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Com a corda no pescoço
Físico americano revela
em livro a celeuma travada
nos bastidores da academia em torno da teoria de cordas e argumenta que talvez o Universo não seja elegante, afinal
FLÁVIO DE CARVALHO SERPA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Há tempos a comunidade dos físicos
está dividida numa
guerra surda, abafada pelos muros
da academia. Agora, pela primeira vez, dois livros trazem a
público os detalhes dessa desavença, que põe em xeque o modo de produzir a ciência moderna, revelando uma doença
que pode estar se espalhando
por todo o edifício acadêmico.
"The Trouble With Physics"
("A Crise da Física"), livro lançado no mês passado nos EUA
e ainda sem tradução no Brasil,
do físico teórico Lee Smolin,
abre uma discussão que muitos
prefeririam manter longe do
grande público: está a física
moderna completamente estagnada há três décadas?
"A história que vou contar",
escreve Smolin, "pode ser lida
como uma tragédia. Para ser
claro e antecipar o desfecho:
nós fracassamos", diz ele, invocando o cargo de porta-voz de
toda uma geração de cientistas.
Pior: a razão da estagnação seria a formação de gangues de
cientistas, incluindo as mentes
mais brilhantes do mundo, para afastar dos postos acadêmicos os teóricos dissidentes.
Os principais acusados são os
físicos adeptos da chamada
teoria de cordas, que promete,
desde o início da década de
1970, unificar todas as forças e
partículas do Universo conhecido. "A teoria de cordas tem
uma posição tão dominante na
academia", escreve Smolin,
"que é praticamente suicídio
de carreira para um jovem teórico não juntar-se à onda".
Smolin, um polêmico e respeitado físico teórico, com PhD
em Harvard e professorado em
Yale, não está só. Também o físico matemático Peter Woit
disparou contra os físicos das
cordas uma acusação pesada
que transparece já no título de
seu livro: "Not Even Wrong"
("Nem Sequer Errado"). Esse
era o pior insulto que o legendário físico Wolfgang Pauli reservava para os trabalhos e teses mal feitas. Afinal, se uma
tese fica comprovadamente errada, ela tem o lado positivo de
fechar becos sem saída na busca do caminho certo.
Mas o alerta de Smolin não
está restrito ao desenvolvimento teórico da física. Para
manter privilégios acadêmicos,
a comunidade dos teóricos de
cordas tomou conta das principais universidades e centros de
pesquisas, barrando a carreira
de pesquisadores com enfoques alternativos. Smolin,que
já namorou a teoria de cordas,
produzindo 18 artigos sobre o
assunto, emerge na arena científica como uma espécie de mafioso desertor, disparando sua
metralhadora giratória.
Modelo Padrão
O mais surpreendente é que
a confusão tenha começado logo após décadas de avanços
contínuos no século que começa com Einstein e a consolidação da mecânica quântica.
O último capítulo dessa epopéia -e a raiz da bagunça- foi o
espetacular sucesso do chamado Modelo Padrão das Forças e
Partículas Elementares. Essa
formulação, obra de gênios como Richard Feynman, Freeman Dyson, Murray Gell-Mann e outros, teve como canto do cisne a comprovação teórica e experimental da unificação da força fraca e o eletromagnetismo, feita pelos Prêmios Nobel Abdus Salam e Steven Weinberg. A unificação de
forças é o santo graal da física
desde Johannes Kepler (unificação das órbitas celestes), passando por Isaac Newton (unificação da gravidade e movimento orbital) James Maxwell
(unificação da luz, eletricidade
e magnetismo) e Einstein (unificação da energia e matéria) .
Mas o portentoso edifício do
Modelo Padrão, tinha (e tem)
graves rachaduras. Apesar de
descrever todas as partículas e
forças detectadas e previstas
com incrível precisão, não incorporava a força da gravidade
nem dizia nada sobre a histórica divisão entre os excludentes
mundos da relatividade geral e
da mecânica quântica.
Mas todos físicos da área de
partículas e altas energias, teóricos e experimentais, mergulharam nas furiosas calculeiras
do Modelo Padrão. Absorvidos
no que se chama o modo de
produção da ciência normal
(em oposição aos períodos de
erupção revolucionária, como o
da relatividade), as mais brilhantes mentes do mundo chegaram a um beco sem saída:
quase todas as previsões experimentais do Modelo Padrão
foram vitoriosamente testadas.
