São Paulo, domingo, 05 de novembro de 2006

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Com a corda no pescoço

Físico americano revela em livro a celeuma travada nos bastidores da academia em torno da teoria de cordas e argumenta que talvez o Universo não seja elegante, afinal

FLÁVIO DE CARVALHO SERPA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Há tempos a comunidade dos físicos está dividida numa guerra surda, abafada pelos muros da academia. Agora, pela primeira vez, dois livros trazem a público os detalhes dessa desavença, que põe em xeque o modo de produzir a ciência moderna, revelando uma doença que pode estar se espalhando por todo o edifício acadêmico.
"The Trouble With Physics" ("A Crise da Física"), livro lançado no mês passado nos EUA e ainda sem tradução no Brasil, do físico teórico Lee Smolin, abre uma discussão que muitos prefeririam manter longe do grande público: está a física moderna completamente estagnada há três décadas?
"A história que vou contar", escreve Smolin, "pode ser lida como uma tragédia. Para ser claro e antecipar o desfecho: nós fracassamos", diz ele, invocando o cargo de porta-voz de toda uma geração de cientistas. Pior: a razão da estagnação seria a formação de gangues de cientistas, incluindo as mentes mais brilhantes do mundo, para afastar dos postos acadêmicos os teóricos dissidentes.
Os principais acusados são os físicos adeptos da chamada teoria de cordas, que promete, desde o início da década de 1970, unificar todas as forças e partículas do Universo conhecido. "A teoria de cordas tem uma posição tão dominante na academia", escreve Smolin, "que é praticamente suicídio de carreira para um jovem teórico não juntar-se à onda".
Smolin, um polêmico e respeitado físico teórico, com PhD em Harvard e professorado em Yale, não está só. Também o físico matemático Peter Woit disparou contra os físicos das cordas uma acusação pesada que transparece já no título de seu livro: "Not Even Wrong" ("Nem Sequer Errado"). Esse era o pior insulto que o legendário físico Wolfgang Pauli reservava para os trabalhos e teses mal feitas. Afinal, se uma tese fica comprovadamente errada, ela tem o lado positivo de fechar becos sem saída na busca do caminho certo.
Mas o alerta de Smolin não está restrito ao desenvolvimento teórico da física. Para manter privilégios acadêmicos, a comunidade dos teóricos de cordas tomou conta das principais universidades e centros de pesquisas, barrando a carreira de pesquisadores com enfoques alternativos. Smolin,que já namorou a teoria de cordas, produzindo 18 artigos sobre o assunto, emerge na arena científica como uma espécie de mafioso desertor, disparando sua metralhadora giratória.

Modelo Padrão
O mais surpreendente é que a confusão tenha começado logo após décadas de avanços contínuos no século que começa com Einstein e a consolidação da mecânica quântica.
O último capítulo dessa epopéia -e a raiz da bagunça- foi o espetacular sucesso do chamado Modelo Padrão das Forças e Partículas Elementares. Essa formulação, obra de gênios como Richard Feynman, Freeman Dyson, Murray Gell-Mann e outros, teve como canto do cisne a comprovação teórica e experimental da unificação da força fraca e o eletromagnetismo, feita pelos Prêmios Nobel Abdus Salam e Steven Weinberg. A unificação de forças é o santo graal da física desde Johannes Kepler (unificação das órbitas celestes), passando por Isaac Newton (unificação da gravidade e movimento orbital) James Maxwell (unificação da luz, eletricidade e magnetismo) e Einstein (unificação da energia e matéria) .
Mas o portentoso edifício do Modelo Padrão, tinha (e tem) graves rachaduras. Apesar de descrever todas as partículas e forças detectadas e previstas com incrível precisão, não incorporava a força da gravidade nem dizia nada sobre a histórica divisão entre os excludentes mundos da relatividade geral e da mecânica quântica.
Mas todos físicos da área de partículas e altas energias, teóricos e experimentais, mergulharam nas furiosas calculeiras do Modelo Padrão. Absorvidos no que se chama o modo de produção da ciência normal (em oposição aos períodos de erupção revolucionária, como o da relatividade), as mais brilhantes mentes do mundo chegaram a um beco sem saída: quase todas as previsões experimentais do Modelo Padrão foram vitoriosamente testadas. O que fazer depois?

