São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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A primeira brasileira não era uma índia



Novos estudos revelam que crânio de 12 mil anos encontrado em 1975 em Lagoa Santa, em MG, pertenceu a mulher de características físicas africanas e não asiáticas
RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

A idéia corrente de que foram os índios os primeiros a habitar o território brasileiro recebeu um forte abalo neste fim-de-semana.
Luzia, a primeira brasileira conhecida, não era índia, segundo um estudo apresentado ontem em um encontro científico nos Estados Unidos pelo pesquisador brasileiro Walter Neves, da Universidade de São Paulo.
Ao contrário do que se imaginava, o mais antigo crânio humano encontrado no Brasil não era de uma pessoa do grupo conhecido pelos cientistas como "mongolóide", isto é, as populações asiáticas e nativas americanas.
O crânio pertenceu a uma mulher com idade entre 20 anos e 25 anos, batizada "Luzia" por Neves e seus colegas. As características desse crânio fazem com que ela seja mais parecida com africanos e australianos do que com os índios das duas Américas.
Luzia não é somente a primeira brasileira: é também o ser humano mais antigo já encontrado no continente americano, com idade estimada em 11 mil a 12 mil anos atrás.
O crânio pertence à coleção de fósseis encontrados no sítio de Lapa Vermelha, na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, alguns dos quais estão hoje no Museu Nacional no Rio de Janeiro.
Luzia foi descoberta em 1975. O que Neves e colegas fizeram agora foi simplesmente reestudar o fóssil, com um resultado impactante.
Eles mediram 45 diferentes características do crânio e o compararam com espécimes de outras partes do mundo correspondentes a populações atuais.
A semelhança com africanos
O gráfico resultante da comparação mostrou que Luzia "exibiu uma afinidade morfológica indiscutível, primeiro com africanos, e, em segundo, com populações do Pacífico Sul", segundo escreveu a equipe de pesquisadores no trabalho apresentado no 67º Encontro Anual da Associação Americana de Antropologia Física, encerrado ontem em Salt Lake City, EUA.
O crânio também foi comparado com uma sequência de fósseis do Velho Mundo (isto é, Europa, Ásia e África) do final do Pleistoceno (época geológica que começou 2,5 milhões de anos atrás, caracterizada por intensas glaciações, e terminou há 10 mil anos). Foram usadas 16 variáveis. Entre os crânios mais parecidos estavam também os de antigos australianos.
O trabalho tem ainda como autores Joseph Powell e Erik Ozolins, da Universidade do Novo México (EUA), e Andre Prous, do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais.
A semelhança com africanos e australianos, para a equipe, "claramente confirma a idéia de que as Américas foram primeiro colonizadas por uma população generalizada de Homo sapiens sapiens que habitava o leste da Ásia no Pleistoceno tardio, antes da definição da morfologia mongolóide clássica".
Ou seja, Luzia não era idêntica aos negros de hoje, mas pertencia a uma população ancestral, que depois se diferenciou.
O homem pertence ao gênero biológico conhecido como Homo, e à espécie Homo sapiens. Os homens atuais também podem ser classificados como pertencentes à subespécie Homo sapiens sapiens.
Os pesquisadores acreditam que o homem com características modernas -Homo sapiens sapiens- apareceu primeiro na África cerca de 120 mil anos atrás e depois se espalhou pelo resto do planeta.
Antes dele, o registro fóssil mostra a presença de ancestrais de formas mais arcaicas, como o Homo neanderthalensis (alguns preferem classificá-lo como Homo sapiens neanderthalensis ), mais atarracado e com uma testa saliente. O mais antigo Homo erectus era ainda mais testudo, com uma cabeça chata e dentes protuberantes.
Há pesquisadores que acreditam que houve convivência, em mais de um local ou período, entre formas diferentes desses hominídeos, mas que rapidamente o homem moderno substituiu seus competidores de formas mais primitivas.
Por volta de 45 mil anos atrás, esse homem moderno atingiu a Europa. Entre 40 mil e 50 mil anos atrás, ele alcançou a Austrália.
Para a teoria tradicional da ocupação das Américas, o homem chegou ao continente bem depois. Segundo o chamado Modelo das Três Migrações, os primeiros americanos teriam surgido de populações mongolóides do norte da Ásia no final do Pleistoceno. As três migrações, relativamente próximas no tempo, seriam referentes às diferenças entre os povos indígenas americanos, os esquimós, o grupo Na-dene e os índios antigos (paleoíndios).
A teoria se baseia em características físicas dos nativos americanos e em dados arqueológicos. Todos os fósseis americanos são do Homo sapiens, embora muitos sítios arqueológicos revelem sua presença indiretamente, por meio de pontas de flecha ou restos de carvão de fogueiras.
O fim do dogma Clóvis
A visão tradicional afirma que o homem só chegou ao continente americano vindo da Ásia por volta de 11,2 mil a 10,9 mil anos atrás (é a chamada época Clóvis, que até o ano passado era o sítio arqueológico com a povoação mais antiga comprovada nas Américas).
Nos últimos anos, descobertas em vários pontos das Américas têm mostrado datações "pré-Clóvis" de sítios arqueológicos, entre os quais o mais notável é o sítio de Monte Verde, no sul do Chile, com 12,5 mil anos de idade, escavado pela equipe de Tom Dillehay, da Universidade de Kentucky.
A opção por Clóvis se tornou um dogma tão sólido, que foi preciso muito trabalho para uma nova geração de cientistas derrubá-lo.
Para estar no Chile 12,5 mil anos atrás, uma população migrante teria de ter migrado da Ásia para a América pelo estreito de Bering (entre a Sibéria e o Alasca) há cerca de 20 mil anos. Teoricamente, seria possível uma vinda por mar. Os povos das ilhas do Pacífico têm uma grande tradição de navegação oceânica. Mas não há fósseis indicando essa passagem.
Isso tudo indica que as Américas foram povoadas por diversos grupos vindos da Ásia, em um processo bem mais complexo do que se imaginava.
Durante a 150ª reunião da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência), em fevereiro passado, Dillehay citou as pesquisas de Walter Neves como exemplo dessa diversidade.
Neves e colegas propõem um modelo de quatro migrações. Além das três, de populações mongolóides, teria havido uma anterior, mais parecida com a que chegou à Austrália há 50 mil anos, com origens remotas na África.
Eles sugerem também que por volta de 8.000 a 9.000 anos atrás, essa população teria sido substituída pela migração mongolóide. Humanos parecidos com Luzia teriam dado lugar a outros, semelhantes aos índios de hoje.
A substituição pode ter sido pacífica ou belicosa. Os primeiros americanos, provavelmente menos numerosos que os que vieram depois, poderiam ter sido dizimados pelos invasores.
Mas pode ser que simplesmente tenham sido incorporados pela nova população. Nesse último caso, algumas tribos indígenas atuais podem ter mantido alguns dos seus traços anatômicos.



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