São Paulo, quarta-feira, 04 de setembro de 2002

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RIO +10

Pesquisadora de chimpanzés diz que 11 de setembro atrapalhou reunião; ONGs violentas também prejudicam

Goodall acusa Bush de "sequestrar" reunião

CLAUDIO ANGELO
ENVIADO ESPECIAL A JOHANNESBURGO

Jane Goodall parece entediada enquanto posa para as fotos da sua terceira entrevista da tarde. São 15h. A lenda viva do ambientalismo, grande dama da pesquisa com chimpanzés, ainda vai atender mais um jornalista antes de sair do local onde passara a manhã -tentando atrair empresários para um projeto de conservação de primatas. "Às vezes cansa. Mas é uma coisa xtraordinária."
A primatologista britânica, que ficou famosa por lutar pela preservação dos chimpanzés na Tanzânia, nos anos 60, não pára. Nomeada em abril embaixadora da paz pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan, Goodall, 68, manteve a agenda lotada durante os dez dias que passou na Rio +10.
Seu objetivo, nada modesto, é convencer as pessoas de que o tempo está acabando para o planeta e de que é preciso tomar atitudes mais que urgentes para reverter a degradação ambiental.
"Eu ficaria muito surpresa se houvesse um acordo significativo no nível político", disse Goodall. Para ela, o governo do presidente George W. Bush (EUA) "sequestrou" a cúpula, que poderia ter tido uma história bem diferente se não fosse o 11 de setembro.
Para Goodall, as pessoas comuns ainda não conseguiram apoiar políticos favoráveis ao ambiente e o discurso raivoso das ONGs assusta, no lugar de convencer. Leia trechos da entrevista na IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza):

Folha - A sra. está satisfeita com o resultado da cúpula?
Jane Goodall -
Acho que precisamos esperar para ver. Mas eu ficaria muito surpresa se houvesse um acordo muito significativo no nível político. A maioria dos resultados é que as pessoas concordaram com algumas coisas. Concordar é uma coisa, e é algo que fizemos no Rio. Mas implementar, aprovar como lei e fazer acontecer é algo inteiramente diferente.

Folha - Nós estamos avaliando dez anos de degradação ambiental, quando deveríamos ter feito alguma coisa. O que aconteceu?
Goodall -
Nos dez anos desde o Rio, sim, as pessoas devastaram o ambiente, espécies se extinguiram. Suspeito também que a pobreza tenha crescido, enquanto a população cresceu. Por outro lado, o simples fato de ter havido uma conferência como a do Rio fez as pessoas tomarem consciência dos problemas. Viajando 360 dias por ano, eu descubro que as pessoas no mundo inteiro estão começando a entender muito mais sobre a destruição ambiental. Certamente, entre as pessoas, há preocupação sobre a solidez dos resultados aqui, nesta conferência. Mesmo que as ONGs estejam muito bravas porque nós não conseguimos entrar no processo de decisão, nós conseguimos fazer muitas relações e parcerias uns com os outros. E isso fortalece o movimento das ONGs.

Folha - As pessoas acham que a culpa é sempre dos governos...
Goodall -
Este encontro está trazendo mais e mais ONGs. A longo prazo, isso vai fazer uma grande diferença. Eu só não sei se nós vamos ter tempo suficiente. A taxa de destruição agora é realmente aterrorizante e, com essa guerra ao terrorismo e o papel que tem sido desempenhado pelos EUA... é devastador. Devastador.

Folha - Ao que a sra. atribui a falta de mobilização nesta cúpula?
Goodall -
Eu acho que, se o 11 de setembro não tivesse acontecido, esta cúpula seria muito diferente. Bush era tão impopular que certamente não teria ousado sequestrar a cúpula como fez. Poderia ter havido algumas boas medidas. Acho que as ONGs teriam dito muito mais coisas, as vozes das pessoas teriam sido mais ouvidas. Mas, do jeito que a coisa está, é muito perturbador. Não sei quanto tempo mais nós temos, mas precisamos continuar.

Folha - A sra. acha que o público não liga para o ambiente porque está cansado dos ambientalistas?
Goodall -
Depende de quem está falando. Há muitas maneiras diferentes de levar a mensagem. Eu acho que as pessoas ouvirão muito mais se você amarrar a condição humana à natureza. A necessidade de lugares selvagens, de trabalhar não só para preservar animais como também para melhorar a vida de pessoas muito pobres nas áreas que queremos conservar em volta. Aí a conversa começa a fazer sentido.

Folha - Então as ONGs estão errando o tom completamente.
Goodall -
Algumas delas. As violentas. Há um lugar para a violência em qualquer causa que faça as pessoas ouvirem e dizerem "isso é notícia". Mas, uma vez que o tema é exposto, eu acho que a violência não ajuda. Eu fiz muito lobby, especialmente nos EUA. E conheci congressistas que fizeram leis ambientais simplesmente porque se deram conta de que deveriam fazê-lo. E eles me disseram que os grupos ambientais e de direitos animais mais estridentes e agressivos não foram nem dialogar!

Folha - Por que a sra. acha que os cientistas também têm falhado em convencer os governos de que os problemas ambientais são sérios?
Goodall -
Não sei. Acho que as pessoas são basicamente egoístas. Querem dinheiro agora. Não ligam para o futuro. É por isso que trabalho com as crianças: porque elas não perderam seus valores.

Folha - E qual é o prazo?
Goodall -
Não sei. Enquanto tiver vida, preciso continuar.

Folha - Um cientista brasileiro diz que a única coisa que pode salvar a Amazônia é educação.
Goodall -
A educação é importante, mas trazer o coração para a equação... Nós tendemos a fazer muita coisa com o nosso cérebro, o que é típico da ciência, mas nunca mudaremos o mundo até envolvermos o coração.

Folha - Surpreendente ouvir isso de uma cientista.
Goodall -
Não acho que você vá encontrar um cientista muito normal por aí (risos). Não comecei meus estudos para ser uma cientista. Eu vim para a África para viver com os animais e escrever livros sobre eles. E Louis Leakey [antropólogo queniano que descobriu alguns dos fósseis mais antigos de ancestrais do homem] me fez obter um doutorado, para que eu pudesse conseguir dinheiro para continuar a aprender sobre os chimpanzés.

Folha - Como foi trabalhar com Louis Leakey? E quais são as suas relações com Richard [filho de Leakey, antropólogo e ex-ministro do Ambiente do Quênia"?
Goodall -
Louis era maravilhoso. Um gigante. Richard fez um trabalho maravilhoso, mas ele está bem deprimido agora. Ele teve um trabalho muito duro no Quênia. Nem todos os países da África são corruptos, mas o Quênia é especialmente corrupto.

Se os chimpanzés fossem a espécie dominante no planeta, eles se comportariam como nós?
Goodall -
Provavelmente. Se eles soubessem usar armas de fogo, provavelmente as usariam. Antigamente, várias sociedades indígenas eram conservacionistas. Mas nós não as escutamos mais.


O jornalista Claudio Angelo viajou a Johannesburgo a convite da BrasilConnects Cultura e Ecologia


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