Boas vibrações
É quando emergem as cordas. Em vez de partículas pontuais quase sem dimensão como constituintes básicos da matéria, surge a idéia revolucionária das entidades elementares serem na verdade literalmente cordas bidimensionais. Idênticas às dos violinos (no sentido matemático), só que de dimensões minúsculas (da ordem de um trilhão de vezes menores que um próton) e, mais espantoso, vibrando num Universo de mais do que as três dimensões habituais. Nas últimas formulações, nada menos que 11, incluindo o tempo.
No começo o progresso foi espantoso: a força da gravidade, uma deserdada da mecânica quântica e do Modelo Padrão, emergia naturalmente das harmonias de cordas, como ressuscitando as intuições pitagóricas. Todas as forças e partículas foram descritas matematicamente como formas particulares de oscilação de poucos tipos básicos de corda.
Mas logo as complicações começaram também a brotar descontroladamente das equações. Se o Modelo Padrão exigia 19 constantes, ajustadas na marra pelos teóricos para coincidir com a realidade, os desdobramentos da teoria de cordas passaram a exigir centenas delas. No princípio a beleza da teoria de cordas vem de existir apenas o parâmetro da tensão de corda. Cada partícula ou força seria apenas uma variação das cordas básicas, mudando apenas sua tensão e modo de vibrar. A gravidade, por exemplo, seria uma corda fechada, como um elástico de borracha de prender cédulas. Elétrons seriam cordas oscilando com apenas uma extremidade presa.
A cada ajuste na geometria para tornar a teoria compatível com o Universo observável, foi tornando o modelo cada vez mais complicado, de maneira parecida ao modelo cósmico do astrônomo egípcio Ptolomeu, com as adições de ciclos e epiciclos para explicar os movimentos dos planetas.

Macumba
Veio então a explosão final. Logo surgiram cinco alternativas de teorias de cordas. Depois a conjectura de existir uma tal teoria M, que agruparia todas com casos especiais. Finalmente, a teoria de cordas, que prometia simplicidade de beleza tão clara como a célebre E= mc2, revelou-se capaz de produzir nada menos que 10500 (o número 1 seguido de 500 zeros) soluções possíveis, cada uma delas representando um Universo alternativo, com forças e partículas diferentes. Ou seja, há mais soluções para as contas dos físicos de cordas do que há partículas e átomos no Universo inteiro.
Pior, uma parcela mais maluca da comunidade dos teóricos de cordas acha isso muito natural e insinua agora que a necessidade de prova experimental é um ranço arcaico da ciência.
"Vale a pena tentar ensinar mecânica quântica para um cachorro?" -perguntam eles. Seria igualmente inútil para nossos cérebros tentar entender e provar experimentalmente a grande bagunça instalada na ciência nos últimos 30 anos?
É claro que a maioria dos mais brilhantes teóricos de cordas não endossa esse impasse epistemológico. O próprio Brian Greene, físico americano e principal divulgador da concepção de cordas, autor do best-seller (mais falado do que lido, é verdade) "O Universo Elegante", escreveu um artigo para o jornal "The New York Times" ressaltando que a prova experimental é essencial e que a questão levantada por Smolin é procedente. "O rigor matemático e a elegância não bastam para demonstrar a relevância de uma teoria. Para ser considerada uma descrição correta do Universo, uma teoria deve fazer previsões confirmadas por experimentos.


