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O dia da marmota
Pesquisadores
acham grupo
amazônico
de tuco-tucos,
que vivem na mata fechada e, com
desmate, viram
praga agrícola
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Thales Ochotorena de
Freitas, autointitulado "tucólogo" (especialista em tuco-tucos, os roedores subterrâneos da foto à direita),
aponta para o pilar da sala, de
três metros de altura. "Em Mato Grosso, eles conseguem derrubar seringueiras jovens mais
ou menos desse tamanho, simplesmente roendo a raiz", diz
Freitas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
É claro que esses bichos, versão tupiniquim das marmotas
do hemisfério Norte, não viraram praga dos seringais -e das
plantações de cacau, café e
mandioca- só por espírito de
porco. Originalmente, os tuco-tucos mato-grossenses eram
habitantes da floresta fechada,
mas o avanço do desmatamento anda levando os bichos a colonizar roças recém-criadas.
A situação desses animais na
Amazônia é ainda mais inusitada do que essa descrição sugere. Até pouco tempo atrás, ninguém pensaria em procurar tuco-tucos no meio da mata fechada, simplesmente porque
todo mundo achava que esses
roedores, membros do gênero
Ctenomys, gostassem mesmo
era de ambientes descampados, de preferência com muita
grama, seu principal alimento.
Desse ponto de vista, a invasão atual das plantações é só o
segundo episódio da invasão
anterior -a da mata. "A gente
ainda está tentando entender o
que aconteceu", diz Freitas.
"Uma ideia é que as flutuações
climáticas [do fim da Era do
Gelo, há cerca de 10 mil anos]
fizeram com que as áreas abertas onde os tuco-tucos vivem
avançassem para a Amazônia.
Quando a floresta voltou, a vegetação aberta recuou e os bichos ficaram", diz o biólogo.
Verificar se esse cenário corresponde à história evolutiva
dos bichos exige resolver um
enigma que surgiu na época heroica das expedições do marechal Cândido Rondon, no começo do século 20.
Rondon e companhia percorreram o território dos tuco-tucos e, por sorte, a equipe do
marechal incluía um zoólogo
do Museu Nacional, Alípio de
Miranda Ribeiro. Em 1914, em
publicação da "Commissão de
Linhas Telegraphicas Estrategicas de Matto-Grosso ao Amazonas", Ribeiro disse ter identificado três espécies de tuco-tucos em Mato Grosso, a C. nattereri (já descrita por outro pesquisador no século 19), a C. bicolor e a C. rondoni (ambas batizadas por Ribeiro, que resolveu homenagear Rondon).
Isso deveria ter encerrado o
assunto, mas não encerrou. Para começar, o exemplar de referência de uma das espécies desapareceu, e os correspondentes às outras duas não estão nas
melhores condições de conservação. Ou seja, é muito difícil
confirmar a identidade dos bichos comparando os espécimes
de hoje com os de 1914.
Mais importante ainda, e para complicar de vez a situação,
Freitas e companhia acharam
pelo menos quatro formas "novas" de tuco-tuco (conhecido
localmente como rato-paca ou
rato-cururu) em Mato Grosso,
nos municípios de Pontes e Lacerda, Cáceres, Nova Olímpia e
Nova Ubiratã. "Dá para reconhecer de forma relativamente
fácil, apenas pelo padrão de cores da pelagem, que os bichos
são diferentes entre si. A questão é saber o quão diferentes
eles são", afirma o pesquisador.
Análises preliminares de
mtDNA, ou DNA mitocondrial
(material genético presente
nas mitocôndrias, as centrais
energéticas das células), sugerem que os bichos de Mato
Grosso formam um grupo à
parte, que descende de um ancestral comum e tem parentesco mais ou menos distante com
roedores bolivianos (esses sim
tuco-tucos "clássicos", nativos
de áreas mais abertas).
Artistas da fuga
Outro elemento que, por enquanto, ajuda a manter o mistério sobre os animais é a dificuldade de botar as mãos neles,
explica Freitas. Ao contrário
dos tuco-tucos do Rio Grande
do Sul, que o biólogo e seus colegas capturam sem grandes
dores de cabeça, os mato-grossenses quase parecem se divertir às custas dos pesquisadores.
"A gente costuma usar uma
versão menor daquelas armadilhas de urso nas tocas", diz
Freitas, referindo-se à arapuca
conhecida de quem assiste a
desenhos animados, parecida
com uma bocarra dentada.
"Nós usamos uma cobertura de
borracha para não machucar o
bicho nem deixá-lo sofrendo
enquanto a armadilha não é recuperada. Mas os de Mato
Grosso parecem conseguir escapar delas -muitas se fecham
sem pegar nenhum bicho."
Freitas diz que ainda é difícil
dizer se as espécies identificadas pelo companheiro do marechal Rondon vão ser ressuscitadas ou se os bichos achados
agora ganharão nomes novos.
De qualquer maneira, as pesquisas são uma nova prova do
potencial evolutivo quase frenético dos tuco-tucos.
De um ancestral que viveu há
apenas 3 milhões de anos, os bichos se diversificaram em cerca
de 60 espécies, com enormes
diferenças genéticas, colonizando da Patagônia ao sul do
Pará. Nada mal para quem passa a vida debaixo da terra.
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