São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

Texto Anterior | Índice

Ciência em Dia

Pau no princípio da precaução

Marcelo Leite
editor de Ciência

Parece até piada, mas cientistas naturais por vezes perdem todo o senso de ridículo e medida quando tomados de indignação cívica contra o princípio de precaução. Uma enquete britânica sobre feitos e invenções que não teriam visto a luz do dia, caso esse princípio estivesse em vigor nas décadas e séculos passados, resultou na seguinte lista (que merece um parágrafo alfabético à parte):
Água encanada, antibióticos, arado, ar condicionado, aspirina, automóvel, avião, bicicleta, biologia molecular, biotecnologia, células-tronco, cirurgia cardíaca, corrente elétrica alternada, cultivo de arroz e de milho, descoberta da América, domesticação de plantas, energia nuclear, enxada, estradas de ferro, estrutura do DNA, exploração espacial, faca, ferro, fertilização in vitro (bebês de proveta), fertilizantes à base de amônia, física nuclear, fogo, foguetes, gás encanado, internet, lâmpada elétrica, máquina a vapor, mecânica quântica, medicamentos com efeitos colaterais, milho híbrido, motor a jato, motores de combustão interna, obras de Galileu e Newton, pasteurização, penicilina, pesticidas, petróleo, pílula anticoncepcional, plantas transgênicas, Projeto Genoma Humano, quebra da barreira do som, radar, radioatividade, raios X, redes de alta tensão, refrigeração, ressonância magnética, Revolução Verde na agricultura, roda, tabela periódica, telefone, tomografia, transfusão de sangue, transplantes, vacinas contra varíola, sarampo, raiva e pólio.
Não é brincadeira. A relação pode ser conferida na página da revista eletrônica "Spiked" (www.spiked-online.com/Articles/00000006DD7A.htm), iniciadora de um debate sobre o que supõe ser uma obsessão contemporânea com o risco. São sugestões feitas por 40 cientistas.
Difícil é saber o que se mostra mais alucinado, se a extensão da lista ou a presença de vários itens, como tratados de Galileu e Newton e a tabela periódica. Justificativa de Lewis Wolpert, renomado biólogo do University College de Londres, para incluí-los: contribuíram para a balística e para a confecção de bombas.
Além de primário, o argumento de Wolpert ilustra uma confusão tão comum quanto mal-intencionada sobre o princípio da precaução. Ele não representa uma cláusula contra toda e qualquer ação ou pesquisa que envolva risco, nem uma exigência -logicamente absurda- de que toda e qualquer hipótese de risco seja excluída a priori, num complô antipesquisa maquinado por maricas avessos ao perigo. Isso é apenas a redução e a caricatura perpetradas com fins retóricos por cientistas avessos a ponderar publicamente prós e contras de seus programas de pesquisa.
O princípio da precaução são outros 500. Tal como o entendo, ele recomenda que, havendo indicação forte de riscos consideráveis em certa atividade, ainda que de mensuração difícil ou impossível, a incerteza não deve ser invocada como justificativa seja para seguir em frente, seja para adiar medidas que objetivem prevenir ou combater seus efeitos. Na origem estavam problemas como mudança climática global e biodiversidade.
Os cientistas escolheram o alvo errado, pois o tempo trabalha a seu favor. São cada vez mais fracas as indicações de que a tecnologia transgênica seja intrinsecamente arriscada -mas isso tampouco quer dizer que seja inerentemente segura. Cada transgênico tem de ser examinado à parte, caso por caso.
Fora disso só há apostas fundamentalistas na confusão, contra ou a favor.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


Texto Anterior: Micro/Macro: Mais um planeta?
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.