As dimensões das cordas e as energias que elas envolvem para serem comprovadas estão fora de alcance. Um acelerador de partículas para produzi-las artificialmente, deveria ser maior do que o Sistema Solar


E, quando um pequeno mas barulhento grupo de críticos da teoria de cordas ressalta isso com razão, a teoria de cordas ainda tem de fazer isso. Essa é uma questão chave e merece um escrutínio sério."
Enquanto o diálogo entre Greene e Smolin tem sido diplomático, nos blogs das comunidades científicas a guerra está vários pontos para baixo. No diário on-line do físico Lubos Motl, de Harvard (motls.blogspot.com), por exemplo, já foram até excluídos posts da cosmóloga brasileira Christine Dantas (christinedantas.blogspot .com). "Na verdade não existe uma guerra entre os muros da academia", ameniza Victor Rivelles, do Instituto de Física da USP. "O que é novo é que a internet, e particularmente os blogs, amplificam essa discussão dando a impressão de que é muito maior do que na realidade é."

Saída pela esquerda
Para contornar a questão apareceu o que se chama princípio antrópico: entre os incontáveis Universos possíveis, os observáveis seriam apenas os feitos sob medida para os humanos. Uma interpretação que resvala para o misticismo e devolve o homem ao centro do Universo, como na Idade Média.
Lamentavelmente, a física experimental, a juíza última das verdades desde os tempos de Galileu e Kepler, pouca coisa pode fazer. As dimensões das cordas elementares e as energias que elas envolvem para serem comprovadas estão fora de alcance. Um acelerador de partículas para produzi-las artificialmente, como foi feito na comprovação do Modelo Padrão, deveria ter uma dimensão maior que a do Sistema Solar.
Todas as esperanças de todos os físicos se voltam agora para o Grande Colisor de Hádrons (prótons ou nêutrons), a ser ligado a partir do ano que vem perto de Genebra, na fronteira da Suíça com a França, na sede do Cern (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares). Pela primeira vez, esse acelerador, um túnel ultrafrio com 27 km de circunferência, vai atingir energias suficientes para produzir indícios indiretos da existência de uma quarta dimensão espacial. Lamentavelmente isso não prova nem refuta a teoria de cordas, pois o postulado de dimensões adicionais não é uma exclusividade desse modelo. A pendenga na comunidade dos físicos, portanto, pode persistir.

Pano de fundo
A linha teórica desenvolvida por Smolin, por outro lado, é igualmente nebulosa. Ele é um dos principais articuladores da gravitação quântica de laço, que pretende retomar o enfoque einsteniano de unificação. A teoria geral da relatividade, explica Smolin, independe da geometria do espaço-tempo. Mas para toda a teoria de cordas, e mesmo o modelo padrão, as forças e partículas são como atores num cenário ou pano de fundo de uma paisagem espaço-temporal definida.
É o que ele chama de teorias dependente do fundo. A gravitação quântica de laço, ao contrário, é independente do fundo. É uma conjectura arrojada: em vez de partículas e forças elementares, Smolin sugere que as entidades fundamentais são nós ou laços no tecido do espaço-tempo.
Assim como a teoria de cordas deriva todas as partículas e forças a partir de modos diferentes das cordas elementares vibrarem, Smolin acredita que essas entidades surjam de enroscos no tecido do espaço-tempo. Assim, as dimensões espaciais e a passagem do tempo emergem não como cenário do teatro das partículas, mas como sua gênese. Outra conseqüência da teoria é que o espaço-tempo não é contínuo: ele também é quantizado, existindo tamanhos mínimos, como átomos de espaço-tempo.
Lamentavelmente esses enroscos também são indetectáveis, mesmo nos mais poderosos aceleradores. No fim, pateticamente, Smolin admite que não se saiu melhor do que os teóricos de cordas e que seu livro "é uma forma de procrastinação".
Mas as questões sociológicas colocadas nos últimos capítulos do livro de Smolin não podem mais ficar no limbo. A acusação da formação de gangues nos centros de pesquisa é agora uma questão pública, que envolve a aplicação do dinheiro dos impostos e a estagnação das ciências e, indiretamente, da tecnologia que ela deveria gerar.

LIVRO - "The Trouble With Physics: The Rise of String Theory, the Fall of a Science, and What Comes Next"
Lee Smolin; Houghton Mifflin, 392 páginas US$26.



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