São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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Stephen Jay Gould via o diálogo entre ciência e religião como indispensável para a plenitude e a sabedoria na trajetória humana

A ÁRVORE DA VIDA

Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha

Seria tentador forçar um pouco a barra e dizer que "Pilares do Tempo" é o testamento intelectual do paleontólogo Stephen Jay Gould, morto aos 60 anos de idade em maio passado. Mas não seria sincero: o último livro do pesquisador de Harvard foi "The Structure of Evolutionary Theory", um calhamaço dedicado apenas aos estudiosos profissionais da biologia evolutiva.
A despeito disso, porém, não é um salto de imaginação muito grande afirmar que Gould ficaria feliz em ser lembrado por esse livro de 1999, lançado agora no Brasil pela Rocco. Em "Pilares do Tempo" (boa adaptação da quase intraduzível expressão inglesa "rocks of ages"), o divulgador da ciência dá as mãos ao contador de histórias para encarar uma tarefa espinhosa: sugerir um modelo para um relacionamento adequado e produtivo entre ciência e religião.
Com a montanha de desconfiança e hostilidade mútua acumulada há séculos entre os dois lados dessa questão, era de esperar que a proposta de Gould soasse a princípio como um armistício nervoso, na melhor das hipóteses. Trata-se da tese dos MNI (magistérios não-interferentes), que pode sugerir para o leitor mais apressado algo do tipo "você fica aí, eu fico aqui, e ninguém se aborrece".
Como de costume, entretanto, as aparências enganam. O esforço para construir uma ponte entre entrincheirados já surge na própria inspiração da sigla, o "magisterium" da tradição medieval católica: "Um magistério (...) é uma área onde uma forma de ensinamento tem as ferramentas apropriadas para um discurso e uma solução significativos. Em outras palavras, nós debatemos e dialogamos sob a égide de um magistério", explica Gould.
Para o paleontólogo, o que define os MNI é o paradoxo de um diálogo constante e inevitável -uma vez que os dois magistérios tratam de questões igualmente fundamentais- que precisa ser temperado pela luta contra o desejo, demasiado humano, de reivindicar posse sobre o magistério vizinho sempre que a ocasião se apresenta. Ciência e religião precisam uma da outra, insiste Gould.
A afirmação pode parecer esquisita, vindo de quem vem -filho de judeus nova-iorquinos que renegaram a religião ancestral, Gould nem chegou a fazer o bar-mitzvá. "Sou um agnóstico no sentido sábio de T.H. Huxley, que cunhou o termo ao identificar o ceticismo tolerante como a única posição racional porque, na verdade, não há como saber ao certo", confessa o autor. Mas a argumentação de Gould é de uma clareza -e uma decência- admiráveis. Se o avanço da ciência esmagou de vez a visão primeva de um Deus que governa de forma absolutista cada detalhe da natureza, não é menos verdade que a capacidade para lançar luz sobre significados e propósitos, certos e errados, continua eludindo os cientistas. E é aí, afirma Gould, que o magistério da religião ainda precisa ser ouvido.
Para o autor, pouco importa se essa busca por sentido e decência reflete uma mera projeção humana sobre o mundo natural, e não uma força externa que a impulsione ou garanta. Seja lá como for, a ciência continua sem o direito de impor os fatos da natureza como modelos para o que é certo -uma violação dos MNI que aconteceu mais de uma vez desde a ascensão do darwinismo como explicação unificadora da vida, com consequências no mínimo perigosas tanto para a ciência quanto para a humanidade. O próprio Gould teve ocasião de enfrentar o determinismo evolutivo e genético, dentro e fora de Harvard, como uma encarnação nova e mais palatável dessa tendência.
Embora atraente, o ideal dos MNI enfrenta mais de uma pedra no caminho, ao menos à primeira vista. História e psicologia parecem conspirar contra ele, mas Gould se esmera na busca de exemplos que façam dele algo mais forte que uma utopia aconchegante. E dois dos mais eloquentes se referem a paladinos tradicionais da vitória científica, o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) e seu fiel escudeiro, Thomas Henry Huxley (1825-1895). Responsáveis pelo triunfo da teoria evolucionista, ambos deram um golpe profundo nas certezas religiosas do século 19 e passaram pela perda de seus filhos mais queridos ainda pequenos -uma tragédia pessoal que abalou qualquer fé em Deus que os dois pudessem ter tido.
Mesmo assim, Darwin e Huxley não usaram a evolução ou a tragédia para simplesmente jogar na lata do lixo o magistério da religião. Os dois reconheceram que, por mais útil que fosse a ciência na hora de investigar os fatos da natureza, havia um lugar que a especulação racional não era capaz de alcançar: "Tenho profunda consciência de que o assunto é profundo demais para o intelecto humano. Seria a mesma coisa que um cão especulando sobre a mente de Newton", escreve Darwin.
Do outro lado da trincheira, Gould vê problemas muito mais históricos do que de princípio na aplicação dos MNI, e aplaude a aprovação da teoria evolutiva pelo papa João Paulo 2º e a ajuda de líderes religiosos na batalha contra o ensino do criacionismo nos Estados Unidos: "A longa lista de acusações oficiais que contestaram com sucesso o estatuto criacionista do Arkansas incluía alguns cientistas e educadores, mas um número ainda maior de sacerdotes ordenados de todas as grandes religiões e de pensadores religiosos", diz Gould.
Diálogo e respeito não são sinônimos de fusão, e o autor é sensato o suficiente para alertar contra essa tentação. Gould rejeita a falácia do "princípio antrópico" (segundo o qual as leis do Universo permitem a existência e o bem-estar humanos porque Alguém quis que o homem estivesse aqui) como uma tentativa tola de misturar o imiscível.
Uma conversa entre iguais -se possível, amorosa e compassiva- é a proposta de Gould, e é impossível não desejar isso como meta. A vida humana é complexa, e há espaço para mais de uma dimensão nela, insiste o autor. Cabe à palavra e ao diálogo -o Verbo que a tradição cristã identifica com Deus encarnado- a tarefa de harmonizar essas facetas. Para Gould, essa é a essência da sabedoria -por coincidência, definida pela Bíblia (no livro dos Provérbios) com a mesma metáfora que hoje encarna a evolução: "Para os que conseguem alcançá-la, ela é a arvore da vida".


Pilares do Tempo de Stephen Jay Gould
188 págs., R$ 27,00 Editora Rocco. (r. Rodrigo Silva, 26, 5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/2507-2000).



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