 500 funcionários do instituto, dos quais 85 são astrônomos, aguardam ansiosamente o parecer da academia. Desanimados, muitos já pensam em outras alternativas de trabalho. Também não se sabe o papel da Agência Espacial Européia (ESA, na sigla em inglês), que detém 15% do Hubble e emprega 15 astrônomos europeus trabalhando para o telescópio no STScI. O contrato da ESA com a Nasa expira em 2006 e será renegociado em 2005. Antes da crise, todos na agência européia acreditavam que a transição do Hubble para o James Webb seria simples. Hoje, há dúvidas. Logo após a notícia de que não haveria mais a quarta missão, Steven Beckwith, diretor do STScI, formou uma equipe para avaliar a possibilidade de operar o telescópio com apenas dois de seus seis giroscópios (leia texto à direita), mesmo que com restrições de uso. A possibilidade de efetuar a missão de manutenção roboticamente também está sendo apreciada, embora com pessimismo, devido ao seu provável alto custo e ao tempo necessário para aperfeiçoar uma tecnologia nunca usada antes em satélites científicos. E tempo é o que ninguém tem, pois a qualquer momento um dos quatro [ ] giroscópios pode parar de funcionar, e o telescópio, entrar em estado de emergência. Caso os giroscópios funcionem sem problema, o telescópio tem baterias para continuar a observação até 2007. Para tentar encontrar uma solução, no último dia 24 foi realizado um seminário no Departamento de Física e Astronomia da Universidade Johns Hopkins (EUA), localizada no mesmo campus onde fica o STScI. "Foram discutidas novas alternativas. Uma é trazer o Hubble até a estação espacial. Mas ainda não há nada definido, porque todas as opções precisam ser bem avaliadas", conta Lucimara Pires Martins, pesquisadora brasileira do STScI. Parada no tempo Até antigos astronautas estão fazendo lobby em favor do Hubble. O senador John Glenn (que fez o primeiro vôo orbital dos Estados Unidos, em 1962, e que voltou a voar em 1998, num ônibus espacial), por exemplo, está preocupado com o futuro do telescópio e a possibilidade de a Nasa estar perdendo seu lado desbravador, com receio de enfrentar riscos depois do acidente do Columbia. Se o Hubble morrer, a astronomia mundial sofrerá a maior de suas perdas. Ele é o único telescópio fora da atmosfera terrestre capaz de desvendar detalhes que mesmo os maiores telescópios em Terra não conseguem enxergar. Nesses 14 anos de operação, a nitidez e a resolução de suas imagens foram analisadas por astrônomos de todo o planeta que buscam entender o Universo e contribuir para a evolução da humanidade. "Ele é fundamental para estimular o avanço da ciência, pois promove uma competição entre os melhores astrônomos do mundo, que elaboram projetos cada vez mais competitivos e originais para usar o telescópio, único em suas características", afirma Thaisa Bergmann, astrônoma da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Seu poder de resolução espacial permitiu estudar em detalhe objetos astronômicos próximos e ter, em primeira mão, uma visão do Universo mais distante", avalia Eduardo Telles, pesquisador do Observatório Nacional do Rio de Janeiro. Para José Renan de Medeiros, astrônomo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e ex-presidente da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB), "desativar o Hubble é impor uma parada no tempo e atrasar o conhecimento científico".

Temor de cientistas
Se for comprovado que a ida ao telescópio não é mais perigosa que qualquer outra viagem do ônibus espacial -e a Nasa insistir em não enviar missão alguma ao Hubble- ficará evidenciado o que muita gente da comunidade científica já teme: que o cancelamento seja por razões orçamentárias, e que a Nasa esteja cedendo ao desejo do presidente George W. Bush. Para ele, as prioridades devem ser o retorno à Lua e a ida a Marte. Para tanto, US$ 15 bilhões do orçamento já comprometido da agência seriam transferidos para os novos projetos.
Não é preciso ser cientista nem astronauta para enxergar o lado irônico dessa história. Como a Nasa pode assumir missões de retorno à Lua e de ida a Marte, se ela não tem como salvar seu telescópio espacial, a apenas 596 km de altitude?


Dante Grecco, 41, é jornalista

Duilia de Mello, 40, astrônoma, é pesquisadora do Goddard Space Flight Center da Nasa, em Maryland (EUA), e trabalhou no Space Telescope Science Institute (STScI), em Baltimore (EUA), entre 1997 e 1999


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