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Ciência em Dia
Pau no princípio da precaução
Marcelo Leite
editor de Ciência
Parece até piada, mas cientistas naturais por vezes perdem todo o senso
de ridículo e medida quando tomados de
indignação cívica contra o princípio de
precaução. Uma enquete britânica sobre
feitos e invenções que não teriam visto a
luz do dia, caso esse princípio estivesse
em vigor nas décadas e séculos passados,
resultou na seguinte lista (que merece
um parágrafo alfabético à parte):
Água encanada, antibióticos, arado, ar
condicionado, aspirina, automóvel,
avião, bicicleta, biologia molecular, biotecnologia, células-tronco, cirurgia cardíaca, corrente elétrica alternada, cultivo
de arroz e de milho, descoberta da América, domesticação de plantas, energia
nuclear, enxada, estradas de ferro, estrutura do DNA, exploração espacial, faca,
ferro, fertilização in vitro (bebês de proveta), fertilizantes à base de amônia, física nuclear, fogo, foguetes, gás encanado,
internet, lâmpada elétrica, máquina a vapor, mecânica quântica, medicamentos
com efeitos colaterais, milho híbrido,
motor a jato, motores de combustão interna, obras de Galileu e Newton, pasteurização, penicilina, pesticidas, petróleo,
pílula anticoncepcional, plantas transgênicas, Projeto Genoma Humano, quebra
da barreira do som, radar, radioatividade, raios X, redes de alta tensão, refrigeração, ressonância magnética, Revolução Verde na agricultura, roda, tabela
periódica, telefone, tomografia, transfusão de sangue, transplantes, vacinas contra varíola, sarampo, raiva e pólio.
Não é brincadeira. A relação pode ser
conferida na página da revista eletrônica
"Spiked" (www.spiked-online.com/Articles/00000006DD7A.htm), iniciadora
de um debate sobre o que supõe ser uma
obsessão contemporânea com o risco.
São sugestões feitas por 40 cientistas.
Difícil é saber o que se mostra mais alucinado, se a extensão da lista ou a presença de vários itens, como tratados de Galileu e Newton e a tabela periódica. Justificativa de Lewis Wolpert, renomado biólogo do University College de Londres,
para incluí-los: contribuíram para a balística e para a confecção de bombas.
Além de primário, o argumento de
Wolpert ilustra uma confusão tão comum quanto mal-intencionada sobre o
princípio da precaução. Ele não representa uma cláusula contra toda e qualquer ação ou pesquisa que envolva risco,
nem uma exigência -logicamente absurda- de que toda e qualquer hipótese
de risco seja excluída a priori, num complô antipesquisa maquinado por maricas avessos ao perigo. Isso é apenas a redução e a caricatura perpetradas com
fins retóricos por cientistas avessos a
ponderar publicamente prós e contras
de seus programas de pesquisa.
O princípio da precaução são outros
500. Tal como o entendo, ele recomenda
que, havendo indicação forte de riscos
consideráveis em certa atividade, ainda
que de mensuração difícil ou impossível,
a incerteza não deve ser invocada como
justificativa seja para seguir em frente,
seja para adiar medidas que objetivem
prevenir ou combater seus efeitos. Na
origem estavam problemas como mudança climática global e biodiversidade.
Os cientistas escolheram o alvo errado,
pois o tempo trabalha a seu favor. São cada vez mais fracas as indicações de que a
tecnologia transgênica seja intrinsecamente arriscada -mas isso tampouco
quer dizer que seja inerentemente segura. Cada transgênico tem de ser examinado à parte, caso por caso.
Fora disso só há apostas fundamentalistas na confusão, contra ou a favor.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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