O que fazer depois?
Boas vibrações
É quando emergem as cordas. Em vez de partículas pontuais quase sem dimensão como constituintes básicos da
matéria, surge a idéia revolucionária das entidades elementares serem na verdade literalmente cordas bidimensionais.
Idênticas às dos violinos (no
sentido matemático), só que de
dimensões minúsculas (da ordem de um trilhão de vezes menores que um próton) e, mais
espantoso, vibrando num Universo de mais do que as três dimensões habituais. Nas últimas formulações, nada menos
que 11, incluindo o tempo.
No começo o progresso foi
espantoso: a força da gravidade,
uma deserdada da mecânica
quântica e do Modelo Padrão,
emergia naturalmente das harmonias de cordas, como ressuscitando as intuições pitagóricas. Todas as forças e partículas
foram descritas matematicamente como formas particulares de oscilação de poucos tipos
básicos de corda.
Mas logo as complicações começaram também a brotar descontroladamente das equações. Se o Modelo Padrão exigia
19 constantes, ajustadas na
marra pelos teóricos para coincidir com a realidade, os desdobramentos da teoria de cordas
passaram a exigir centenas delas. No princípio a beleza da
teoria de cordas vem de existir
apenas o parâmetro da tensão
de corda. Cada partícula ou força seria apenas uma variação
das cordas básicas, mudando
apenas sua tensão e modo de vibrar. A gravidade, por exemplo,
seria uma corda fechada, como
um elástico de borracha de
prender cédulas. Elétrons seriam cordas oscilando com apenas uma extremidade presa.
A cada ajuste na geometria
para tornar a teoria compatível
com o Universo observável, foi
tornando o modelo cada vez
mais complicado, de maneira
parecida ao modelo cósmico do
astrônomo egípcio Ptolomeu,
com as adições de ciclos e epiciclos para explicar os movimentos dos planetas.
Macumba
Veio então a explosão final.
Logo surgiram cinco alternativas de teorias de cordas. Depois
a conjectura de existir uma tal
teoria M, que agruparia todas
com casos especiais. Finalmente, a teoria de cordas, que prometia simplicidade de beleza
tão clara como a célebre E=
mc2, revelou-se capaz de produzir nada menos que 10500 (o
número 1 seguido de 500 zeros) soluções possíveis, cada
uma delas representando um
Universo alternativo, com forças e partículas diferentes. Ou
seja, há mais soluções para as
contas dos físicos de cordas do
que há partículas e átomos no
Universo inteiro.
Pior, uma parcela mais maluca da comunidade dos teóricos
de cordas acha isso muito natural e insinua agora que a necessidade de prova experimental é
um ranço arcaico da ciência.
"Vale a pena tentar ensinar
mecânica quântica para um cachorro?" -perguntam eles. Seria igualmente inútil para nossos cérebros tentar entender e
provar experimentalmente a
grande bagunça instalada na
ciência nos últimos 30 anos?
É claro que a maioria dos
mais brilhantes teóricos de
cordas não endossa esse impasse epistemológico. O próprio Brian Greene, físico americano e principal divulgador
da concepção de cordas, autor
do best-seller (mais falado do
que lido, é verdade) "O Universo Elegante", escreveu um artigo para o jornal "The New York
Times" ressaltando que a prova
experimental é essencial e que
a questão levantada por Smolin
é procedente. "O rigor matemático e a elegância não bastam para demonstrar a relevância de uma teoria. Para ser
considerada uma descrição
correta do Universo, uma teoria deve fazer previsões confirmadas por experimentos.
As dimensões das cordas e as energias que elas envolvem para serem comprovadas estão fora de alcance. Um acelerador de partículas para produzi-las artificialmente, deveria ser maior do que o Sistema Solar
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E, quando um pequeno mas
barulhento grupo de críticos
da teoria de cordas ressalta isso com razão, a teoria de cordas ainda tem de fazer isso.
Essa é uma questão chave e
merece um escrutínio sério."
