São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

Próximo Texto | Índice

+ ciência

Duas novas pesquisas aumentam as expectativas de que se obtenha algum dia uma vacina contra o HIV

Fechando o cerco


Partículas de HIV, o vírus da Aids, coloridas artificialmente, mostram o capsídeo (vermelho) e as espículas usadas para infectar a célula


RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Dois trabalhos recentes e paralelos aumentaram as expectativas dos cientistas de que um dia se consiga uma vacina contra o HIV, o vírus causador da Aids. Na pior das hipóteses, quando um dia for obtida uma defesa eficaz contra o vírus, esses dois artigos científicos certamente farão parte da bibliografia.
Um deles mostra como é a estrutura tridimensional da chamada proteína gp120, a "chave" molecular usada pelo parasita para invadir as células humanas e de macaco. O outro analisa a estrutura de uma das raras armas bem-sucedidas contra o HIV, um anticorpo "neutralizador" conhecido como 4E10.
Quando ataca o homem o vírus se chama HIV, vírus da imunodeficiência humana na sigla em inglês; nos macacos, é o SIV -vírus da imunodeficiência símia. A doença afeta justamente o sistema imunológico, a defesa do organismo. Entre as vítimas estão as células que deveriam defender o corpo, mas que têm na sua superfície uma proteína, a CD4, que serve de fechadura perfeita para a chave gp120.
Desde 1998 se conhece a estrutura da gp120 grudada na CD4 ("gp" significa "glicoproteína", isto é, um misto de glicose -açúcar- com proteína). Mas não se conhecia como era essa "chave" fora da "fechadura". Um novo estudo, publicado na semana retrasada na revista científica "Nature" (www.nature.com), mostrou que a gp120 não-ligada tem uma forma bem diferente de quando está ligada ao seu alvo celular humano. E isso dá uma inédita pista de como atacá-la.

Colete à prova de bala
O HIV se defende por meio de uma membrana protetora em torno do seu material genético, como se fosse o colete à prova de bala de um soldado. Mas, para infectar uma célula, ele precisa de múltiplos braços, saliências que perfuram a membrana e que têm na base a glicoproteína gp41 e na ponta a gp120. Três gp41 associadas com três gp120 formam uma dessas saliências, ou espículas.
E, assim como os braços de um soldado, não-protegidos pelo colete, as espículas também são um alvo potencial para vacinas e terapias.
O principal autor do estudo sobre a gp120, Stephen Harrison, da Universidade Harvard e do Instituto Médico Howard Hughes, nos EUA, acredita que as chances de uma vacina contra o HIV têm por base dois motivos. "O trabalho com o SIV demonstrou que é possível vacinar macacos de modo que, se são expostos ao vírus, eles se tornaram infectados, mas não doentes", diz Harrison.
Por trás dessa proteção estão as chamadas células T de defesa, que mantêm os vírus em um nível menor do que o esperado, desacelerando a progressão da doença.
"Não é o tipo de vacina verdadeiramente protetora que se gostaria de ter, mas pode ser de amplo benefício. Essas observações estão por trás do trabalho das estratégias de desenvolvimento de vacinas concorrentes, como a do Centro de Pesquisa de Vacina do NIH [Institutos Nacionais de Saúde dos EUA]", diz ele.
O segundo motivo citado por Harrison para ser otimista em relação a vacinas é que também existem casos de anticorpos "neutralizadores" que efetivamente bloqueiam o HIV -dos quais o mais eficaz deles foi alvo de um estudo recente publicado na revista científica "Immunity" (www.immunity.com), pela pesquisadora brasileira Rosa Cardoso, hoje no Instituto de Pesquisa Scripps, na Califórnia, em colaboração com mais sete colegas.
Esses anticorpos normalmente não surgem no organismo das pessoas infectadas, só em raros casos.

Forma e função
Cardoso é especialista em cristalografia de proteínas, uma técnica utilizada para obter a sua estrutura. "O conhecimento da estrutura de uma proteína possibilita o entendimento profundo do modo de ação daquela proteína e pode ser utilizado para o desenho racional de medicamentos e, muito recentemente, de vacinas", disse ela à Folha.
O laboratório onde ela trabalha é um dos poucos no mundo fazendo desenho racional de vacinas com base na estrutura do complexo "antígeno-anticorpo" -antígeno é o elemento do agente invasor que causa a reação do organismo, medida em parte pelos anticorpos.
"A idéia é que, se conhecermos os detalhes atômicos da interação entre o anticorpo e o antígeno, poderemos desenvolver uma imitação do antígeno, especialmente na região que estimulará o sistema imune a produzir anticorpos contra o antígeno natural, antes do corpo ter contato com aquele antígeno natural", afirmou a brasileira.
Segundo a pesquisadora, existem apenas quatro anticorpos conhecidos que neutralizam eficientemente o vírus da Aids: 4E10, B12, 2F5 e 2G12. "O meu laboratório determinou a estrutura de três desses anticorpos -4E10, B12 e 2G12- em complexo com o antígeno."
O anticorpo 4E10, o mais eficaz e objeto do último estudo, foi derivado de pacientes infectados em Viena, Áustria. O anticorpo reconhece a glicoproteína gp41, a "base" no topo da qual fica a gp120.

Infecção teimosa
"O HIV é diferente. Contra a maioria dos vírus, os indivíduos que sobrevivem à infecção inicial estão protegidos por uma resposta imune potente. Essa resposta elimina o vírus e previne a reinfecção. Com o HIV, a maioria dos indivíduos apenas controla parcialmente o vírus", diz em entrevista Peter Kwong, do Centro de Pesquisa de Vacina, e pioneiro na definição da estrutura da gp120 ligada à célula infectada.
Kwong também acredita que várias evidências sugerem que uma vacina é possível, citando especificamente os anticorpos neutralizadores e o trabalho de Cardoso e colegas.
"Quando esses anticorpos são feitos em grande quantidade, e reinjetados em macacos, eles podem prevenir a infecção pelo S/HIV -uma "quimera" de vírus humano e vírus símio", afirma o pesquisador.
Não é uma proteção duradoura, pois não é o próprio animal quem produz os anticorpos. "Mas esses experimentos provam que se você conseguir bolar um jeito de induzir o sistema de defesa, antes que ele encontre o HIV, a produzir esses anticorpos efetivos, então você terá proteção", afirma Kwong.
"No caso do HIV, não há bons exemplos de imunidade natural à infecção", diz outro pesquisador do centro do NIH, Gary Nabel; por isso o estudo da estrutura do vírus é o enfoque adotado pelos que buscam uma vacina.
"Não há dúvida de que temos um desafio enorme nesses esforços, e não há garantia de que seremos bem-sucedidos. Nossa maior esperança agora é o projeto racional de uma vacina, baseado em ciência", conclui Nabel.


Próximo Texto: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: Veleiros solares estão para zarpar
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.