São Paulo, domingo, 06 de julho de 2008

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Em nome da ciência

Autora de best-seller sobre cadáveres, Mary Roach investiga vida dura dos pesquisadores do sexo em novo livro

RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Em nome do bom jornalismo, muitos repórteres já correram o risco de tomar o lugar dos sujeitos de suas observações. Um jornalista escrevendo sobre a Polícia Militar pode se alistar como recruta, por exemplo, para mostrar como é a vida no quartel. Alguém investigando trabalho escravo pode tentar emprego num canavial. Mary Roach, porém, é repórter de ciência. Para mostrar como é a pesquisa de ponta em fisiologia sexual, seu plano de infiltração foi aliciar seu marido para fazer sexo dentro de um laboratório.
O mundo já pode agradecer à bravura de Roach pelo primeiro registro científico de uma cópula humana com uma nova máquina de ultra-som que faz filmes tridimensionais. (O técnico que fez as imagens teve de ficar debruçado sobre o casal durante o ato para registrar tudo.) Sensacionalismo à parte, o panorama que a americana traça em seu novo livro, "Bonk" (gíria sonora para sexo; algo como "créu"), é o relato fiel de um universo de cientistas que, ainda hoje, trabalham em condições quase clandestinas.
Em boa parte do livro, as fontes de Roach são acadêmicos que relatam dificuldade incomum para conseguir financiar seus estudos -algo surpreendente quando se pensa em um assunto do qual as pessoas gostam tanto. Certamente, Sigmund Freud teria algo a dizer sobre o assunto -ainda mais em um país puritano que tem a maior indústria pornográfica do mundo. "Bonk", porém, se propõe a retratar cientistas que adotaram uma abordagem mais "empírica" sobre o tema, com todas as dores e prazeres que essa palavra implica.
Entre os personagens dessa história está Robert Latou Dickinson, o ginecologista que, nos anos 1890, tentou mostrar que a masturbação feminina era uma experiência normal. Um século depois, após pesquisas terem mostrado que a "autoestimulação" até ajuda mulheres com problemas de libido, o assunto ainda é tabu. Jocelyn Elders, ministra de saúde do governo Bill Clinton, perdeu o cargo após dizer num discurso que a masturbação deveria ser ensinada. (Isso, claro, antes de o mundo inteiro saber sobre o esperma do presidente no vestido da estagiária.)

Ciência no sótão
Essa hipocrisia secular, defende Roach, surge da noção de que só os aspectos reprodutivos do sexo podem ser objeto de pesquisa "séria" em fisiologia. Desejo e prazer não são considerados tema de saúde. Não é de surpreender que até a década de 1970 os cientistas nem sequer conseguissem publicar sobre o assunto.
O primeiro grande livro-texto sobre o assunto, de 1966, "Human Sexual Response", de William Masters e Virginia Johnson, foi inteiro estruturado em estudos menores que haviam sido rejeitados por revistas científicas. Mesmo sem saber que a maioria dos voluntários daquele projeto de pesquisa eram prostitutas, o meio acadêmico não foi receptivo.
O personagem retratado por Roach que mais captura o imaginário americano, porém, é Alfred Kinsey, o biólogo que montou um laboratório-motel no sótão de sua casa para sessões clandestinas de observação científica do seu objeto de estudo, na década de 1940. Entre os voluntários estavam pessoas recrutadas na vizinhança, amigos de Kinsey e ele próprio. Quando seus trabalhos começaram a atrair a atenção da imprensa, porém, rumores sobre casos extraconjugais e práticas sexuais não-convencionais no famoso porão acabaram abalando um pouco seu prestígio.
Figuras controversas e casos em que voluntários e pesquisadores se confundem, aliás, são freqüentes em "Bonk". Estudos do colombiano Heli Alzate, que recrutou prostitutas para estudar a sensibilidade erógena da vagina, enumeram diversas constatações obtidas por "observação participante".
Roach viajou a França, Dinamarca, Taiwan, Egito e outros países para investigar como diferentes culturas lidam com a ciência do sexo. O esqueleto de "Bonk", porém, é estruturado em questões que atormentaram -e ainda atormentam- os cientistas. A distância vaginoclitorial influencia o prazer da mulher? É possível separar totalmente os fatores físicos e psicológicos que levam à ereção? Qual é a função evolutiva do orgasmo feminino? Surpreende saber quanto as respostas ainda são incertas.

Sexo e morte
Quem está atrás de respostas talvez não encontre em Roach um alento. "Bonk", porém, é um excelente panorama sobre o que a ciência do sexo produziu e produz, a despeito de falta de dinheiro e de reconhecimento. O livro é "sério", mesmo sendo hilariante.
"Estudar sexo em laboratórios nunca foi fácil, seguro ou bem-pago", diz. "Estudo por estudo, os ganhos parecem pequenos e (...) fúteis, mas a soma de tudo o que se aprendeu -o tango dançado entre a cultura acadêmica e a popular- nos levou a um lugar mais feliz."
De um jeito ou de outro, tendo sido autora de "Stiff", um best-seller sobre o uso de cadáveres na ciência, Roach não parece estar mesmo preocupada com reputação. "As pessoas achavam que eu era obcecada por mortos", diz. "Agora que eu escrevi sobre sexo e morte, sabe Deus o que falam de mim."

LIVRO - "Bonk" Mary Roach; W.W.Norton & Co.; 319 págs.


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