São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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Cientista americana resgata imagem de Robert Scott, morto em março de 1912 após perder a corrida para a conquista do pólo Sul para Roald Amundsen

O FIM DO INVERNO

Andy Soloman - 16.jan.1999/Reuters
Cabana da expedição de Scott, montada no cabo Evans


Claudio Angelo
editor-assistente de Ciência

De todos os heróis da exploração da Antártida, nenhum entrou tão mal para a história quanto Robert Falcon Scott. Afinal, não bastasse ter perdido a corrida ao pólo Sul para o norueguês Roald Amundsen -que alcançou o local quase um mês antes dele, em 14 de dezembro de 1911-, o capitão da Marinha Real britânica ainda morreu no caminho de volta, assim como quatro de seus companheiros, em março de 1912. O mito criado em torno de Scott fala em imprudência, inépcia e imperícia. Reza a lenda que ele morreu -e matou seus homens- porque planejou mal a expedição. Usou pôneis para sua marcha no gelo, enquanto Amundsen lançou mão de cães, mais leves e rápidos. Desprezou os esquis, confiando na tração humana para percorrer os quase 1.300 km até o pólo. Levou pouca comida e pouco combustível, era um péssimo navegador e não entendia nada do clima antártico. Foram necessários 90 anos para que a lenda do Scott incompetente recebesse o seu primeiro golpe fundamentado pelos argumentos menos sujeitos a paixões da ciência moderna. Quem o desfere é a climatologista Susan Solomon, da Agência Nacional para Oceanos e Atmosfera dos EUA. No livro "The Coldest March" (que pode ser traduzido tanto como "A Marcha Mais Fria" quanto como "O Março Mais Frio"), que saiu nos EUA em 2001, ela argumenta que só os erros -que não foram poucos- cometidos pelo capitão no planejamento da viagem não bastariam para dar cabo do grupo. Scott, na verdade, fora vitimado pelo inverno mais inclemente do começo do século 20 na Antártida Ocidental. Para comprovar sua tese, Solomon usou dados coletados desde a década de 60 por estações meteorológicas automáticas no pólo Sul e ao longo da barreira de Ross, a colossal plataforma de gelo onde morreram Scott e seus companheiros Edward Wilson, Lawrence Oates, Henry Bowers e Edgar Evans. Os registros, apresentados no livro, mostram que as temperaturas caem abaixo dos 40C negativos no mês de março um ano a cada dez ou mais (provavelmente mais) na barreira. E o ano de 1912 foi um deles. A americana pode ser acusada de muita coisa, menos de não saber do que fala. Há 20 anos ela tem pesquisado a atmosfera do sexto continente. Foi uma das cientistas que descobriram o famigerado buraco na camada de ozônio e tem até uma geleira batizada com seu nome. Para Solomon, o mito em torno de Scott foi criado por críticos sem nenhuma experiência de Antártida. Quem já esteve no continente sabe que o tempo ali está longe de ser previsível, especialmente entre os meses de março e abril, quando começa o que ela chama de inverno "sem fundo". Em vez de uma queda gradual nas temperaturas com a aproximação do inverno, como acontece no resto do planeta, o termômetro despenca de uma vez só, geralmente em março. Scott partiu para o pólo de sua base no cabo Evans, na região do estreito de McMurdo (onde hoje se localiza a maior base científica do continente, dos EUA), em novembro de 1911. Seus pôneis não poderiam suportar o frio de setembro/outubro, quando a temperatura normalmente fica ao redor dos 25C negativos na barreira de Ross. (Os cães de Amundsen resistiam bem ao frio, o que permitiu ao norueguês sair em outubro.) O britânico sabia que seria apanhado pelo inverno no final de sua viagem de volta. O problema foi que todos os estudos feitos por ele e por seu meteorologista, George Simpson, mais as medições realizadas na própria barreira em março de 1911, indicavam temperaturas de, no mínimo, -30C -e não os -40C enfrentados. O frio intenso causa enregelamento quase instantâneo de qualquer parte exposta do corpo, o que pode ter contribuído para a debilitação física dos homens. Mas também muda a textura da neve, que fica áspera, "impraticável" para os trenós, como descreveu Scott. Algo fatal para cinco homens fracos e famintos que precisavam arrastar a própria carga.

O cientista
O mito da morte causada por incompetência não é o único que "The Coldest March" tenta rever. Solomon apresenta Scott como um apaixonado pela ciência, em vez do militar bronco e de visão estreita retratado pela lenda. Um homem que procurou incorporar o maior número possível de cientistas à expedição -Amundsen não levou nenhum, pois não queria perder tempo com observações- e que confiava na experimentação e no registro científico.
Talvez, argumenta a autora, o excesso de confiança nas condições meteorológicas que ele mesmo cuidadosamente observara em sua viagem anterior ao continente (em 1902) e ao longo dos preparativos para a expedição ao pólo o tenham feito planejar a instalação dos depósitos de alimentos ao longo da rota com a quantidade exata de comida para a viagem sob condições normais. Amundsen sempre trabalhou com excesso.
O mito de que os ingleses consideravam indigno comer carne fresca de foca, razão pela qual alguns -inclusive Edgar Evans, o primeiro membro da equipe polar a morrer na barreira- teriam sofrido de escorbuto durante a expedição, também é contestado por Solomon, e com base nos próprios diários da expedição.
Outra acusação que não se pode fazer nem ao britânico nem a Susan Solomon é a de chatice. O estilo literário de Scott tornou seus diários (publicados em português só no começo deste ano), além de leitura obrigatória, uma das obras-primas da exploração polar. Em "The Coldest March", a cientista americana parece diretamente inspirada pelo espírito de Scott e narra a saga dos heróis britânicos como se a tivesse vivido.
Para isso, Solomon muitas vezes deixa que os próprios homens falem, usando trechos dos diários da expedição. Outro dos truques da americana para lançar o leitor no ambiente antártico foi a criação de um personagem fictício: um visitante das bases americanas que, mesmo com toda a tecnologia e a segurança modernas, passa por maus bocados na Antártida devido a condições climáticas excepcionais. As experiências do visitante foram recolhidas de conversas com colegas cientistas e vividas pela própria autora no continente.
Mas a mais impressionante das façanhas de "The Coldest March" é o fato de ele ser, ao mesmo tempo, um livro de história, aventura e ainda um manual de ciência que dá gosto -e frio- de ler. Scott saiu em grande estilo de sua geladeira histórica.


The Coldest March de Susan Solomon
383 págs., US$ 29,95 Yale University Press, New Haven, EUA.
(www.yale.edu/yup)



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