Enquanto o diálogo entre
Greene e Smolin tem sido diplomático, nos blogs das comunidades científicas a guerra está vários pontos para baixo. No diário on-line do físico
Lubos Motl, de Harvard
(motls.blogspot.com), por
exemplo, já foram até excluídos posts da cosmóloga brasileira Christine Dantas
(christinedantas.blogspot
.com). "Na verdade não existe uma guerra entre os muros
da academia", ameniza Victor
Rivelles, do Instituto de Física da USP. "O que é novo é
que a internet, e particularmente os blogs, amplificam
essa discussão dando a impressão de que é muito maior
do que na realidade é."
Saída pela esquerda
Para contornar a questão
apareceu o que se chama
princípio antrópico: entre os
incontáveis Universos possíveis, os observáveis seriam
apenas os feitos sob medida
para os humanos. Uma interpretação que resvala para o
misticismo e devolve o homem ao centro do Universo,
como na Idade Média.
Lamentavelmente, a física
experimental, a juíza última
das verdades desde os tempos
de Galileu e Kepler, pouca
coisa pode fazer. As dimensões das cordas elementares e
as energias que elas envolvem
para serem comprovadas estão fora de alcance. Um acelerador de partículas para produzi-las artificialmente, como foi feito na comprovação
do Modelo Padrão, deveria
ter uma dimensão maior que
a do Sistema Solar.
Todas as esperanças de todos os físicos se voltam agora
para o Grande Colisor de Hádrons (prótons ou nêutrons),
a ser ligado a partir do ano
que vem perto de Genebra, na
fronteira da Suíça com a
França, na sede do Cern
(Centro Europeu de Pesquisas Nucleares). Pela primeira
vez, esse acelerador, um túnel
ultrafrio com 27 km de circunferência, vai atingir energias suficientes para produzir
indícios indiretos da existência de uma quarta dimensão
espacial. Lamentavelmente
isso não prova nem refuta a
teoria de cordas, pois o postulado de dimensões adicionais
não é uma exclusividade desse modelo. A pendenga na comunidade dos físicos, portanto, pode persistir.
Pano de fundo
A linha teórica desenvolvida por Smolin, por outro lado,
é igualmente nebulosa. Ele é
um dos principais articuladores da gravitação quântica de
laço, que pretende retomar o
enfoque einsteniano de unificação. A teoria geral da relatividade, explica Smolin, independe da geometria do espaço-tempo. Mas para toda a
teoria de cordas, e mesmo o
modelo padrão, as forças e
partículas são como atores
num cenário ou pano de fundo de uma paisagem espaço-temporal definida.
É o que ele chama de teorias dependente do fundo. A
gravitação quântica de laço,
ao contrário, é independente
do fundo. É uma conjectura
arrojada: em vez de partículas
e forças elementares, Smolin
sugere que as entidades fundamentais são nós ou laços no
tecido do espaço-tempo.
Assim como a teoria de cordas deriva todas as partículas
e forças a partir de modos diferentes das cordas elementares vibrarem, Smolin acredita que essas entidades surjam de enroscos no tecido do
espaço-tempo. Assim, as dimensões espaciais e a passagem do tempo emergem não
como cenário do teatro das
partículas, mas como sua gênese. Outra conseqüência da
teoria é que o espaço-tempo
não é contínuo: ele também é
quantizado, existindo tamanhos mínimos, como átomos
de espaço-tempo.
Lamentavelmente esses
enroscos também são indetectáveis, mesmo nos mais
poderosos aceleradores. No
fim, pateticamente, Smolin
admite que não se saiu melhor do que os teóricos de cordas e que seu livro "é uma forma de procrastinação".
Mas as questões sociológicas colocadas nos últimos capítulos do livro de Smolin não
podem mais ficar no limbo. A
acusação da formação de gangues nos centros de pesquisa
é agora uma questão pública,
que envolve a aplicação do dinheiro dos impostos e a estagnação das ciências e, indiretamente, da tecnologia que
ela deveria gerar.
LIVRO - "The Trouble With
Physics: The Rise of String
Theory, the Fall of a Science, and
What Comes Next"
Lee Smolin; Houghton Mifflin,
392 páginas US$26.
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