São Paulo, domingo, 5 de abril de 1998

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Cientistas X índios



Descoberta de Luzia pode repercutir na "devolução" de peças arqueológicas
especial para a Folha

A descoberta de que no Brasil havia uma população que não parece ser ancestral dos índios modernos tem um impacto não só científico, mas também político. Ela afeta uma polêmica nos Estados Unidos sobre a repatriação de restos humanos achados em terras indígenas. Pesquisadores americanos temem que essa política de devolver fósseis aos índios poderá comprometer todo o estudo da ocupação humana do continente.
Comentando o caso mais rumoroso, do chamado "Homem de Kennewick", o antropólogo físico Douglas W. Owsley, da Smithsonian Institution, chegou a dizer em uma palestra em fevereiro, durante a 150ª reunião da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência), que o "fundamentalismo religioso" dos índios está ameaçando a pesquisa.
Ironicamente, a intransigência indígena tem origem em uma legislação "politicamente correta" de 1990, conhecida como Nagpra, sigla de Lei de Repatriação e Proteção de Tumbas de Nativos Americanos, que torna obrigatória a devolução de esqueletos e artefatos ligados a ritos funerários para as tribos que os reivindicarem.
"O argumento mais forte por trás das alegações para esse tipo de repatriação se baseia na noção geralmente aceita de que há uma relação biológica e cultural de ancestral-descendente entre os nativos americanos vivos e o material esquelético achado em escavações arqueológicas na América do Norte. Como se pode ver, nossos resultados questionam seriamente essa suposição", escreveram Walter Neves e colegas no trabalho apresentado neste fim de semana em Salt Lake City.
Mesmo o "Homem de Kennewick" poderia servir de argumento contra as pretensões dos índios. Estudos preliminares indicam que o seu crânio parece mais com o de um europeu do que com o de um índio. Não quer dizer que "brancos" como os europeus, que depois "descobriram" o continente, tenham estado nas Américas antes de índios, mas sim que uma população ancestral tinha traços mais caucasóides do que mongolóides.
O "Homem de Kennewick" tem 8.400 anos e se tornou objeto de uma batalha judicial. Ele foi descoberto perto da cidade com esse nome, no Estado de Washington, ao longo do rio Columbia.
O antropólogo James Chatters foi chamado para estudar o esqueleto. Seu crânio alongado, entre outras características, e um fragmento de flecha enterrado na pélvis, deram a impressão inicial de que se tratava de um pioneiro atacado por índios no século passado. Mas a análise da flecha indicou semelhanças com outras de 9.000 a 4.500 anos atrás. E uma amostra do osso datada em laboratório indicou 8.400 anos de idade.
Outros cientistas notaram que o esqueleto não se assemelhava com o de nenhuma tribo da área.
Mas isso não impediu que o Exército dos EUA -que detem a jurisdição do local onde o esqueleto foi achado- decidisse, baseado nessa idade, devolver o esqueleto aos índios das tribos Umatilla.
Um líder religioso Umatilla, Armand Minthorn, afirmou que, devido a essa idade, o esqueleto só poderia ser deles, "pois, por nossa história oral, sabemos que nosso povo tem sido parte dessa terra desde o começo dos tempos".
Minthorn nega a necessidade de estudo do esqueleto. "Alguns cientistas dizem que, se esse indivíduo não for mais estudado, nós estaremos destruindo evidência de nossa própria história. Nós já conhecemos nossa história, passada para nós por nossos anciões e nossas práticas religiosas".
Owsley disse que, se a moda pegar, a perda para a ciência será incalculável: "Nunca teremos os dados para compreender as populações mais antigas da América".
Em outros casos, os índios não foram tão radicais. A tribo Ute permitiu o estudo de partes de um esqueleto achado no Colorado, em 1988, de 8.000 anos atrás. E no caso de um esqueleto achado na Ilha do Príncipe de Gales, no Alasca, com 9.700 anos, as tribos locais também permitiram o estudo. (RBN)



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